Em tempos mais normais, a morte de Leonard Cohen, aos 82 anos, teria já merecido um Macroscópio. Mas estes não são tempos normais e, como os leitores sabem, esta newsletter tem andado muito ocupada com o tema que também, julgo, ocupa mais as nossas preocupações: o nosso future comum nestes novos dias de Trump. Cohen não merecia o adiamento, até porque Cohen era o exemplo de tudo o que o novo president dos Estados Unidos não é. E não falo do seu talento como artista – falo da sua elegância e sensibilidade, da sua sensibilidade e boa educação.
Boa educação. E se essa fosse também uma forma de resistência? A ideia não é minha, é de um crítico de música do Financial Times, Ludovic Hunter-Tilney, que hoje publicou um texto onde defende que Politeness is the best form of resistance, onde lembra que “Courtesy insists we treat each other kindly when confronted with spite and bile”. E fá-lo inspirando-se precisamente no exemplo de Cohen: “Properly deployed, politeness is a kind of activism. It insists that we should treat each other kindly, a word derived from “kin”. Leonard Cohen’s death last week brought this home to me. In concerts, he serenaded his audience on bended knee and told self-deprecating jokes. Each one of the thousands observing him felt as though they were individually valued. In him, good manners and good morals were as one. I shall do my best to follow his example. It is time to reclaim politeness from hypocrisy in order to wield it against rudeness.”
Mas não era só nos concertos que Cohen nos fazia sentir como se cada um de nós fosse a pessoa mais importante do mundo – também o fazia nas suas relações pessoais, como relata David Remnick, da New Yorker, em Leonard Cohen Makes It Darker, uma reportagem escrita há pouco mais de um mês, aquando da saída do mais recente, e derradeiro, album de Leonard Cohen. Nessa altura visitou-o na sua casa, modesta, em Los Angeles, e conta como foi recebido: “Hello, friends,” he said. “Please, please, sit right there.” The depth of his voice makes Tom Waits sound like Eddie Kendricks. And then, like my mother, he offered what could only have been the complete catalogue of his larder: water, juice, wine, a piece of chicken, a slice of cake, “maybe something else.” In the hours we spent together, he offered many refreshments, and, always, kindly. “Would you like some slices of cheese and olives?” is not an offer you are likely to get from Axl Rose. “Some vodka? A glass of milk? Schnapps?” And, as with my mother, it is best, sometimes, to say yes.” Mas esta é apenas uma das pérolas deste texto onde se fala daquele disco onde já se antecipava o fim iminente.
Bruno Vieira do Amaral também escreveu em Outubro, no Observador, sobre esse mesmo álbum, e intitulou o seu artigo, sem preconceitos, A missa fúnebre do irmão Cohen. Nele escreve que, “Agora que tem as contas arrumadas, literalmente, Leonard Cohen diz-se preparado para morrer. É por isso que este novo álbum tem o som de um adeus antecipado, com a carga religiosa de muitas das suas músicas sublimada pela proximidade da morte e de um tête-à-tête despojado com Deus. Com o fim a aproximar-se, Cohen perde o pudor e desafia o Todo-Poderoso para um último combate. Como sabe que o vai perder, permite-se ser sincero e mostrar-se vulnerável (e assumir a vulnerabilidade é também uma derradeira manifestação de força), “eis-me aqui, estou pronto, vamos lá”, sem perder no entanto o humor e um cinismo que nunca azeda.”
Leonard, que a sua idade já se despedira de muitas amigos, talvez tenha sentido de forma especial a partida, o Verão passado, de Marianne Ihlen, a sua musa dos anos 1960, a norueguesa que encontrou numa ilha grega, num dos momentos mais criativos da sua vida, alguém que imortalizou em “So long, Marianne”, como o Observador recordou na altura, valendo a pena recordar a carta de despedida que Cohen, ao saber da sua doença terminal, lhe enviara: “Chegámos a um tempo em que somos tão velhos que os nossos corpos se desfazem; penso que serei o próximo, dentro em pouco. Quero que saibas que estou tão próximo de ti que, se estenderes a mão, talvez possas tocar a minha. Sabes que sempre amei a tua beleza e sabedoria, mas não preciso de discorrer sobre isso porque já sabes de tudo perfeitamente. Quero apenas desejar-te boa viagem. Adeus, velha amiga. Todo o amor, encontramo-nos no caminho.”
Na altura Pedro Mexia também escreveu no Expresso um belo texto, Quase jovens, onde notava que “Marianne Ihlen é a grande musa contemporânea, a personificação do conceito de longing, ou seja, de saudade, desejo, melancolia. Durante uma década, Cohen escreveu muitos poemas sobre o sublime fugaz.”
E como bem escrevia Cohen, algo que quase todos os obituários recordaram. Muitos a tratá-lo quase como um próximo, como fez o encenador Alexandre Borges no Observador, em Adeus, Mr. Cohen – “Cohen, como Bowie, não era só importante; era íntimo. Lá de casa. Muito nosso. De todos nós. Multiplicado. Não como uma coisa para a multidão. Cohen era a colecção das nossas solidões. A canção que todos podíamos estar a cantar para dentro, achando sempre que, ao lado, ninguém a entendia como nós.” –, Henrique Monteiro no Expresso em Declaração de amor por Leonard Cohen – “So long, Leonard, sabes que por todo o lado no mundo houve e haverá quem te compreenda, quem ame o que tu amas, quem te perdoe. Hallellujah!” – ou Pedro Vieira, de novo no Observador, em Toma conta dele, Marianne – “Há quem vá buscar os seus modelos masculinos a Chuck Norris. Ou a Sylvester Stallone. Ou a Édipo, nos casos mais gravosos. Há quem emule Donald Trump e quem suspire por Casanova. Mas ninguém mostrou o caminho como Leonard Cohen, persona que é sinónimo de classe, de charme, de grandes canções, poemas e personagens.”
Este registo de relação muito pessoal foi também o de Emilio Lezama no El Pais, em Leonard Cohen: el seductor de las tinieblas: “La adolescencia comienza con el descubrimiento de Suzanne. De eso no tengo duda. Pienso en aquella frase: “sabes que está medio loca, pero por eso quieres estar con ella” como el epítome del amor adolescente. Recuerdo la sensación de plenitud y tranquilidad que sentí la primera vez que escuché su voz y entendí sus palabras; su halo reconfortante, como un sabio que ha entendido que las cosas más sencillas de la vida están llenas de misterio; que el amor solo puede ser heroico y elegante. Pasé horas escuchando a Leonard Cohen, tratando de apropiarme su mística, anonadado por su refinada seducción. Aprender a amar como Cohen: esa es la consigna bajo la cual tendríamos que aspirar a vivir.”
Prosseguindo com esta forma de abordagem quase confessional, há um texto que gostava de destacar em especial, até porque nos conta como a notícia da sua morte afectou o seu dia de trabalho na Rádio Radar. Falo de Um impermeável para as lágrimas, um texto que Inês Maria Meneses publicou no Observador, um texto onde também confessa que “Sempre me intrigou este homem que já era velho há muito tempo. Que descobriu religiões e credos diferentes porque mal de quem tenha certezas imutáveis. Não se faz poesia com certezas. Faz-se da falha e da dúvida e do medo da morte. Hoje a minha filha disse-me: “ainda bem que o ano está a acabar”. A minha filha aos 8 anos já sabe que a vida se faz de demasiadas incertezas. O tempo que vivemos é aquele que nos serve de amostra: 2016 é o ano que não nos garantiu nada: foi-nos empurrando devagarinho para o precipício enquanto alguém dizia – claro que não vais cair. E fomos…”
Este trecho dá-nos passagem para muitas outras abordagens de Leonard Cohen, mas aquele que gostaria de destacar agora é a da sua relação com Deus, e não necessariamente o seu Deus das suas raízes judaicas. O teólogo Alexandre Palma escreveu no Diário de Notícias uma reflexão ao mesmo tempo atrevida, desconcertante e sedutora sobre aquele a que chamou Cohen teólogo: “Cantando e escrevendo, Cohen pensou, desabafou, rezou, amou. Sempre com aquele jeito cavalheiresco cultuado noutras eras. Porque assim era, um gentleman em palco e fora dele. Honrou assim o nome que celebrizou. Foi kohen, isto é, sacerdote, fazendo das letras e da música como que um santuário. Porque a forma mais recorrente de Deus na sua obra será mesmo a da invocação. E também assim se faz e fez teologia.”
Não pensem que estamos perante uma abordagem bizarra pois não faltaram outras reflexões sobre esta faceta de Cohen. No diário israelita Haaretz, Michael P. Kramer escreveu sobre como Leonard Cohen's Mysterious View of God Left This Religious Jew Breathless. Algo que explica assim: ““Hallelujah” is not a simple song, despite its numbing ubiquity and its appearance in the animated children’s film, Shrek. It engages the Psalms and the figure of the biblical David seriously and critically, contemplates the close connection between sexual desire and spiritual longing, the blurred boundary between sacred and profane, confronts the ebb and flow of ecstatic experience, the flawed lives we live and the humbling, art-inspiring sublimity of divine. (“There’s a crack in everything,” he would later write in “Anthem – whose melody is reprised in his new song, “Treaty” – but “that’s how the light gets in.”) “Hallelujah”’s reading of the Bible is revelatory, a powerful example of what it means to write within a tradition without being stymied by it.”
É um tema a que regressa também Leon Wieseltier no New York Times, em My Friend Leonard Cohen: Darkness and Praise. Só que agora sublinhando a profunda humanidade do poeta e trovador – a humanidade de um pecador: “Leonard had an unusual inflection for darkness: He found in it an occasion for uplift. His work is animated by a laudatory impulse, an unexpected and profoundly moving hunger to praise the world in full view of it. His attitude of acceptance was not founded on anything as cheap as happiness. Leonard sang always as a sinner. He refused to describe sin as a failure or a disqualification. Sin was a condition of creatureliness, and his feeling for our creatureliness was boundless. “Even though it all went wrong/ I’ll stand before the Lord of song/ With nothing on my tongue but Hallelujah!”
E assim chegamos ao fim, e a um texto que de alguma forma nos permite regressar ao início, ao exemplo cívico e humano de Leonard Cohen, algo de que trata Liel Leibovitz, do site judaico Tablet, em Goodbye, Leonard: “In the years I’ve spent closely listening to him, Leonard Cohen has taught me many things: how to think about history, how to read a poem, how to chase God. But the greatest gift he gave me, maybe, is showing me how to be kind. Of his many and considerable talents, this gift for healing was, perhaps, his finest, and in the days and weeks and months that followed our meeting I found myself emulating him, opening my heart and inviting others to unburden theirs.”
Que nos sirva de inspiração, no descanso, nestas e noutras leituras, e sobretudo na vida que prossegue amanhã.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt
Subscreva
as nossas Newsletters