Eram
3400 quando a lei mudou, há oito anos, excluindo da lista quem tem
laços familiares com o menor. Hoje só resistem 243 famílias
30 DE OUTUBRO DE 201600:37
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No distrito de Leiria, Sílvia e Jorge Silva são a única família que se ofereceu para receber crianças. Há quatro anos que David e Inês vivem com o casal |
Quando
a vida parecia arrumada, os filhos tinham já saído de casa, agora
tão silenciosa, Sílvia Silva começou a sentir um vazio que a
passagem dos dias só tendia a agravar. Uma vida a trabalhar com
crianças, enquanto auxiliar de ação educativa, permitiu-lhe ver de
perto aquilo que não está ao alcance de todos: "Algumas vezes
foram à escola buscar meninos que depois iam para instituições.
Aquilo deixava-me sempre uma grande mágoa."
Talvez
essa tenha sido a nota dominante da reviravolta que se propôs dar na
sua vida e na de dois irmãos, então com 6 e 9 anos, na cidade de
Peniche. Sílvia e Jorge Silva são desde há quatro anos a família
de acolhimento de David e Inês (agora com 10 e 14 anos), uma das 243
existentes em Portugal, que resistiram desde que a lei mudou, em
2008. Até então, existiam 3400 famílias, mas a regulamentação do
Decreto-Lei n.º 11/2008, de 17 de janeiro, estipulou que "este
serviço seja prestado apenas por pessoas ou famílias sem qualquer
relação de parentesco com a criança e jovem", e isso acabou
por levar à diminuição dos casos de acolhimento.
Na
tentativa de mudar esta situação, o governo quer, soube o DN, rever
o decreto-lei "que estabelece o regime de execução do
acolhimento familiar previsto na lei de proteção de crianças e
jovens em perigo - há 8500 em instituições -, adequando-o ao novo
enquadramento legal". Além de desenvolver "campanhas de
sensibilização, de modo a sensibilizar o público em geral e os
futuros candidatos a família de acolhimento sobre os desafios e as
oportunidades da resposta", adiantou ao DN fonte da Segurança
Social.
Segurança
Social quer fazer campanhas de sensibilização sobre o tema
No
distrito de Leiria, por exemplo, a família Silva é a única
inscrita nesta medida, enquadrada a nível nacional pelos serviços
da Segurança Social e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. São
essas que fazem o acompanhamento das famílias, depois de um processo
exaustivo que passa pela informação, sensibilização, formação,
seleção e execução de um plano de intervenção "com
supervisão e avaliação". Mas em 2012, Sílvia e Jorge (que
foram pais novos, ela com 16 e ele com 18) não sabiam nada disso.
Auxiliada por um vizinho, diretor de uma escola da cidade, Sílvia
chegou aos serviços da Segurança Social apenas com a boa vontade de
receber em casa uma criança nas condições que o acolhimento
familiar estipula: "Assegurar à criança ou ao jovem um meio
sociofamiliar adequado ao desenvolvimento da sua personalidade, em
substituição da família natural, enquanto esta não disponha de
condições."
Era
o caso dos irmãos David e Inês, ele com notório atraso no
desenvolvimento, ela a comportar-se "como se fosse mãe dele. Só
tinha 9 anos", recorda Sílvia Silva, que ainda hoje se comove
quando pensa no dia em que foi buscar os irmãos a casa da avó, que
entretanto cegara. "Eles vieram sem uma lágrima. E entraram em
minha casa como se já a conhecessem. Não era uma casa rica, mas
tinha conforto, um quarto para eles e o carinho que eu e o Jorge lhe
podíamos dar." Como sempre acontece com as crianças que as
decisões judiciais enviam para instituições ou famílias de
acolhimento, também ali havia a família biológica - sem condições
para os acolher - e por isso nunca se colocou a possibilidade de
adoção. De resto, essa é uma das regras que a lei estipula para
uma família que queira prestar acolhimento - não pode adotar.
Prestação
de serviços ao Estado
Sílvia
é auxiliar de ação educativa, Jorge trabalha no porto de pesca de
Peniche. "Para sermos família de acolhimento tivemos de nos
coletar nas Finanças, pois isto é considerado uma prestação de
serviços, e passamos recibo verde. É um serviço agora taxado a
35%, mas até este ano era a 75%", conta Jorge, convicto que a
questão financeira, nomeadamente do pagamento de impostos, também
será um fator de afastamento de potenciais candidatos. No seu caso,
encara o valor que recebe mensalmente como "uma ajuda, não mais
do que isso". A lei aponta um pagamento de 176,89 euros ou
353,79 (se a criança ou jovem for portador de deficiência, como é
o caso de David), ao que se juntam mais 153,40 euros "para a
manutenção de cada criança ou jovem".
18
anos é a idade máxima para ingressar numa família
Jorge
e Sílvia já eram avós quando os dois irmãos chegaram lá a casa.
"Antes disso, tive uma grande conversa com os meus filhos. Nunca
colocaram qualquer objeção", conta a mãe, que ao longo destes
quatro anos construiu com as crianças uma relação intensa, de
cumplicidade, mas sempre frontal. "Por isso nunca quis que me
chamassem mãe. Sempre fiz questão de lhes dizer que os pais os amam
muito, mas que neste momento não têm condições para estar com
eles, por diversas circunstâncias e razões." Já com a avó
mantêm-se as visitas regulares. "A nossa vida muda
completamente, é verdade. Mas também nos preenche muito",
enfatiza Sílvia, que aos 50 anos acompanha as duas crianças em
todas as atividades, tendo em conta a especificidade de David, que
carece de um acompanhamento médico regular. Ao princípio não foi
nada fácil. A Inês demorou até perceber que "ainda era uma
criança, que tinha de brincar e estudar", de tão habituada que
estava a cuidar do irmão. O David foi fazendo "imensos
progressos" e a família reconhece aqui o múltiplo apoio por
parte da professora e das técnicas da Segurança Social de Leiria.
Em conjunto, e enquanto ainda aguardam um diagnóstico, "fazemos
como disse o médico, tratamo-lo como um menino normal". Na casa
da família Silva os irmãos estarão "até quererem".
"Imagine que a mãe deles dava uma volta na vida, as coisas
melhoravam e ela tinha condições para os ter. Iam viver com ela. Se
isso não acontecer, estarão connosco enquanto quiserem e for
possível."
Criar
uma "bolsa de famílias"
A
voz do juiz desembargador Paulo Guerra é a que mais se tem feito
ouvir no país em defesa das famílias de acolhimento. "Sou um
defensor das famílias de acolhimento porque a própria lei não
deixa margem para dúvidas. Não é uma questão de opção de um
juiz ou de uma CPCJ", afirma ao DN, socorrendo-se de alguns
pontos: "Privilegia-se a aplicação da medida de acolhimento
familiar sobre a de acolhimento residencial, em especial
relativamente a crianças até aos 6 anos". Essa é, de resto,
uma das grandes novidades do regime de 2015, "que veio rever a
Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei 142/2015, de
8/9) - até aos 6 anos, prefere-se esta medida à do acolhimento
residencial. É o reconhecimento de que a criança se desenvolve
melhor nos primeiros anos de vida em ambiente familiar e não
institucional ou residencial".
Para
acolher uma criança tem de se ter entre 25 e 65 anos
Paulo
Guerra sabe que "não temos hoje famílias de acolhimento em
número suficiente", o que desdobra por várias razões: "As
pessoas ainda querem uma criança só para si. Não há muita
tradição neste acolhimento e há falta de empenho estatal na
publicitação do instituto, além de pouca solidariedade humana
entre os portugueses." Defende, por isso, "uma campanha de
captação de novas famílias", promovendo a medida junto dos
agentes locais (CPCJ, Tribunais e Segurança Social), a par da
criação de uma "bolsa de famílias". Ao DN, o Instituto
da Segurança Social confirmou essa intenção, embora não haja
ainda data para avançar. O juiz lembra os estudos que "têm
vindo a demonstrar o impacto negativo da residencialização em
crianças pequenas. Os benefícios de as manter com famílias são
incontestáveis no que diz respeito à sua saúde, desenvolvimento e
felicidade". Sublinha ainda que no caso dos bebés que são
institucionalizados antes dos 6 meses estes "apresentam atrasos
de desenvolvimento persistentes".
Fonte:dn.pt/sociedade
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