Fechou-se um capítulo, abriu-se outro. Saiu (vai sair) António Domingues, entre (ou vai entrar) Paulo Macedo. A novela da Caixa Geral de Depósitos está longe de chegar ao fim mas este é uma boa altura para olhar para o que correu mal com António Domingues. De uma forma genérica, se exceptuarmos comentadores ligados a partidos – como Francisco Louçã –, a generalidade das opiniões são sobretudo críticas das forma como os políticos e os partidos (todos os partidos) lidaram com este processo. E parecem convergir num ponto: é difícil libertar a CGD das suas amarras políticas, pelo que o desafio que Paulo Macedo enfrenta é imenso se quiser preservar a sua independência de gestão.
Sem preocupação de ser sistemático, eis alguns dos textos mais significativos dos últimos dias:
- Caixa: um manual das piores práticas, de Paulo Ferreira no Eco, uma recapitulação dos momentos chaves do último ano, que fecha com uma comparação pertinente: “Há precisamente quatro anos, a Inglaterra precisou de recrutar um novo governador para o banco central. O mandato do governador em funções estava a acabar e era preciso escolher um substituto. Foi lançado um concurso internacional para o cargo. O então vice-governador era o favorito mas quem acabou por ficar com a posição foi um canadiano. Sim, um estrangeiro na liderança do banco central de um país que tem moeda e política monetária próprias. Quando estaremos preparados para colocar em posições chave alguém com competência mas cujo número de telemóvel não esteja nas listas de contactos do quem-é-quem partidário e empresarial?”
- A Caixa e o Costa (mais o coitado do Ricardo Salgado), uma análise que eu próprio escrevi no Observador onde recordo algumas declarações de António Costa e Mário Centeno e considero que as escolhas políticas que fizeram são perigosas. No fim destaco duas preocupações: “A primeira é que a reforma do sistema financeiro devia estar a ser feita na base de um grande consenso entre os partidos europeístas, e não com base nos equilibrismos necessários para manter o apoio de partidos (PCP e Bloco) que têm deste sistema uma visão em tudo oposta às regras europeias e ao funcionamento de uma economia de mercado. A segunda é que essa reforma está a ser dirigida por alguém que não foi capaz de esconder a sua nostalgia pelo tempo em que o banco de Ricardo Salgado medrava à custa de cumplicidades governamentais e fraudes internacionais. Por mim, este é um quadro não dá para dormir descansado. Tal como uma andorinha não faz a primavera, dois homens competentes – António Domingues e Paulo Macedo – não garantem só por si que o ADN do sistema deixa de ser o que é. Como tudo o que se passou nos últimos meses tem vindo a demonstrar à exaustão.”
- Golpe do regime na Caixa Geral de Depósitos, um longo texto de José Gomes Ferreira na SIC Online, onde o jornalista e comentador defende que Domingues caiu porque queria mesmo acabar com as perigosas ligações entre a política e a política de crédito da instituição: “As exigências de novas garantias aos créditos concedidos vão aumentar; as diligências para recuperar pagamentos em atraso vão apertar; Os financiamentos correntes vão secar: Os novos créditos vão desaparecer para alguns dos beneficiados do Regime. E podemos pôr nomes nestes grandes devedores à CGD: Grupo Lena, José Berardo, Grupo EFACEC de Isabel dos Santos, Vale do Lobo, grupo Artlant (La Seda), Auto Estradas do Douro Litoral do Grupo Mello, que também tem outros créditos da CGD, Grupo António Mosquito dono do DN e JN, etc., etc. Os políticos que gravitam em relação de proximidade (e em muitos casos de promiscuidade) com os grandes grupos económicos perceberam rapidamente o filme: se a CGD apertar a malha do controlo do crédito concedido, exigindo novas garantias, e cortar financiamentos correntes e novos créditos, muitos grupos económicos que se encontram num limbo de pré-insolvência podem entrar numa zona de clarificação acelerada, ser obrigados a fechar empresas, despedir pessoal, vender activos e, no fim da linha, os seus donos e gestores que ainda são muito influentes podem perder muito poder.”
- Caixa: O impossível e a verdade, uma crónica carregada de ironia de João Vieira Pereira, no Expresso Diário (paywall) onde descreve várias “impossibilidades” que se materializaram uma atrás de outra, concluindo: “Eliminados todos estes pontos, a única razão que sobra para justificar a demissão só pode ser a falta de apoio político. Ou como se diz informalmente, o Governo tirou-lhes o tapete. Mesmo que seja altamente improvável que, depois de terem apresentado Domingues como a melhor solução para gerir a Caixa, tenham mudado de opinião em menos de 90 dias.”
- CGD: Um peixinho entre tubarões, um texto de Henrique Monteiro no mesmo Expresso Diário (paywall) onde começa por “finalmente” tirar o chapéu a António Domingues – “Não por se ter demitido, embora provavelmente já não tivesse outra hipótese, mas por concluir que não se pode nadar num tanque de tubarões. Ao entregar a sua declaração de rendimentos e demitir-se, demonstrou o que todos instintivamente já sabíamos: não era ele o problema; o problema foi de quem o pôs à cabeça do touro e se retirou para o burladero, deixando-o sozinho na arena depois de lhe ter prometido todo o empenho do mundo.” Pelo que, mais adiante, sublinha: “E o Governo apoiou Domingues? Não! Depois de perceber que não tinha hipóteses, escondeu-se. O primeiro-ministro, com o seu ar de “não é nada comigo”, quando lhe perguntaram pelo assunto respondeu que já tinha entregado a sua declaração. Os jornalistas contentam-se com tudo o que Costa diz. Felizmente para ele, infelizmente para o país. E engoliu. O mau da história estava encontrado – era Domingues.”
- Fora do Estado não há salvação, a crónica de João Miguel Tavares no Público que segue uma linha de raciocínio muito semelhante: “Tirando António Lobo Xavier, que o conhece do BPI, e mais dois ou três jornalistas que algum dia terão contactado com ele, Domingues não teve absolutamente ninguém que saísse em sua defesa. O senhor é com certeza muitíssimo competente, mas só com competência ninguém vai longe dentro do Estado português. Um outsider ou se adapta rapidamente aos métodos da casa ou naufraga ao primeiro escolho. Como acabou por acontecer. Domingues achou que a palavra dada contava mais do que a sobrevivência política. Não conta. Fora do Estado não há salvação: é suprema ingenuidade acreditar que um monstro da dimensão da Caixa Geral de Depósitos pode realmente vir a ser despolitizado e gerido com a independência que todos desejávamos. Domingues foi usado e deitado fora.”
- Banca, o lado negro do voluntarismo de António Costa, um balanço de Camilo Lourenço no Jornal de Negócios onde se recordam as diferentes intervenções do Governo na banca desde que tomou posse (Banif, BPI, BCP, agora a Caixa), para concluir que, “Se Portugal precisava de um manual sobre como não lidar com bancos só precisa de olhar para a forma como o primeiro-ministro tem lidado com o setor. Só há uma coisa estranha nisto tudo: porque é que o Presidente da República aceita patrocinar este desastre.”
Mas se esta tem sido a nossa agenda doméstica nas últimas semanas, a verdade é que este domingo tem duas consultas eleitorais que podem ter um enorme impacto no nosso futuro comum e das quais talvez não se tenha falado o suficiente em Portugal, tão habituados que estamos a olhar sobretudo para a nossa modesta intendência. Já me referi a ambas em anteriores edições do Macroscópio, pelo que hoje só as vou recordar, pois creio que teremos muito que falar para a semana. Refiro-me, como já terão compreendido, à eleição presidencial na Áustria e ao referendo em Itália.
Hoje, no Observador, Edgar Caetano recordou-nos o que pode estar em jogo num especial que, como indica o título, se centrou mais no que se pode passar no pequeno país encravado entre os Alpes e o Danúbio. Em Vem aí um Presidente de extrema-direita no euro? recorda-nos que “Na próxima segunda-feira, 5 de dezembro, a União Europeia pode acordar com um pântano político em Itália, se os eleitores rejeitarem as alterações constitucionais pedidas por Matteo Renzi e o primeiro-ministro, por essa razão, se demitir. Adivinha-se uma manhã comparável às de 24 de junho, com o Brexit, e de 9 novembro, com a eleição de Trump — e, no meio de uma agitação que o Banco Central Europeu irá tentar acalmar, pode escapar à atenção de muitos a eleição do primeiro chefe de Estado de extrema-direita na zona euro, na Áustria.” E esta é bem possível, pois a maioria das sondagens dá-lhe uma vantagem ligeira, mesmo sendo o resultado muito incerto.
O Wall Street Journal também chamou hoje a atenção para esta ida às urnas em Europe’s Forgotten Election: Spare a Thought for Austria, sublinhando que “Investors will be watching out for the result of Italy’s constitutional referendum Sunday. They shouldn’t forget Austria’s presidential vote.”
Quanto a Itália, já aqui referimos que, apesar das ondas de choque que uma derrota (e posterior demissão) de Mateo Renzi pode enviar através da Europa, não são poucos os que pensam que a sua reforma constitucional merece mesmo assim ser chumbada (como a revista The Economist). Mesmo assim a verdade é que, como se escreve na Spiegel, Europe Holds Its Breath Ahead of Italian Vote. Nessa detalhada análise recorda-se como Renzi decidiu jogar tudo numa consulta eleitoral e levou muito tempo a perceber que o tiro podia sair pela culatra (como sucedeu a David Cameron no referendo do Brexit, por exemplo): “Only after Grillo's Five Star Movement secured the city halls of Rome and Turin in June did Renzi and his backers begin rethinking the matter. Though he exuded confidence on the day after the municipal elections and claimed that mayoral elections "are not predictive of national politics," the elephant had nevertheless suddenly entered the room: What would happen if the extended powers created by the constitutional reform and a new election law fell into the wrong hands?” Nesse trabalho publica-se um gráfico sobre a evolução da produtividade nos vários países da Europa onde é possível ver que a Itália é aquele onde este teve uma evolução mais lenta, quase a par mas ainda pior do que a evolução registada em... Portugal:
Mas que raio de movimento é este que causa tantos calafrios? Algo difícil de definir, como se reconhece na reportagem do Politico The Italian movement that could remake Europe: “The 5Star Movement doesn’t fit neatly into the traditional left-right division in Italian politics. The fight against corruption is its banner issue, with every headline of bribe-taking or fraud contributing to a bump in the polls. The party’s key initiatives — the “five stars” from which it takes its name — are protecting the environment, ensuring that common goods like water stay in public hands, making internet access a fundamental right and promoting sustainable development and sustainable transport.”
Acontece porém que não é apenas este movimento animado por um comediante que faz campanha pelo “não”. Quase toda a oposição alinha pelo mesmo diapasão, e é interessante conhecer os argumentos do líder de um desses partidos, a separatista Liga Norte, sendo que o seu líder, Matteo Salvini, escreveu hoje um texto no Financial Times a expor os seus argumentos. Trata-se de Renzi’s reforms leave Italy’s real problems untouched, nele se defendendo que “If Matteo Renzi, the prime minister, falls as a result it will be his fault. He has bet his political future on a package of reforms that have nothing to do with the fundamental problems Italy faces. The truth is that after the governments of Mario Monti, Enrico Letta and Mr Renzi, economic growth is anaemic and there is no light at the end of the tunnel.”
O crescimento, sempre o crescimento ou a falta dele, esse mal com que se debatem as economias avançadas, sendo certo que não têm mostrado capacidade para melhorar os dados da situação. A frustração das expectativas dos eleitorados tem sido um dos factores que ajuda a explicar a ascensão dos populismos e, nalguns países, o claro recuo das democracias liberais, pelo que termino o Macroscópio de hoje com uma sugestão de leitura um pouco mais longa mas muito pertinente por aborda precisamente os riscos que corremos. We Cannot Take Liberal Democracy For Granted é um ensaio de Amichai Magen na Standpoint onde constata – e não é o primeiro a fazê-lo – que “The free world is once again facing real and determined competition from anti-liberal forces that have taken root in its internal political space and are undermining the international order it has painstakingly constructed from the blood-soaked ashes of the First and Second World Wars. If we continue to take for granted the peace, freedom, and prosperity brought to us by the global spread of liberal democracy we will not continue to enjoy these blessings for long.” Por isso dá algumas sugestões sobre o que devemos fazer se queremos defender as democracias liberais, nomeadamente:
First, we must overcome our current complacency about the historical “inevitability” of democratic progress. The heady exuberance experienced in the West at the end of the Cold War (a mood famously captured in Fukuyama’s “The End of History” essay in the summer of 1989) has abated, but its anaesthetic effects are still hard at work on our collective psychology. We need to wake up from the dream of democratic historical determinism. The arc of the moral universe may indeed be long, but it doesn’t bend towards justice, or liberty, of its own volition. If we continue to take political and economic liberty for granted — at home and abroad — if we continue to shy away from actively protecting and reinvigorating them, we should expect to eventually lose them.
É sexta-feira, já um pouco tarde, teremos frio e chuva este fim-de-semana, pelo que espero que algumas destas sugestões vos sejam úteis como guias de leitura para o tempo em que o mais convidativo for o sofá lá da sala. Tenham um bom descanso, reencontramo-nos para a semana.
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