Depois de uma interrupção para uns dias de merecido descanso, o Macroscópio está de volta e, logo de entrada, confrontado com um dilema: de todo o noticiário e debates das últimas duas semanas, que tema escolher para o dia do regresso? Depois de tentado a ir por caminho porventura mais fácil – partilhar convosco algumas das melhores leituras das duas últimas semanas –, deixei essa generosidade um pouco lá para a frente e entendi repescar um tema permanente: o da nossa permanência no euro e na União Europeia.
São dois os meus pontos de partida: o primeiro, chamar a atenção para como é frequente tomarmos como verdade o que é falso, sobretudo quando se fala sem estudar o suficiente (e hoje todos falam de economia como se fossem especialistas, mesmo quando é grande a ignorância); depois, para repescar intervenções recentes de Joseph Stiglitz, um Nobel da Economia que escreveu um livro, deu uma entrevista e reabriu o debate (mesmo que pouco mediatizado) sobre a moeda única. Por fim, e porque falamos de União Europeia, para chamar a atenção para um
ensaio de Vítor Bento.
Começo pela referência ao texto que nos chama a atenção para a facilidade com que tomamos por verdadeiros lugares comuns que não resistem à prova dos factos. Refiro-me à mais recente crónica de Luís-Aguiar Conraria no Observador,
Não rezem o terço! O que o economista da Universidade do Minho contesta nesse texto é a ideia feita de que o nosso ajustamento nos anos da troika foi feito dois terços pelo lado da receita e apenas um terço pelo lado da despesa, ao contrário do que se preconizava inicialmente. Ora o que ele defende é que se passou exactamente o contrário, e usa como base do seu argumento as contas que ele mesmo e mais dois colegas – Fernando Alexandre e Pedro Bação – fizeram para o livro
Crise e Castigo publicado recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Mais exactamente: “
Entre 2010 e 2014, a despesa pública primária (ou seja, sem contar com os juros) caiu um pouco mais de 8 mil milhões de euros. A receita aumentou ligeiramente acima de 4 mil milhões. Fazendo as contas, a conclusão é imediata: o ajustamento orçamental feito nos anos da troika foi de dois terços do lado da despesa e apenas um terço por via da receita.” Depois interroga-se “
por que motivo tantas pessoas têm a ideia errada relativamente a este assunto”, e procura uma explicação económica para isso. Eu arriscaria outra: a tal força das ideias feitas, sobretudo quando elas suportam o discurso dominante, e bem sabemos qual foi o discurso dominante, a começar pelo discurso das elites, durante os anos da troika.
A Europa como um todo devia começar a pensar num divórcio amigável com alguns países, pensar em formas para lidarem com a saída. Não será um processo imune a dificuldades, mas temos de reconhecer que o atual sistema é extraordinariamente prejudicial. Portugal sabe isso, claro, foi uma década perdida e no caso da Grécia estamos a falar de um quarto de século perdido, no mínimo. Os custos foram enormes. (…) Significa que o crescimento futuro de Portugal está em risco (…). Por isso, as escolhas não são agradáveis, mas se reconhecermos o custo de continuar neste pântano, o risco de uma saída de Portugal do euro pode ser mais baixo do que ficar.
Não encontrei muitas reacções a esta entrevista, e as que encontrei ou foram medianamente críticas mesmo concordando com o essencial – Daniel Oliveira, no Expresso –, ou então bastante críticas, discordando do argumento de fundo – André Abrantes Amaral no jornal i e João Miguel Tavares no Público. Vejamos o que disseram:
- Daniel Oliveira, O optimismo de Stiglitz: “Stiglitz diz que sair do euro teria efeitos muito negativos, mas ficar no euro seria ainda pior. É a escolha entre uma forte crise que cria as condições para um crescimento futuro ou uma crise que será um modo de vida. Portugal deve sair do euro. Essa saída deve ser negociada e não inclui apenas os portugueses. É quando Stiglitz fala de negociações para sair do euro que percebemos o excesso do seu optimismo. Ao primeiro sinal de vontade de sair do euro a Alemanha, com o apoio dos seus aliados, o silêncio dos mais fracos e a verborreia inconsequente de França e Itália, faria a Portugal o que fez aos gregos. A zona euro já não é uma união voluntária de Estados, mas uma armadilha de onde não se sai vivo. E é por o saber que os portugueses nem se atrevem a pensar no assunto e os gregos ficaram num beco sem saída.”
- André Abrantes Amaral, Um escudo chamado euro: “Se achamos que saindo do euro Portugal encontra o caminho, é porque nos esquecemos que, antes de entrar na zona euro, o caminho era precisamente aderir à moeda única. Este regime estabeleceu-se com esse projecto político. Sair é pôr o regime em causa. É reconhecer que não é possível um desenvolvimento sem salários baixos. É reduzir os cidadãos à vontade ilimitada dos governantes que, quando lhes aprouver, retirarão valor ao nosso dinheiro. Porque o euro é um escudo contra os caprichos dos políticos.”
- João Miguel Tavares, Sair do euro é apenas fugir ao euro: “Não sei se alguém está interessado em transformar Portugal na Venezuela da Europa, para podermos voltar a competir internacionalmente com baixos salários e endireitar as contas do Estado através da impressão de moeda e da promoção de uma inflação de dois dígitos. Lembrem-se: cortar salários em 10% é inconstitucional, mas desvalorizar salários em 20 ou 30% já não é. Eu faço hoje 43 anos (podem dar-me os parabéns) mas ainda me lembro muito bem do início dos anos 80.”
Mas deixemos as referências de Stiglitz a Portugal e passemos ao seu livro, apesar de este não estar ainda editado no nosso país. Uma boa introdução a essa obra é um artigo do próprio Stiglitz no Financial Times, publicado a meio do passado mês de Agosto,
A split euro is the solution for Europe’s single currency. Deixo-vos a conclusão, que sintetiza o essencial: “
The single currency was supposed to be a means to an end. It has become an end in itself — one that undermines more fundamental aspects of the European project, as it spreads divisiveness rather than solidarity. An amicable divorce — a relatively smooth end to the euro, perhaps instituting the proposed system of the flexible euro — could restore Europe to prosperity and enable the continent to once again focus, with renewed solidarity, on the many real challenges that it faces. Europe may have to abandon the euro to save Europe and the European project.”
O livro, de acordo com as recensões da imprensa internacional, parte de um ponto em que todos estarão de acordo – a forma como o euro nasceu foi desastrosa e há inúmeros problemas na forma como funciona – para contudo desenvolver algumas análises mais controversas e fazer propostas porventura mais discutíveis que o tal “divórcio amigável” que é ponto central do artigo do Financial Times. No New York Times, por exemplo, o responsável pela crítica ao livro, Roger Lowenstein
, escreve em
Nobel Laureate Joseph Stiglitz Says the Euro Needs Big Reformque, “
Far from the measured analysis that one might expect from a renowned economist, “The Euro” has the strident tone of a political pamphlet. Italics are everywhere, as if the reader were being screamed at. There is a numbing incantation of faults attributed to the troika (did they do anything right?). And Stiglitz uses the unfortunate tactic of impugning his adversaries’ motives; the troika is not merely wrong, it is guilty of “hypocrisy,” of “dishonesty” and of “sheer hypocrisy” — and that’s all within two pages. Stiglitz even descends to slurs evoking the Nazi era. Taking issue with Wolfgang Schäuble, Germany’s finance minister, for emphasizing economic rules, Stiglitz says, “Of course, many of the most heinous crimes have been committed by those who simply said they were just obeying rules.” His bias against wealthy European states, Germany in particular, subtly infects the book.”
A recensão da The Economist é, nalgumas passagens, ainda mais dura no que se refere ao tom adoptado neste livro. Em
On course to fail escreve-se que, “
in redressing the balance, Mr Stiglitz gives too little weight to the mistakes of crisis countries. The book has other shortcomings. The strident tone and frequent self-references will put off many readers. If sentences that contained the word “I” or “my” were expunged, the book would be rather slimmer. In places it reads as if the miseries of the euro zone stem from sinister corporate forces and not misplaced idealism. Similar arguments crop up in several chapters, a further irritation and a symptom of careless structure.”
Seja lá como for estas recensões também permitem perceber que, a par com propostas relativamente comuns (e muito discutíveis) que iriam no sentido de uma zona euro mais “federal” do que a actualmente existente, há também neste livro a defesa de um argumento menos comum, o tal do divórcio amigável que criaria dois ou três euros aonde hoje existe apenas um. Na síntese do New York Times, “he would splinter the euro into, say, two or three currencies, perhaps trading freely, perhaps (a less draconian break) trading only within limited bounds, until the day when the continent is ready to attempt a single currency again.”
Joseph Stiglitz deu algumas entrevistas a propósito desta sua nova publicação, nomeadamente à New Republic –
“An Utter Failure”: Joseph Stiglitz on the Euro and Europe’s Uncertain Future, um texto mais ideológico – e à Quartz –
Joseph Stiglitz on Brexit, Europe’s long cycle of crisis, and why German economics is different –, tal como também escreveu mais artigos, como este para a Vanity Fair –
A Nobel-winning economist has a plan to save Europe. Os interessados podem encontrar nestas peças mais informação sobre o seu pensamento, mas ainda assim deixo já uma passagem deste último artigo, onde se reforça o argumento a favor de vários “euros”: “
The flexible euro would build on these successes and create a system in which different countries (or groups of countries) could each have their own euro. The value of the different euros would fluctuate, but within bounds that the policies of the eurozone itself would affect. Over time, perhaps, with the evolution of sufficient solidarity, those bounds could be reduced, and eventually, the goal of a single currency set forth in the Maastricht Treaty of 1992 would be achieved.”
E por hoje, neste regresso ao vosso convívio, é quase tudo. Bem sei que andei um pouco longe dos temas do momento, mas é também a obrigação desta newsletter: ajudar a pensar para além da espuma dos dias. É precisamente por isso que não termino com Stiglitz, mas com outro economista, Vítor Bento. E faço-o para chamar a atenção para um ensaio que escreveu para o Observador onde também procura pensar o futuro da Europa, e do euro, olhando para o Brexit como uma oportunidade para debater as reformas necessárias, e também para chegar a novos acordos. Em
Como o Brexit pode ser uma oportunidade para a União Europeiaé bem claro na sua ambição:
“Seria adequado aproveitar a oportunidade aberta pelo Brexit para promover uma convenção político-económica destinada a gizar e acordar uma solução sistémica e integrada, dentro de uma visão macroeconómica da zona euro como um todo, que enderece, simultânea e conjuntamente, os seguintes problemas: a) insuficiência de procura agregada (…); b) legado financeiro – dívidas soberanas e balanços bancários (…); c) reformas estruturais necessárias para flexibilizar as economias e garantir o seu crescimento sustentado; d) sustentabilidade duradoura das finanças públicas; e) mecanismos institucionais que (…) assegurem a compatibilização de preferências sociais desalinhadas entre si.” Publicado no final de Agosto, é um daqueles textos que não deve ficar esquecido nos destroços de uma silly season que, este ano, até entrou por Setembro adentro. Não percam.
De resto, como sempre, tenham boas leituras e bom descanso.