por Pedro Marques Lopes
Em Portugal, ninguém é
responsável por coisa nenhuma. E esse é um comportamento que atravessa toda a
comunidade.
Seis
pessoas correm o sério risco de cegar definitivamente, depois de lhes ter sido
administrado um medicamento.
A
notícia não tarda em sair das primeiras páginas dos jornais e dos noticiários
televisivos, trocada por umas importantíssimas discussões sobre listas de
deputados ou questionários de Verão.
O
Sir Humphrey Appleby de serviço já anunciou o habitual rigoroso inquérito para
apurar responsabilidades. Ou seja, daqui a uns anos, quando já ninguém se
lembrar do que se passou, vamos descobrir numa pequena nota, entre os anúncios
de penhoras e o aparecimento de um furúnculo ao Cristiano Ronaldo, que esclarecerá
que não houve propriamente culpa de ninguém em especial mas sim um conjunto de
pequenas falhas assacáveis a questões sistémicas. Quer dizer, há culpa de
todos, em geral, mas de ninguém em particular.
Seremos
também informados que, devido a uma profunda reforma nos processos, este tipo
de problemas não mais acontecerá.
Entretanto,
as vítimas irão interpor uma acção em tribunal para verem os seus danos
ressarcidos e os culpados por este crime punidos.
Entre
perícias, investigações e incidentes processuais correrão uns bons dez anos e o
desfecho mais provável será o arquivamento, por falta de indícios de
comportamentos negligentes ou culposos.
Se, por milagre, alguma
responsabilidade vier a ser apurada e os queixosos ainda estiverem vivos ou não
tiverem sido vencidos pelo cansaço, ser-lhes-á atribuída uma indemnização
ridícula e insultuosa.
Nada
disto é novo nem surpreende ninguém.
Em Portugal ninguém é
responsável por coisa nenhuma: uma ponte cai e morrem dezenas de pessoas e é
como se nada tivesse acontecido. Uma obra no metropolitano corre mal, atrasa-se
anos, e é-nos dito que foram uns pequenos erros de cálculo. Não há obra pública
que cumpra o orçamento e é considerado normal. Um Governo mente descaradamente
sobre o valor do défice - o caso de 2002 é uma vergonha nacional que, claro
está, nunca mais ninguém se lembrou de investigar para apurar responsabilidades
- e toda a gente assobia para o lado.
Mas, e a bem da verdade,
esta desresponsabilização não é, longe disso, exclusiva do Estado e demais
entidades públicas; é um comportamento que atravessa toda a comunidade.
Um agente de segurança é
baleado e não faltam vozes a pedir um enquadramento da situação. Um polícia dá
um tiro à queima-roupa a um cidadão de quinze anos e fala-se dos problemas de
fardamento das forças de segurança. Um banqueiro é preso por suspeita de
graves irregularidades e aparece logo alguém a dizer que devem ser presos todos
e, se assim não for, esse banqueiro deve ser libertado.
Num país que detesta a
liberdade, este tipo de comportamento é normal. É que a outra face da liberdade
é a responsabilidade. No fundo, não queremos ser mais livres porque não
queremos ser mais responsáveis.
Não
faz sentido condenar uma pessoa porque ela só faz sentido dentro de um certo,
lá está, enquadramento social, profissional ou cultural. Logo a
responsabilidade é do conjunto não individual.
Há
medida que nos vamos desresponsabilizando vamos também alijando a nossa
consciência de ser provido de vontade e livre arbítrio. Somos apenas parte
de uma máquina, de um processo massificado que tudo nos dá e tudo nos perdoa.
É
assim que se perde a consciência e os valores.
Quando
deixamos de acreditar na nossa capacidade de julgamento e de acarretar com as
consequências dos nossos actos, transferindo-as para o colectivo, deixamos de
ser senhores das nossas próprias vidas.
E assim vamos criando um
sistema que nos defende de nós próprios e que nos tira o mais precioso dos
valores: a liberdade.
DN, 26 de Julho de 2009
Comentário: vale sempre a pena recordar o que foi escrito no passado não muito longínquo, e que permanece arquivado.
Falar de culpa em Portugal é não ter a noção do País em que vive. Um banco é conduzido à falência, houve diversos alertas, nada se fez. De quem é a culpa? Dos contribuintes.
J. Carlos