Podemos conceber a interface entre
Humanismo e Medicina por pelo menos duas vertentes. Por um lado poderemos
abordar a inter-relação entre as ciências humanas ou humanidades, como a
Sociologia, Psicologia, Antropologia, Filosofia e a Medicina. Por outro lado,
podemos entender que este tema se refira à relação da Medicina científica com o
ser humano através de uma abordagem mais voltada para o seu lado emocional,
social e cultural, isto é, de forma mais humanizada ou para alguns de maneira
mais holística. Todavia, como iremos perceber adiante, estas duas visões não
são excludentes.
Comecemos pela segunda vertente. Aqui,
talvez, diante da dificuldade de se definir um médico humanizado, creio que
seria mais fácil tentar entender este conceito pela sua antítese, ou seja,
tentar imaginar um médico não-humanizado. Servimo-nos para este exercício de
uma cena freqüente no meio médico, a do profissional que recebe o paciente
portador de uma dada enfermidade de forma rápida e eficiente, concentrando-se
tão somente em detalhes da história e do exame clínico que concernem ao órgão
doente para, a seguir, indicar um tratamento específico. Não houve, durante
este encontro, nenhum interesse do médico por qualquer outra faceta do
paciente, sua história de vida, sua personalidade, seus interesses, enfim, por
nada que não a enfermidade ou sintoma que o fez procurar este médico. Acredito
que esta descrição preencheria a todos os critérios de uma consulta médica
eminentemente técnica e considerada não-humanizada.
Como poderíamos "humanizar"
este médico? A resposta é simples, fazendo-o se interessar pelo paciente em
seus aspectos aparentemente não diretamente afetos à enfermidade. Fazendo-o
enxergar a dimensão pessoal do outro, do paciente. Mas, como despertar esse
interesse no médico? Ou, antes ainda, para que fazê-lo?
Acredito que o principal argumento para justificar
esta abordagem mais pessoal do paciente é o aumento da eficácia do médico que
prescreve algo que seu paciente pode cumprir. Se o paciente não adere ao que
prescrevemos, nossa consulta será inútil para ele. Por exemplo, um paciente que
acaba de perder seu emprego obviamente estará estressado e não conseguirá
adquirir uma medicação mais cara, por isso deveríamos prescrever uma medicação
que lhe seja acessível. Como saber disso se não conversarmos com o paciente
sobre detalhes de sua vida pessoal não afetos necessariamente à doença?
O segundo argumento a favor desta
abordagem mais personalizada é a maior satisfação de ambos, médico e paciente,
pois este médico que vai além da parte estritamente técnica pode desfrutar
também do próprio prazer envolvido em se conhecer realidades novas de pessoas
diferentes e adquirir assim outros conhecimentos que lhe permitirão
intensificar seu crescimento pessoal a partir destas mesmas experiências. É
como se a personalidade do médico fosse um diamante bruto que se lapida à
medida que ele se permite vivenciar as experiências de vida de seus próprios
pacientes ao longo de sua carreira.
Um terceiro argumento a favor deste tipo
de abordagem é o de nos dar um senso da finalidade de nosso trabalho. Quantas
vezes vibrei com conquistas de meus pacientes que, depois de atingirem a cura
de suas doenças, se formaram, casaram, tiveram filhos, atuaram nos mais
diversos setores das artes, se elegeram para cargos públicos, etc. Só poderemos
compartilhar deste tipo de alegria com nossos pacientes se conseguirmos
compreender a sua história de vida, seus valores e suas metas.
Com este conhecimento, o valor do que
fazemos aumenta na medida em que, em parte pela nossa participação no cuidado
de sua saúde, vencemos juntamente com eles seus vários desafios.
Agora, que mostramos argumentos para
corroborar o porquê abordar o paciente desta forma mais personalizada, temos
que pensar em como ensinar os médicos a fazê-lo. Eu acho que a maioria de nós,
médicos, aprendeu de forma autodidata, ouvindo a seus próprios pacientes. Não
creio que tivesse sido necessário uma instrumentalização prévia do médico por
meio do estudo de humanidades para que ele fosse eficaz nesta habilidade de
ouvir a seus pacientes. Acho que o principal, todavia, é o ouvir que decorra do
interesse genuíno do médico no conteúdo do que vai lhe ser contado pelo
paciente. O paciente, como todos nós, falará de si, do que lhe é importante, do
que lhe chama a atenção no mundo em que vive e que é por nós compartilhado.
Interessar-se e ouvir por um genuíno e insaciável interesse do médico no que
vai lhe ser contado pelo paciente é uma habilidade a ser cultivada porque é
através dela que, nos tornando interlocutores eficazes, faremos com que se
estabeleça o diálogo entre médico e paciente. O diálogo, como descreveu o
filósofo Martin Buber, faz com que reconheçamos a existência de um
"Tu" (lado pessoal de nosso doente), nos faz melhor contextualizar o
seu "Isso" (a sua doença ou sintoma) e, assim, nos engrandece por nos
fazer melhor apreciar o nosso próprio "Eu". Este ato de ouvir, de se
interessar pelo outro e de aprender dele é, a meu ver, o que humaniza o médico.
As humanidades, entretanto, apesar de
não serem imprescindíveis para aprender a ouvir nossos pacientes, podem
contextualizar melhor o que ouvimos, explicar o porquê de muitos fatos que
influem na vida de nossos doentes.
Entender um pouco de economia para
compreender porque estamos diante de um momento difícil do ponto de vista
econômico poderá explicar por que há aumento do desemprego. Ter conceitos
antropológicos nos conferirá maior respeito pelo contexto cultural e religioso
de nossos pacientes e nos ajudará a explorar como, dentro de seu contexto
cultural, determinados fatos são avaliados e certos sintomas podem inclusive ser
ocultados. Saber um pouco de história pode nos ensinar a entender o passado de
pacientes que sobreviveram a guerras e revoluções. Um médico, portanto, deve
ser culto e atualizado, tanto na medicina como no que acontece no mundo para
poder se comunicar melhor com seus pacientes.
Acredito também que uma educação básica
calcada num estudo das humanidades possa despertar em alguns médicos o
interesse para com a dimensão pessoal de seu paciente, envolvendo melhor
conhecimento de seus interesses, suas idéias, sua história de vida e seus
valores. Entretanto, não me iludo no sentido de pensar que as humanidades podem
por si dar ao médico uma atuação adequada no plano moral,pois não podemos nos
esquecer que atrocidades como o Holocausto foram perpetradas por um povo cuja
educação básica era notoriamente rica na ênfase ao estudo das humanidades.
O médico humanizado ouve com interesse
seus pacientes. Como vimos, ouvir aprimora a pessoa do médico, dá-lhe mais
satisfação profissional, além de aumentar também a satisfação de seus
pacientes. Contextualizado ou não pelo conhecimento das humanidades, o que quer
que os pacientes lhe contem durante sua vida profissional por si só aumentará o
seu interesse no lado pessoal de seus próprios pacientes. Ouvir é, portanto, a
habilidade a ser cultivada para que nosso exercício profissional seja
continuadamente renovado e dinamizado por nossos pacientes que, sob o pretexto
de um sintoma ou doença, venham a nos procurar para estabelecer um
relacionamento profissional e humano aprofundado que é a base da relação
médico-paciente.
Por Auro del Giglio
On-line version ISSN 1806-9282