Os exemplos de governantes que assumem publicamente a sua homossexualidade (e que se casam com parceiros do mesmo sexo) estão a tornar-se comuns na Europa. Os atuais primeiros-ministros da Irlanda e do Luxemburgo não escondem a orientação sexual, trilhando o caminho aberto por Jóhanna Siguroardóttir, em 2009, na pioneira Islândia. Em Portugal, pelo contrário, quase não há políticos homossexuais. E os poucos que “saíram do armário” nunca alcançaram os cargos mais importantes, com maior poder.
Na Irlanda, onde 78,3% da população declara ser católica, a homossexualidade só foi descriminalizada em 1993. Cerca de 24 anos depois, o novo primeiro-ministro Leo Varadkar é assumidamente homossexual. Na sequência da demissão do anterior primeiro-ministro Enda Kenny, em maio de 2017, Varadkar (até então ministro da Proteção Social) conquistou a liderança do partido Fine Gael no início de junho e foi depois confirmado no cargo de primeiro-ministro, através de uma renhida votação no Parlamento (57 votos a favor, 50 contra e 47 abstenções).
Com 38 anos de idade, Varadkar é o mais jovem primeiro-ministro irlandês de sempre, além de ser o primeiro homossexual assumido. É médico de formação e filho de um imigrante indiano. “Não sou um político meio-indiano, nem político médico nem sequer um político ‘gay’. Isso são algumas das minhas facetas. Não me defino só por isso”, afirmou Varadkar em 2015, quando assumiu publicamente a sua orientação sexual.
No Luxemburgo, o primeiro-ministro Xavier Bettel casou-se com o seu namorado de longa data, o arquiteto belga Gauthier Destenay, em maio de 2015. Tornou-se assim o primeiro líder político de um país-membro da União Europeia a casar com um parceiro do mesmo sexo. Bettel e Destenay já tinham oficializado a sua união de facto em 2010. Cinco anos depois foram um dos primeiros casais homossexuais a usufruir da alteração legislativa que estendeu o direito ao casamento a casais do mesmo género no grão-ducado. Bettel nunca escondeu a sua orientação sexual. “Se o fizesse, seria um infeliz. Nunca seria capaz de viver um relacionamento em segredo. E penso que quem quer estar na política deve ser honesto, o que implica dizer a verdade e também aceitar-se tal como é”, sublinhou o primeiro-ministro luxemburguês, na altura do seu casamento.
Na Islândia, em 2009, Jóhanna Siguroardóttir foi eleita primeira-ministra e passou a figurar nos livros de História como a primeira líder política assumidamente homossexual de um país europeu, ou ao nível mundial, não havendo registos (nos últimos séculos) de outros exemplos. Um ano depois casou-se com a escritora Jónína Leósdóttir (já viviam juntas desde 2002), ao abrigo de uma nova lei que passou a autorizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo na Islândia. Simbolicamente, casaram-se no primeiro dia de vigência da nova lei, aprovada no Parlamento em junho de 2010. Siguroardóttir nunca ocultou a sua orientação sexual, mas raramente aceitou falar sobre a vida privada enquanto foi primeira-ministra, até meados de 2013. O seu casamento em 2010 foi encarado com grande naturalidade pela sociedade islandesa, tendo sido alvo de uma maior atenção pelos meios de comunicação social estrangeiros, sobretudo europeus e norte-americanos.
Dimensão política da sexualidade
Os políticos homossexuais estão a “sair do armário” e a alcançar cargos de poder? Em Portugal ainda não. Além de serem escassos, os políticos portugueses assumidamente homossexuais estão longe dos cargos mais importantes, ou com maior poder. Serão mesmo assim tão poucos, ou há muitos que não assumem publicamente a sua orientação sexual? “No caso português creio que tem a ver sobretudo com a densidade dos laços pessoais e familiares. Se uma pessoa nunca se assumiu e se habituou a viver uma vida baseada na crença da separação entre o público e o privado, preocupada com as aparências, e também com muita homofobia interiorizada, é difícil assumir-se mais tarde na vida e justamente quando assume um cargo público”, responde Miguel Vale de Almeida, antropólogo e ativista LGBT.
“Por outro lado, assumir-se é um gesto que implica consciência política sobre a discriminação. E as pessoas LGBT envolvidas na política não são necessariamente conscientes da dimensão política (de poder e controlo) do género e da sexualidade”, acrescenta Vale de Almeida, um dos raros políticos portugueses (foi deputado à Assembleia da República entre 2009 e 2011, eleito nas listas do PS, com o estatuto de independente) assumidamente homossexual.
A discriminação por orientação sexual é mais intensa na política do que nas demais atividades profissionais? “É-o sobretudo em atividades marcadas por crenças e esterótipos de género. Se a atividade for muito masculinizada, ou os valores a ela associados forem historicamente marcados por uma simbologia da masculinidade. Daí a política, mas também o desporto em geral (e o futebol em particular), ou atividades manuais com pouca exigência de capital educacional formal,“ salienta Vale de Almeida.
O facto de haver primeiros-ministros assumidamente homossexuais na Irlanda, Luxemburgo e Islândia – sendo a Irlanda um país profundamente católico – significa que teremos alcançado um patamar civilizacional mais elevado (pelo menos na Europa Ocidental, em contraste com os retrocessos visíveis na Turquia e na Rússia, por exemplo), no qual os homossexuais podem ser eleitos e exercer cargos de poder político, sem discriminações? Ou trata-se apenas de casos isolados? “Também quando houve avanços legais em Portugal, muita imprensa estrangeira se perguntava como tinha sido possível num país católico como Portugal. Acontece que descrições genéricas como ‘país católico’ são meramente formais, importando sim a substância: que catolicismos? O que quer dizer para as pessoas que dizem ser católicas a frase ‘sou católica’? Se houvesse uma correspondência direta entre a afirmação e o que imaginamos que ela significa, nunca a IVG teria passado num referendo”, adverte Vale de Almeida. “Há mudanças sociais, geradas pelos movimentos LGBT e pela sua inclusão nas agendas de vários partidos e dos estados, que permitem muito mais hoje em dia que haja políticos homossexuais assumidos. É, de facto, um progresso”, reconhece.
Por seu lado, Sandra Cunha, socióloga e atual deputada do BE, considera que “é um sinal importante de que as sociedades estão, gradualmente, a mudar, no sentido de um maior respeito pela diversidade, mais igualdade e menos preconceito. No entanto, há ainda muito caminho a percorrer, na sociedade portuguesa como na irlandesa, islandesa, luxemburguesa ou outras. Ao nível mundial não nos podemos esquecer que a homossexualidade ainda é ativamente perseguida, tanto ao nível social como ao nível judicial. Setenta e dois países criminalizam a homossexualidade e oito aplicam a pena de morte. Efetivamente, o caminho a percorrer é ainda muito longo”.
Sociedade “heteronormativa”
Relativamente à quase inexistência de políticos assumidamente homossexuais em Portugal, Cunha diz que “essa realidade decorre de diversos fatores. Por um lado, fazê-lo em Portugal ainda implica ‘ser notícia’, o que aniquila o direito à reserva e à vida privada a que qualquer outra pessoa tem direito. Por outro lado, muitas vezes, ‘sair do armário’ publicamente implica assumir-se na esfera familiar, porque se é uma figura pública. Nem sempre esses momentos coincidem para qualquer outra pessoa homossexual que não seja uma figura conhecida. Existem muitas variáveis que influenciam essa tomada de decisão e penso, sobretudo, que esses tempos pessoais devem ser respeitados, incluindo os dos políticos”.
Se mais políticos portugueses assumissem que são homossexuais, publicamente, não estariam assim a combater o preconceito? “Mais do que combater o preconceito, o facto de figuras públicas se assumirem como homossexuais pode ajudar, sim, a ‘normalizar’ a homossexualidade numa sociedade que ainda se organiza, e se pensa, em termos heteronormativos”, responde Cunha. “Não me parece avisado, contudo. estabelecer-se uma ligação de causalidade direta entre os políticos se assumirem e um aumento da representatividade política da comunidade LGBT. Na realidade, mesmo que os políticos não se assumam, não significa que não representem a comunidade LGBT no que são as suas reivindicações e necessidades, aliás, como o fazem políticos heterossexuais. Afinal, mesmo com poucos políticos assumidamente homossexuais, Portugal tem uma das legislações mais avançadas nesta área”, ressalva.
Na sua perspectiva, o que falta fazer em Portugal no combate à discriminação por orientação sexual? “Falta transpor a igualdade consagrada na lei para a vida real. O direito ao tratamento igual independentemente da orientação sexual é um direito constitucionalmente consagrado. No entanto, sabemos que a sociedade portuguesa ainda discrimina. Episódios como o do hotel em Afife que proibia o acesso a pessoas homossexuais ou o recente acontecimento na escola de Vagos são exemplos flagrantes dessa discriminação. No trabalho, vários estudos indicam que cerca de 50% das pessoas homossexuais não se assumem no local de trabalho. O receio do tratamento desigual no acesso ao emprego, na progressão nas carreiras ou mesmo o receio das alterações do ambiente e relacionamento com colegas impede muitas pessoas da liberdade enorme que é ser-se, simplesmente, quem se é. Importa apostar portanto, desde muito cedo, na educação. As mentalidades não se mudam por decreto mas estou convicta que a educação e a sensibilização são o fator chave para a alteração de comportamentos e para a progressiva eliminação da discriminação e do preconceito,“ defende Cunha.
Fonte: O Jornal Económico
Artigo publicado na edição digital do Jornal Económico. Assine aqui para ter acesso aos nossos conteúdos em primeira mão.