Medicamentos para pessoas não infetadas, que evitem novos casos. Especialistas temem aumento dos comportamentos de risco
Portugal vai começar a usar medicamentos contra a infeção VIH/sida em pessoas que não têm a doença, como forma de prevenir o aparecimento de casos. O objetivo é avançar com um projeto-piloto na população de homens que têm sexo com homens, mas apenas entre aqueles que corram maiores riscos de infeção. Apesar de haver estudos que comprovam o sucesso do tratamento, que consiste apenas na toma de um comprimido por dia, há especialistas que temem que haja mais comportamentos de risco e sexo desprotegido.
António Diniz, o diretor do Programa Nacional para a Infeção VIH/sida confirma ao DN que o projeto pode ter início já este ano na região de Lisboa, onde se registaram quase metade dos novos casos de infeção no ano passado. E se for exequível, o tratamento preventivo pode ser alargado. "A ideia é avançar na população de homens que têm sexo com homens que preencham determinados critérios de risco".
A escolha deste grupo baseia-se numa tendência do mundo ocidental. "A proporção de novas infeções neste grupo está a aumentar em relação a outros onde houve uma descida mais visível, como o grupo dos utilizadores de drogas injetáveis. Apesar de haver menos casos, não está a haver uma descida significativa", frisa.
Para isso contribuem fatores, como o facto de as pessoas "estarem a perder o medo em relação à doença, devido à existência de tratamentos eficazes e com menos efeitos secundários. E isso leva-as a ter atitudes menos corretas em termos de prevenção". Um bom exemplo é o do uso de preservativos, que não tem tido os níveis esperados. "Utilizam-se menos do que se devia, mesmo nos casos de sexo ocasional". O tratamento preventivo já é usado nas situações em que possa ter havido um contacto de risco.
A profilaxia pré-exposição (PrEP), assim se designa o tratamento antes de as pessoas estarem infetadas, está a ser avaliada internacionalmente e já está em aplicação na França ou nos Estados Unidos com sucesso. Neste momento, "há outros países a estudar esta medida, como a Alemanha, Bélgica, Itália ou Espanha. Estamos a acompanhar os movimentos da Europa", acrescenta António Diniz. A medida, que terá de ser trabalhada com o Infarmed, é assumida pelo programa da Direção-Geral da Saúde, cuja prioridade é detetar os casos da doença precocemente e tratar mais cedo.
O estudo sobre o tratamento profilático ainda vai avançar, mas os critérios usados deverão ser semelhantes aos aplicados, por exemplo, nos Estados Unidos. Segundo as normas em vigor, seriam elegíveis os homens que têm sexo com homens que tenham um parceiro seropositivo, que não usem preservativo de forma regular, tenham múltiplos parceiros sexuais ou sejam trabalhadores do sexo. Há ainda critérios clínicos que os podem excluir deste tratamento e que têm de ser avaliados.
O tratamento é um antirretroviral usado atualmente com outras substâncias. E é o único que foi testado com objetivo de prevenção. Os resultados têm sido muito positivos: um estudo mostrou que a toma de um comprimido diário pode reduzir em 86% o risco de infeção neste grupo. Um outro estudo publicado pelo The Lancet admite que no Reino Unidos se possam evitar até 10 mil novas infeções até 2020, com este tipo de tratamento.
A forma como o modelo será aplicado vai ser estudada, mas as "organizações não governamentais vão ser envolvidas neste trabalho. São elas que podem aplicar os questionários de risco, encontrar as pessoas que podem ser envolvidas", admite António Diniz.
As pessoas em tratamento terão de tomar o medicamento sem falhas, até que deixe de se justificar, vão ser testadas periodicamente e seguidas em consulta. Este tratamento tem de ser acompanhado de outras medidas preventivas como o uso do preservativo, até porque não previne outras doenças sexualmente transmissíveis como a gonorreia ou a sífilis, que também têm aumentado no País. Para já não é possível saber quantas pessoas podem ser tratadas.
Outras infeções podem subir
A utilização de medicamentos como forma de prevenção da infeção por HIV para grupos de risco tem provocado polémica. Joaquim Oliveira, chefe do serviço de infecciologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, diz que "a desinibição de comportamentos é considerada o risco mais importante" associado a esta metodologia. E há, ainda, o risco potencial de aparecimento de resistências. "Há pouca experiência em relação a esta estratégia, mas nos ensaios clínicos foi muito pouco detetado", destaca o especialista em doenças infecciosas.
Esta metodologia pode também pôr em causa a proteção contra outras doenças sexualmente transmissíveis. "Todas as estratégias onde esta metodologia é usada incluem outras medidas preventivas, mas na prática isso nem sempre acontece. Muitos indivíduos não usam métodos barreira e, como sentem que estão protegidos, podem aumentar outras infeções", explica Joaquim Oliveira.
Gonçalo Lobo, presidente da Abraço refere que a única coisa que pode suceder é "haver sexo desprotegido, mas é para isso que existe este tratamento. Para a infeção VIH, o medicamento é quase 100% seguro. Tem é de se analisar os efeitos noutras doenças".
Há quem vá ao mercado negro
A grande discussão centra-se, sobretudo, na relação "custo-efetividade" desta metodologia. "Quanto é que a sociedade precisa despender? Quem vai pagar?", questiona Joaquim Oliveira. Os preços da medicação no nosso país são "muito elevados." O projeto piloto é, para o infecciologia, muito importante, pois permitirá perceber "se temos benefícios significativos nos números de novas infeções, como vão ser seguidas as recomendações, como é que a sociedade vai reagir."
Nos ensaios já efetuados, uma adesão elevada correspondeu a uma taxa de sucesso que ultrapassou os 90%. Contudo, destaca o infecciologia, são necessários "mais dados para perceber se vale a pena investir nesta estratégia."
António Diniz não tem estimativa de custos, admitindo que possa haver negociações com o laboratório e que os custos possam baixar se houver genéricos. Gonçalo Lobo, diz que o custo mensal de doente com VIH/sida ronda os 2000 a 2500 euros, combinando este e outros medicamentos.
Para o responsável esta é uma medida que faz sentido. "Sei que terá um custo elevado. E é preciso perceber se será gratuita ou se haverá comparticipação". Neste momento já há quem o faça. "Há pessoas que recorrem ao mercado negro para comprar estes medicamentos, correndo riscos por não saberem o que estão a comprar. O que sabemos é que se o sistema não dá resposta abrem-se brechas e surge um sistema paralelo".