Plinio Maria Solimeo
São Francisco – Federico Barocci, séc. XVII. The Metropolitan Museum of Art, Nova York.
Uma das maiores vocações religiosas da História, recebeu os estigmas do Redentor e se tornou um sustentáculo da Igreja.
São Francisco de Assis é um dos santos mais populares da Igreja. Marcou profundamente a vida religiosa e social de sua época, exercendo sobre ambas uma influência determinante. Sua festa se celebra no dia 4 deste mês.
Ele nasceu em 1182 na pequena e poética cidade de Assis, situada nos Apeninos, filho de Pietro di Bernadone dei Moriconi — que se tornará famoso pela usura e cegueira em relação ao filho — e de Pica Bourlemont, uma dama de origem francesa, de nobre sangue e grande virtude.
Narra uma lenda que, sentindo sua mãe as dores do parto, não conseguia dar à luz. Trasladaram-na então até à estrebaria da casa e ali, sobre a palha, entre o asno e o boi, à semelhança do Salvador, nasceu Giovanni di Pietro, que passou para a História com o nome de Francisco. A origem deste nome não é muito segura, mas consta que, por sua grande admiração pela França, seu pai passou a chamá-lo de “Francesco”.
Alegre, esbanjador, mas temente a Deus
Quadro do conhecido episódio em que o pai de Francisco apela ao bispo para fazer cessar as “extravagâncias” do filho, que se apressa a despojar-se até da própria roupa do corpo para reparar a ganância do pai.
Nada sabemos da infância do santo. Na Legenda de São Francisco (ou Dos Três Amigos), escrita por três de seus primeiros discípulos, lemos: “Já crescido, como era dotado de inteligência viva, dispôs-se a continuar o ofício paterno, isto é, a mercancia, porém com outros entendimentos, pois ele era muito mais alegre e liberal do que o pai: gostava de andar em festiva companhia, quer durante o dia quer durante a noite, pelas estradas de Assis, em divertimentos e cantos, e era tão grande esbanjador, que gastava em reuniões e banquetes tudo quanto ganhava”.1 Ao que acrescenta São Boaventura, terceiro Geral dos franciscanos, contemporâneo e póstero do Poverello: “Mas, com o auxílio divino, jamais se deixou levar pelo ardor das paixões que dominavam os jovens de sua companhia”.2
O próprio Francisco confessa: “Eu verdadeiramente creio nunca ter, pela graça de Deus, cometido falta sem ter feito disso expiação, confessando o meu pecado e me arrependendo da minha culpa”.3
Alegre, jovial, desprendido, gentil, afável, “o Senhor incutia em seu coração um sentimento de piedade que o tornava generoso com os pobres. Este sentimento foi crescendo em seu coração; e impregnou-o de tanta bondade, que ele decidiu, como ouvinte atento que era do Evangelho, ser generoso com quem lhe pedisse esmola, sobretudo a quem pedisse por amor de Deus”,4 de modo a doar até parte de seu vestuário, se não tivesse mais dinheiro.
A popularidade granjeada até então por Francisco entre seus conterrâneos se devia mais às suas qualidades morais que às físicas, pois “era pequeno e de aspecto miserável”,5 atraindo pouco a atenção daqueles que não o conheciam.
Restaurador da Igreja
Sonho do Papa Inocêncio III, no qual se vê São Francisco sustentando a Igreja – Benozzo Gozzoli, séc. XIV. Capela na igreja franciscana de Montefalco, Perúgia (Itália)
Francisco levava essa vida alegre e despreocupada quando as primeiras revelações divinas começaram a chamá-lo para algo mais alto. Rezando um dia na igreja de São Damião, ouviu o Crucificado pedir-lhe que restaurasse Sua casa em ruínas. Tomando as palavras literalmente, empenhou-se na reforma não só desse templo, mas também de dois outros. O Divino Redentor então lhe disse que restaurasse não os edifícios das igrejas, mas a própria Igreja enquanto instituição.
E indicou-lhe como fazê-lo: “Se queres conhecer minha vontade, precisas desprezar todas as coisas que até aqui materialmente amaste e desejaste. Quando tiveres feito isto, ser-te-á agradável tudo quanto te é insuportável e se tornará insuportável tudo quanto desejas”.6
Foi então que interveio Pedro Bernardone, pois o filho dava de esmola tudo o que possuía, passando a levar uma vida considerada insensata pelo mundo. Ocorreu nessa época o conhecido episódio em que o pai apela ao bispo para fazer cessar as “extravagâncias” do filho, que se apressa a despojar-se até da própria roupa do corpo para reparar a ganância do pai. Depois disso Francisco se entregou inteiramente ao que chamou a Dama Pobreza, seguindo ao pé da letra os conselhos do Evangelho.
Fundação dos Frades Menores
Santa Clara e São Francisco
“Como outro Elias, começou Francisco a anunciar a verdade, no pleno ardor do Espírito de Cristo. Convidou outros a se associarem a ele na busca da perfeita santidade, insistindo para que levassem uma vida de penitência. Começaram alguns a praticar a penitência, e em seguida se associaram a ele, partilhando a mesma vida, usando vestes vis. O humilde Francisco decidiu que eles se chamariam Frades Menores”.7
Surgiram assim os primeiros 12 discípulos que, segundo registram os Fioretti, “foram homens de tão grande santidade que, desde os Apóstolos até hoje, não viu o mundo homens tão maravilhosos e santos”.8 “Aqueles que vinham abraçar esta vida distribuíam aos pobres tudo o que tinham. Contentavam-se só com uma túnica, uma corda e um par de calções, e não queriam mais”, dirá mais tarde Francisco em seu Testamento.9
Os novos apóstolos se reuniram em torno da pequena igreja da Porciúncula, ou Santa Maria dos Anjos, que passou a ser o berço da Ordem.
O santo sustenta a Igreja Católica
Para obter a aprovação de sua incipiente Ordem, Francisco se dirigiu a Roma. E o Senhor estava com ele, pois, pouco antes de chegar, como a preparar-lhe o terreno, “o Pontífice Romano viu em sonho a basílica de Latrão, prestes a ruir; mas um pobrezinho, homem pequeno e de aspecto miserável, sustentava-a com seus ombros, impedindo que ruísse”.10 Quando o Poverello de Assis se apresentou ao Sumo Pontífice, este o reconheceu, abraçou-o, e disse, a ele e a seus companheiros: “Irmãos, ide com Deus e pregai a penitência, segundo vos será inspirada. Quando tiverdes crescido em número e o Senhor aumentado suas graças a vosso favor, tornai a nós, que vos concederemos o que desejardes e ainda mais”.11
Munidos dessa aprovação pontifícia, os novos religiosos saíram para pregar, percorrendo em duplas as cidades da região e mostrando aos seus habitantes, pela palavra e pelo exemplo, o caminho da salvação.
Espírito e força de Elias
Certa noite os frades viram entrar e dar três voltas em seu aposento um carro de fogo de maravilhoso esplendor, com um globo brilhante parecido com o sol. Eles compreenderam que por aquela figura Deus quisera lhes mostrar “que seu pai Francisco viera ‘no espírito e na força de Elias’. Desde então [Francisco] penetrava os segredos de seus corações, predizia o futuro e realizava milagres. Estava patente para todos que o espírito de Elias, duas vezes mais poderoso, viera habitar nele com tal plenitude, que o mais seguro para todos era seguir sua vida e seus ensinamentos”.12
Francisco manifestava seu amor a Deus através de uma alegria imensa, expressa muitas vezes em cânticos ardorosos. Aos que lhe perguntavam a razão de tal alegria, respondia que “derivava da pureza do coração e da constância na oração”.
Essa divina loucura da cruz que arrebatou Francisco e lhe granjeou muitos discípulos deveria atrair também a jovem Clara, de 17 anos, filha do Conde de Sasso Rosso. Desde o momento em que o ouviu pregar, Clara compreendeu que a vida indicada pelo Santo era a que Deus queria para ela. Francisco se tornou guia e pai espiritual de sua alma.
Como eram outros os planos dos pais de Clara, foi preciso que ela fugisse para a igrejinha da Porciúncula. Ali Francisco cortou seus cabelos e fê-la vestir um simples hábito religioso. Nascia assim a Ordem Segunda dos Franciscanos, a das Clarissas. Duas semanas depois era a vez de sua irmã Inês unir-se a ela, e mais tarde uma terceira, Beatriz.
Não desprezar os ricos
Apesar de pregar principalmente para os pobres e de se identificar com eles, “Francisco tinha o hábito de alertar seus discípulos, exortando-os a não condenar e não desprezar ‘aqueles que viviam na opulência e vestiam com luxo’. Dizia que ‘também esses têm a Deus por senhor, e que Deus pode, quando quer, chamá-los, como aos outros, e torná-los justos e santos’”.13 Um desses nobres deu ao Poverello o Monte Alverne, onde ele receberia a maior graça de sua vida.
Indo em 1217 a Roma, Francisco se encontrou com outro luminar da Igreja da época. Era Domingos de Gusmão, que também fundara uma Ordem religiosa para combater a decadência dos costumes. Ambos se abraçaram, estabelecendo uma amizade solidificada pelo amor de Deus.
Pouco depois recebia Francisco alguém que se tornaria a maior glória de sua Ordem e um dos santos mais populares do mundo: Frei Antônio de Lisboa, conhecido também, mais tarde, como “de Pádua”.
Dissabores e fundação da Ordem Terceira
Uma das maiores dores de Francisco foi ver surgir entre seus frades, chefiada pelo superior Frei Elias, uma nova tendência que dava uma orientação diferente à do santo, principalmente em relação aos estudos e ao modo de observar a pobreza. Francisco chegou a amaldiçoar um dos frades dessa nova tendência, chamado Frei Pedro de Stacia.
Era, por outro lado, consolador ver tantos leigos desejosos de pertencer à família de almas de Francisco, mas cujos laços de matrimônio ou outros encargos terrenos não permitiam que observassem inteiramente as regras franciscanas. Francisco fundou então uma Ordem Terceira para abranger a todos, e muitos grandes personagens — como São Luís, Rei de França, e Santa Isabel, Duquesa da Turíngia — a ela pertenceram.
Recepção dos estigmas
São Francisco recebe os estigmas – Benozzo Gozzoli, séc. XIV. Capela na igreja franciscana de Montefalco, Perúgia (Itália)
Dois anos antes de sua morte, estando no Monte Alverne com alguns de seus frades mais íntimos, Francisco se pôs em oração fervorosa e foi objeto de uma graça insigne. Na figura de um serafim de seis asas apareceu-lhe Nosso Senhor crucificado, e após entreter-se com ele em doce colóquio, partiu deixando-lhe impressos no corpo os sagrados estigmas da Paixão. Assim, esse discípulo de Cristo, que tanto desejara assemelhar-se a Ele, obteve mais este traço de similitude com o Divino Salvador.
Em sua última doença, já próximo à morte, Francisco queria que Frei Ângelo e Frei Leão permanecessem junto ao seu leito para cantar os louvores da “Irmã Morte”. Àqueles que se escandalizavam com essa atitude, respondia: “Por graça do Espírito Santo, sinto-me tão profundamente unido ao meu Senhor Deus, que não posso deixar de me alegrar n’Ele”.14
“Por fim, tendo-se realizado nele todos os planos de Deus, o bem-aventurado adormeceu no Senhor, rezando e cantando um Salmo”.15 Era o dia 3 de outubro de 1226. Francisco tinha 45 anos, e foi canonizado apenas dois anos depois.
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Notas:
- Legenda de São Francisco, escrita pelos três humildes irmãos franciscanos Leone, Rufino e Angelo, no Ano da graça de 1246”, transcrição livre de Brasil Bandecchi, São Paulo, 1957, p. 13.
- São Boaventura, Legenda Maior e Legenda Menor — Vida de São Francisco de Assis, Vozes, 1979, p. 21.
- Specumlum Perfectionis, in Johannes Joergensen, São Francisco de Assis, Vozes, 1957, p. 316, nota 345.
- São Boaventura, id, ib.
- Id. ib., p. 174.
- Legenda de São Francisco, p. 25.
- São Boaventura, op. cit., p. 173.
- Las Florecillas, Zeus, Madrid, 1963, p. 22.
- Joergensen, op. cit., p. 137.
- São Boaventura, op. cit., p. 174.
- Legenda de São Francisco, pp. 66,67.
- São Boaventura, id., p. 175.
- Joergensen, op. cit., p. 216.
- Id. ib., p. 393.
- São Boaventura, op. cit., p. 200.