Para
uma pessoa se enquadrar bem no seio do Estado e do povo, precisa de uma visão
recta, de um juízo recto e de boas oportunidades. É necessário ter uma
orientação política, não essa que se aprende nos livros e nos cursos, mas essa
outra que se vai formando lentamente. Lá por um estudante ter feito todo o
curso de medicina com ardente entusiasmo, não significa que seja já um médico
magnífico. Sê-lo-á quando conhecer vitalmente o homem saudável e o doente, o
corpo com e a alma de um e de outro, quando conhecer não só com o entendimento
(nesse caso, os melhores médicos seriam os que melhores alunos da Faculdade),
mas através desse contacto vital com o doente concreto que tem ali na sua
presença, quando for dotado de um olho que, através dos sintomas externos,
saiba penetrar até à própria raiz da doença, saiba ver que o corpo está doente
por causa da alma e alma por causa do corpo, quando tiver um ouvido fino, que
capte não só o que diz abertamente, mas o que se diz a meias e até o que se
cala. É verdadeiro médico quem possui tacto fino e mão segura, firme e terna ao
mesmo tempo, quem tem uma confiança esperançada no seu coração, no seu poder de
curar e de libertar. Esse homem é um perfeito médico. Nesse caso, há «formação
médica».
O
mesmo acontece com um homem de Estado. Não é só a ciência, aliás necessária
(quem se intromete em assuntos de governo sem um rigoroso conhecimento da sua
missão é um irresponsável), que faz o homem de Estado, na verdadeira acepção da
palavra. Só o é aquele que consegue uma atitude análoga, que vê com rigor o que
é o «Estado», que intui o que é útil e o que é prejudicial ao Estado, que é
dotado de uma potência criadora, construtiva e conservadora do estado.
É
desta atitude política que queremos falar. Primeiro, porque um dia alguns de nós
terão deveres a cumprir na vida pública. Além disso, porque precisamente agora
a questão política tornou-se urgente e inquietante de uma maneira especial. Também
é nosso intuito faze-lo da maneira mais simples possível. De coisas tão
importantes como a essência do Estado, ou a maneira de estruturar a sociedade
futura, falaremos muito pouco. Dedicaremos a nossa atenção a coisas miúdas. À
semelhança dos outros capítulos, só nos interessa fornecer o instrumento de
trabalho. Falaremos, é certo, de parlamento, autoridades e leis; mas só para
vermos como encontrar na vida ordinária as raízes de todas estas coisas.
Com
isto pretendo o que, na minha maneira de ver, é vital. Não me interessa dizer
isto ou aquilo, mas apenas uma coisa: pôr a descoberto a atitude política. Se a
tens, olhas à tua volta, observas, e cada movimento, cada leitura do jornal,
dilata-se o horizonte. Se não a tens, então tudo é negociação, aborrecimento e
intriga.
Tenho
de pressupor, para já, que tua não és desses que saem da sede do partido
carregados de caixas de ficheiro, dispostos a revolucionar o mundo do
pensamento com os milhares de títulos que essas caixas costumam conter:
«nacional», «internacional»; «popular», «humanitário»; «fidelidade ao Estado»,
«revolucionário», «revolucionário» …
Hoje
em dia, toda a gente tem essas coisas espalhadas pelos bolsos. Abrir os olhos,
examinar os gestos alheios, reflectir demoradamente sobre alguma coisa, isso já
não é preciso. Os ficheiros resolvem tudo. Seria absolutamente supérfluo
perguntar a nós próprios como actuariam, em dadas circunstancias, certas
palavras ou normas, ou determinados acontecimentos. Surge qualquer ideia ou
aparece uma oportunidade, ou regista-se qualquer acontecimento? Deita-se um
olhar; - já está! Pronto! É formidável não ser preciso pensar! Nós, pela nossa
parte, não estamos dispostos a que os partidos nos carimbem o cérebro, nem que
os jornais nos esmaguem.
O
mais profundo sentido do Estado não é ser útil, mas soberano. É certo que deve
ser solicito pelo bem dos seus subordinados – embora não no sentido de que se
tenha de preocupar por cada um deles em particular e de os manter sob a sua
tutela. Cada um deve preocupar-se pelo seu bem-estar, e o Estado deve
tutelar-lhe os direitos e encarregar-se daquilo de que o particular ou os
diferentes conjuntos particulares livremente associados não são capazes. Deve
cuidar de que haja ordem no país, para que cada qual possa realizar a sua
tarefa. Tudo isto é fim do Estado, mas de maneira alguma esgota a sua essência.
Independentemente
do fim, o Estado tem um sentido, que é uma coisa muito mais profunda: ser
soberano. Não por si mesmo, mas por Deus; deve representar e defender a
majestade de Deus na ordem natural, com todas as suas necessidades, energias,
paixões, interesses e acontecimentos. Isto não quer dizer que ele tenha de
manter a religião e a moralidade. Isso são coisas da consciência e da Igreja. O
Estado descansa na moralidade; protege-a na medida em que ela deve ser vigência
em público; mas não a representa. O que ele representa é a soberania do
Altíssimo nas coisas terrenas, simplesmente pelo facto de ser, de ser
reconhecido.
E
torna esta soberania afectiva através do direito. O direito também tem um fim:
tutelar a liberdade, a vida e a propriedade. Mas, para além desse fim, tem um
sentido mais profundo: que a justiça reine em todos os actos e relações
humanas, sem outro objectivo ulterior, só pelo facto de ser justiça, ordem
querida por Deus no convívio de pessoas livres. Mal desaparece a soberania do
Estado, e se passa a ver nele apenas utilidade pública, segurança e actividade
económica, morre o que é essencial no Estado. Logo que se passa a ver no
direito apenas uma grande ordenação da actividade pública e não essa soberania
de que falámos, morre o que há de essencial no Estado. O estado converte-se
numa gigantesca empresa de comércio e indústria, numa companhia de seguros,
numa sociedade de polícias e carcereiros, num grande patrão.
Aqui
temos um dos aspectos que hoje desapareceram. Esse profundíssimo sentido de o Estado
encarnar a soberania e ser portador do direito tem-se esfumado cada vez mais.
Mas, com isto, desapareceu também o carácter propriamente político do Estado.
Cada vez se impõem com maior força os objectivos puramente económicos. E o
Estado converte-se em protector de assuntos meramente privados. Vai perdendo
constantemente o que o seu carácter público lhe outorga: ser lugar-tenente de
Deus na ordem natural.
Na
próxima reflexão vamos procurar definir o que significa ser politico, temática
que nos parece ser difícil numa altura em que os políticos estão cada vez mais
desacreditados.
Joaquim
Carlos
(Jornalista)