O Macroscópio podia ser hoje dedicado à ameaça de uma escalada nuclear entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte, ou ao recorrente tema dos incêndios florestais, ou mesmo aos números do crescimento económico. Contudo optei por escolher apenas um texto sobre cada um destes temas para, em alternativa, vos propor outras leituras, porventura mais surpreendentes, originais ou mesmo iconoclastas. Umas mais próximas da actualidade, outras sobre debates eternos. Mas comecemos pelos textos que referem os temas que enchem os noticiários.
Fogos florestais. A leitura que proponho não é sobre Pedrógão Grande ou sobre a entrevista do ministro da Agricultura onde este já se vê parte da história de Portugal (“Governo fez a maior revolução que a floresta conheceu desde os tempos de D. Dinis”). O texto é do El Pais e reflecte sobre a forma como se combatem incêndios do lado de lá da fronteira. O interesse é que muitos dos temas são os mesmos – ora leiam: “Cuanto más eficaces se hacen las autoridades españolas en extinguir pequeños fuegos, más contribuyen a la formación de otros incendios más grandes” escreve Alejandro García Hernández, um académico especializado em fogos florestais em ‘Pastorear’ los incendios forestales. Eis uma passagem significativa, a ler com atenção pois a nossa floresta tem muitos pontos em comum com a espanhola: “Lo ideal es que nuestros montes permanezcan resistentes a los regímenes naturales de incendios, y muy resilientes para su rápida recuperación ante los incendios extraordinarios. Los paisajes mediterráneos son de los más resilientes del mundo, dado que la inmensa mayoría de sus especies han desarrollado mecanismos de regeneración tras los incendios de gran eficacia. Nuestras especies arbóreas son también bastante resistentes gracias a cortezas gruesas o corchosas, a portes robustos y grandes secciones que soportan el paso frecuente de fuegos de suelo rápidos. El problema es que la acumulación de matorral y combustible fino en torno al arbolado, por abandono de usos y exceso de celo en la extinción de los incendios que deberían constituir su régimen natural, hace que el fuego se instale más tiempo junto al tronco y acabe por prenderlo arruinando así la resistencia inicial de las especies y comprometiendo la capacidad de autosucesión del sistema.”
Crescimento económico. Os 2,8% de crescimento no segundo trimestre ficaram aquém das expectativas mais recentes e, como se trata apenas da chamada “estimativa rápida” do INE ainda há poucos dados para saber como se decompõe esse crescimento. Mas já foram publicar as primeiras análises, como a de Ricardo Santos no jornal online Eco, Crescimento do PIB: acidente de percurso ou sinal de alarme?. Eis uma passagem significativa: “Ainda que este trimestre não ponha em causa a recuperação em curso -– suportada até pelo mercado de trabalho – deverá servir pelo menos de alerta para a prevalência das fragilidades estruturais da economia portuguesa: mesmo com um setor exportador mais pujante do que no passado, há limites para o contributo da procura interna, principalmente do consumo, já que facilmente as importações “eliminam” esse contributo. Ou seja, provavelmente ainda é cedo para esperar por um crescimento económico sustentadamente acima de 2% assente na procura interna – isso só deverá acontecer se o peso das exportações no PIB continuar a aumentar. Entre 2010 e 2016 passou de 30 para 50%, é preciso mais, mas o mais difícil já foi feito!”
O nuclear da Coreia do Norte. Aqui o texto que seleccionei é uma análise mais especializada sobre os segredos do rápido desenvolvimento da capacidade de Pyongyang lançar mísseis balísticos. Trata-se de The secret to North Korea’s ICBM success, de Michael Elleman, que é Senior Fellow for Missile Defence do renomado International Institute for Strategic Studies. Nesse estudo ele procura descortinar um dos segredos mais bem guardados do regime, mas ao mesmo tempo expõe as debilidades do programa, concluindo que “It is not too late for the US and its allies, along with China and perhaps Russia, to negotiate an agreement that bans future missile testing, and effectively prevents North Korea from perfecting its capacity to terrorise America with nuclear weapons. But the window of opportunity will soon close, so diplomatic action must be taken immediately.”
Passo agora à proposta de um conjunto de textos soltos, que não têm relação entre si, antes expõem argumentos interessantes ou revelam situações surpreendentes.
Crimes de guerra. Fools, Cowards, or Criminals? é um ensaio do sempre interessante Ian Buruma na New York Review of Books que tem como ponto de partida o longo documentário Marcel Ophuls The Memory of Justice. Texto controverso fala-nos não apenas dos crimes julgados em Nuremberga, mas dos métodos utilizados pelos vencedores. Eis uma passagem reveladora do tipo de reflexão proposta: “Vietnam was not the Eastern Front in 1943. My Lai was not Auschwitz. And Galbraith was certainly no Albert Speer. Nevertheless, this technocratic view of violent conflict is precisely what leads many people so far astray under a criminal regime. In the film, Ellsberg describes the tunnel vision of Speer as “controlled stupidity,” the refusal to see the consequences of what one does and stands for. This brings to mind another brilliant documentary about controlled stupidity, Errol Morris’s The Fog of War (2003), featuring Robert McNamara [que fez parte da Administração Kennedy], the technocrat behind the annihilation of Japanese cities in World War II and the escalation of the Vietnam War in the 1960s. To him, the deliberate killing of hundreds of thousands of civilians was a mathematical problem. Only many years later did he admit that if the US had lost World War II, he could certainly have been indicted as a war criminal.”
Notícias do populismo. Nordic populists struggle with the burdens of power é um trabalho de fundo do Financial Times onde se aborda as próximas eleições na Noruega para procurar saber até que ponto os populistas conseguem lidar com as responsabilidades da governação sem perderem a sua base eleitoral. Mesmo constatando que a situação não é idêntica em todos os países nórdicos – “In Sweden, they have been completely ostracised; in Denmark, taken into the political mainstream; while first in Norway and later in Finland they have gone into government. Norway has become a testing ground for a widespread proposition that the appeal of populist parties will be tamed by being forced to take on the responsibility of government, including such mundane issues as toll roads.” E como provaram os populistas noruegueses? Aparentemente contrariaram algumas ideias feitas: “There are several myths about these parties. The first is that they would auto-moderate and be tamed when they enter office. The other is they are incapable of governing. Does the Progress party show populists can govern? Yes, it does,” says Anders Jupskas, the deputy head of the Center for Research on Extremism at the University of Oslo.”
E o Brexit continua. Matt Ridley é um autor surpreendente, capaz de escrever sobre biologia (é dele Genoma) como sobre história económica (veja-se o desafiante O Otimista Racional, onde aborda a evolução do bem estar nas nossas sociedades). Por isso leio-o sempre que posso, e na sua coluna de hoje no The Times de Londres, I am more confident than ever about Brexit, ele desafia mais uma vez a opinião dominante, para quem tudo vai correr mal no processo de saída do Reino Unido da União Europeia. Eis uma passagem: “Putting aside the negotiating bluster, I am also encouraged by the fresh thinking already emerging on policy. In recent months I have had conversations about immigration policy with Australians, fishing policy with Icelanders, farm subsidies with Swiss, environmental policies with Americans and tobacco control with Canadians. These conversations no longer end in that despairing realisation that reform is impossible because it requires persuading 27 other nations and a lobby-fodder commission to come to some sort of compromise. Suddenly anything is possible.”
Um aviso de quem sabe. Lawrence H. Summers, o antigo secretário do Tesouro da Administração Clinton, publica hoje no Washington Post um texto onde deixa alguns avisos sobre o futuro da economia, considerando que The Fed’s job is about to become much harder. Primeiro, a bonança pode estar a acabar: “There has not been a major bout of financial instability or a foreign financial crisis in the past four years. This good luck is unlikely to continue. There are real risks emanating from China, from signs of overvaluation in parts of U.S. equity markets and from buildups in leverage, as well as from a highly disordered geopolitical situation in which U.S. credibility has fallen sharply.” Depois, há riscos políticos difíceis de avaliar, pois vivemos os dias da Administração Trump: “Perhaps the most profound challenges ahead will be political. There must be more risk now of political interference with the Fed than at any time since the Nixon presidency. In dealing with international matters, the Fed is partnered with an understaffed and amateurish Treasury and a president who is busily dissipating U.S. credibility. Most fundamentally, the temper of the times has turned against technical expertise in favor of populist passion — and the Fed is the quintessential enduring apolitical institution.”
Como é o amor no século XXI? Is Modern Love Endangered?é um curioso texto de Tim Markatos publicado na The Weekly Standard onde se discute The Agony of Eros, um ensaio do académico alemão Byung-Chul Han. Algumas passagens desta análise são perturbantes, como esta em que aborda os efeitos da vulgarização da pornografia: “His line of inquiry produces many such brief moments of enlightenment on hot-button topics. Take, for instance, Han’s digressions on pornography. Because porn is a necessarily self-serving venture, it poses an existential threat to true eros by reframing sex as simply one more commodity to be put on display for comparison and consumption. “What is obscene about pornography,” he writes, “is not an excess of sex, but the fact that it contains no sex at all.” Devoid of the spiritual dimension of a properly understood, other-centric sexuality, the sexuality on display in pornography is nothing but a shadow of the real thing. Yet the wide availability of pornography today is quickly erasing this distinction, for as Han notes, “even real sex is turning into porn.”
A ideia do Rendimento Básico Universal. Why a Universal Basic Income Would Be a Calamity é uma crítica frontal deste conceito, escrita por Dan Nidess no Wall Street Journal. Neste texto ele critica o que considera ser o paternalismo das elites – “How long before the elites decide the unemployed underclass shouldn’t have the right to vote?” – e argumenta que uma prestação social daquele tipo destruiria o contrato social em que assentam as nossas sociedades: “At the heart of a functioning democratic society is a social contract built on the independence and equality of individuals. Casually accepting the mass unemployment of a large part of the country and viewing those people as burdens would undermine this social contract, as millions of Americans become dependent on the government and the taxpaying elite. It would also create a structural division of society that would destroy any pretense of equality.”
Tempo de férias. Passando a um registo mais leve, encontrei no alemão Handelsblatt uma análise das razões por que os alemães são tão fanáticos no que toca a gozarem as suas férias. Em Why Germans Take their Vacations so Seriously constata-se que “It's hard to get much done in Germany during August because Germans consider holidays a human right”, e que a regra é “Work hard, then play hard, and be sure to keep the two separate.” A prática não é nova, mas assenta em traços culturais bem marcados: “Americans tend to see long hours at their desks as a badge of honor, and numbers back up the idea of being a martyr to your job: Various studies have found that less than half of Americans use all of their allotted days off. Germans see putting in too much overtime as an embarrassment – it means you couldn’t complete your allotted tasks in the given time. Worth noting too: Unlike Americans, Germans – and most Europeans – take almost all of their vacation days. To this century, they see them as a federally mandated, and completely necessary, human right. For Germans, it is clear: What the government has given, no manager (nor any urgent business in August) can take away.”
Histórias com cocaína dentro. Termino esta selecção com um daqueles especiais do Observador com que se entra em mundos menos conhecidos. Trata-se de Das festas de sexo hoje, à francesa Charlotte nos primeiros clubs. Histórias de 100 anos da cocaína em Portugal, um trabalho de Tânia Pereirinha dividido em quatro partes:
- 1859 – 1917. Remédio para as dores, histeria, sífilis e até azia
- 1917 – 1927. Charlotte, a primeira traficante
- 1980 – 1999. “Olha a branquinha da boa!”
- 2005 – 2017. Prostituição e “telecoca”
Deixo-vos, como aperitivo, o parágrafo final, pois este deixa-nos o estômago apertado e quase que obriga a ler o resto para se perceber como se chegou aqui: “Tal como aponta para um canto agora deserto nas traseiras da Maria Pia, junto ao graffito de um cão que engole um homem — “Da última vez que aqui estive vi ali dois indivíduos a terem relações sexuais em troca de cocaína” –, também conta, parco em detalhes, a história da “menina dita normal”, filha de pais divorciados, que está prestes a completar 18 anos, começou a fumar charros aos 12, apanha bebedeiras frequentes desde os 14, e aos 16 experimentou pela primeira vez cocaína. “Há dois anos, esteve com três homens, um deles muito conhecido aí na praça, num hotel de luxo de Lisboa. Hoje em dia, na Internet encontra-se tudo, é muito fácil. A quantidade de gente que está a consumir cocaína nunca mais acaba. E isso quer dizer que a prevenção falhou.”
E é tudo por hoje, num Macroscópio um pouco mais extenso do que o habitual, mas que vai bem à conta do feriado de amanhã. Espero que as sugestões tenham sido úteis e que possam ter horas de bom descanso e leitura.
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