Donald Trump já é Presidente dos Estados Unidos. Jurou a Constituição colocando a mão sobre duas Bíblias – a sua e a do Presidente Lincoln – e fez um discurso que dissecaremos na próxima segunda-feira. Ou melhor, veremos como foi lido e dissecado um pouco por todo o mundo. Por hoje vamos apenas apresentar uma selecção de alguns artigos e editoriais sobre o que pode vir a ser uma Presidência Trump, mas fazendo-o com uma preocupação: a humildade. Nenhum político enganou tanto os analistas e os cientistas políticos como o novo inquilino da Casa Branca, no sentido de que frustrou uma vez a seguir a outra e a outra todos os seus prognósticos. Para além disso, como estamos a entrar numa espécie de novo mundo cujas regras desconhecemos, os textos que escolhi fogem deliberadamente ao catastrofismo dominante. Alguma variedade de análises talvez ajude mais a pensar que a cacafonia dominante, em especial nos que são chamados a opinar nos órgãos de informação portugueses, com destaque para as televisões.
Antes de seguimos para essas análises, apenas lembrar as peças mais importantes que o Observador publicou nos últimos dois dias sobre Donald Trump e o que se espera da sua Presidência:
- "Trump Revelado": como Donald conquistou a América, uma pré-publicação de um livro que resulta de uma imenso trabalho de investigação de jornalistas do Washington Post;
- Donald Trump de A a Z, onde João de Almeida Dias sistematiza o essencial das ideias, propostas, falhas e tudo o mais que se pode saber e escrever sobre Trump;
- Quem é e quanto vale a nova equipa de Trump, um conjunto de gráficos interactivos preparados por João Francisco Gomes onde se apresentam os membros do nobo executive;
- Mindy e Andrea, ou duas formas de ver Donald Trump numa só rua de Baltimore, uma reportagem de João Almeida Dias – que está nos Estados Unidos para a “inauguration” – numa cidade que, não ficando longe de Washington DC, não é Washington DC.
- "Negros, castanhos ou brancos, temos todos o mesmo sangue", um das frases ditas pelo novo Presidente no seu discurso de 20 minutos e que é uma das entradas do liveblog onde aponanhámos ao minute a tomada de posse.
De entre os textos que me pareceram sintetizar melhor o ambiente que se vive em Washington, começo por destacar um comentário do analista conservador George F. Will publicado no Washington Post: Trump is the waterbeetle of American politics, and he’ll keep on flabbergasting. Chamar escaravelho da água ao novo inquilino da Casa Branca não será a forma mais delicada de se lhe dirigir, mas este republicano que sempre criticou Trump considera que “Leaving aside the missing element of grace and the improbability of his ever stopping to think, Donald Trump is the waterbeetle of politics. His feral cunning in manipulating the masses and the media is, like the waterbeetle’s facility, instinctive. The 72 days of transition demonstrated a stylistic seamlessness with his 511 days of campaigning, which indicates that the 1,461 days of his term that begins Friday will be as novel as his campaign was.”
Depois de termos ouvido o discurso inaugural ficamos de facto com a sensação de que Trump continuará fiel ao que disse em campanha – ou seja, ao que desesperou Washington DC e lhe deu os votos que lhe permitiram ganhar as eleições. Este ideia de que Washington DC ainda não digeriu bem o que se passou está bem patente na crónica de um correspondente da BBC, Paul Wood, crónica essa escrita para a Spectactor, Will Donald Trump be assassinated, ousted in a coup or just impeached? Em síntese, “Conversations in Washington have taken on a hallucinatory quality. Impeachment — however far-fetched an idea — is not the most outlandish possibility being discussed in this town as the 45th president is sworn into office.”
Julgo que Rui Ramos capturou bem o tipo de “negacionismo” que percorrer alguns meios nos Estados Unidos na sua crónica de hoje no Observador, Qual o maior perigo: Trump ou os inimigos de Trump? Nela argumenta que parece estarmos a assistir a tal inversão de papéis que os que antes se apresentavam como críticos dos métodos e da linguagem de Trump parecem agora adoptar alguns dos seus métodos: “Se bem se lembram, uma das coisas em desfavor de Trump durante a campanha foi a possibilidade de ele nunca aceitar a vitória de Hillary Clinton. Que mais clara prova podia haver de “fascismo” do que a tentativa de subverter uma eleição? Mas o mundo era assim quando a presidência parecia ganha para Clinton. Porque logo que Trump, contra toda a sabedoria científica e mediática, teve o desplante de vencer, o mundo mudou imediatamente, e passou a ser sinal de probidade democrática resistir à escolha do eleitorado e pôr em causa a autenticidade do processo.”
Na verdade Trump venceu, porque venceu nos estados decisivos para ganhar no colégio eleitoral, e nos Estados Unidos, mesmo sabendo-se que são essas as regras e é isso que conta, não têm faltado ataques à sua menos legitimidade por ter tido menos votos do que Hillary no conjunto do país. Há no entanto quem, mesmo continuando a ser muito crítico das propostas políticas do novo Presidente, entenda que é altura de ele mostrar o que vale. É o caso, por exemplo, da The Economist, que no seu principal editorial desta semana, The 45th president, entende que deve “Start with the optimism. Since November’s election the S&P500 index is up by 6%, to reach record highs. Surveys show that business confidence has soared. Both reflect hopes that Mr Trump will cut corporate taxes, leading companies to bring foreign profits back home. A boom in domestic spending should follow which, combined with investment in infrastructure and a programme of deregulation, will lift the economy and boost wages.” Será que nesta frente o plano vai correr como prometido? A revista alerta para os riscos de não ser assim, tal como alerta para o perigo de algumas das ideias do novo Presidente: “The idea running through Mr Trump’s diplomacy is that relations between states follow the art of the deal. Mr Trump acts as if he can get what he wants from sovereign states by picking fights that he is then willing to settle—at a price, naturally. His mistake is to think that countries are like businesses.” Tudo antes de concluir que “As Mr Trump assumes power, the world is on edge. From the Oval Office, presidents can do a modest amount of good. Sadly, they can also do immense harm.”
O editorial do Wall Street Journal segue uma orientação semelhante, porventura ainda mais generosa para com o novo Presidente. Em The Audacity of Trump sublinha-se que “The public dislikes his temperament but still believes he can deliver policy success.” Duas passagens significativas de um texto relativamente longo:
- “So many elites expect him to fail that even small early successes will confound them. So many on the left are predicting the rise of fascism that he can make them look foolish by working well with Congress. So many in the media will portray him as the leader of a gang of billionaires that he can turn the tables with an up-from-poverty and education choice campaign.”
- “The Never Trump opposition will be fierce, but the public will await the results. President Trump’s success will depend above all on delivering on his promises of prosperity at home and greater respect for America abroad.”
Um dos riscos da actual situação é que as “duas Américas” não só não se falam, como já nem sequer parecem querer perceber o que se pensa do outro lado, do lado dos que têm ideias diferentes. É por isso que achei interessante um texto da escritora alemã Thea Dorn publicado no Handelsbatt, More Tolerance, Less Extremism, onde ela apela aos alemães para serem capazes de ouvirem uns aos outros de forma a evitar os extremismos: “So I don’t believe that we have a chance of survival if we succumb to the present tide of uncivilized, boorish, hate-spewing behavior. Do we really want to risk everything our ancestors attained over many centuries by allowing ourselves to be incited to tear each other apart by two dogmatic, hostile camps?”
Nos Estados Unidos (e não só) isso parece cada vez mais difícil, pelo que não posso deixar de vos chamar a atenção para o testemunho, no Wall Street Journal, de Mitchell Lee Marks, professor numa universidade californiana, gay, e que só agora teve coragem para afirmar que apoiou Donald Trump. Em Coming Out—This Time for Trump ele escreve que, “Worse than Mr. Trump’s inconsistencies, however, are those of his detractors. They cite his lack of inclusiveness yet discount that tens of millions of Americans voted for him, and he won 30 states. I am as afraid about acknowledging that I voted for Mr. Trump today as I was about being gay yesterday. There seems to be as little understanding of my political views as there was about my sexual orientation.”
Mas regressemos aos analistas, dando agora abertamente a palavra a comentadores moderados que estão muito pessimistas. É o caso de Jorge Almeida Fernandes, no Público, que em A presidência perigosa escreve que “É muito cedo para discutir cenários de catástrofe. Trump deve ser levado a sério mas ainda não sabemos o que ele vai exactamente fazer. Pode ser travado por um fiasco na economia ou pelo pesado muro das realidades geopolíticas. Os Estados não são negócios.”
Ou do publisher e editor do semanário alemão Die Zeit, Josef Joffe, que numa coluna no Guardian, Trump has bared his fangs to Merkel. He will do untold damage to Europe, retoma a ideia de que estamos como que a recuar no tempo, regressando a tempos muito perigosos e semelhantes a alguns vividos no século XX: “Does this sound like a remake of the 1920s and 1930s? It does – 100 years later. The first world war ended Globalisation 1.0, circa 1850 to 1914, Trump promises to bring down Globalisation 2.0, born in the 1970s. How could he possibly pull it off, given that economic and financial integration from Berlin to Beijing has increased a hundredfold since then? Autarky and protectionism make no economic sense, but guess what? Trump, for all his inchoate tweets, has already succeeded in shifting the terms of the debate. He has validated Brexitism and populism that unite left and right in common resentment.”
Finalmente, numa coluna no Observador, o historiador Timothy Garton Ash faz, em Bem-vindos ao admirável mundo novo do nacionalismo, previsões alarmantes depois de analisar o que se passa em várias regiões do mundo, como o mar do sul da China – “Uma parte disto é simplesmente a tradicional dança entre as grandes potências mundiais competindo por influência entre elas próprias e terceiros. Porém, o risco de um confronto naval ou aéreo algures nos mares do sul ou do leste da China não é de todo negligenciável.” –, para concluir sombriamente: “Não, não estou a antecipar a Terceira Guerra Mundial. Mas uma versão no século XXI de uma crise dos mísseis de Cuba? É perfeitamente possível. Por isso, não alimentemos ilusões. (…) Não se deixem enganar. Estamos às portas de uma viagem muito perigosa, que se prolongará pelos próximos anos, e temos que nos preparar para ela.”
Entretanto, recordo, Trump falou e, no momento em que escrevo, Washington DC prepara-se para as celebrações que sempre marcam um dia de tomada de posse. Como será que o recordaremos daqui por uns anos? Só o saberemos bem lá mais para diante, mas prometo regressar na segunda-feira com mais ecos deste dia tão marcante. Bom fim de semana. E agasalhem-se, que parece que o frio vai continuar por cá.
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