A reunião do Conselho de Ministros já estava agendada antes dos grandes incêndios de 15 de Outubro. Já se sabia que teria por bases o documento produzido pela Comissão Técnica Independente (CTI) criada por decisão do Parlamento (e proposta de Passos Coelho, o seu a seu dono), tal como se sabia que, no discurso político, as propostas desse documento se transformariam no alfa e no ómega de tudo o que havia para mudar. Depois de 11 horas de reunião, e alguns curtos briefings parciais pelo meio, as decisões lá sugiram na noite de sábado. Estão aqui resumidas, mas a questão que hoje se coloca é se foram as necessárias e suficientes, mesmo sendo certo que a oposição (PSD e CDS) já as saudaram positivamente. É precisamente por aqui que começa o Macroscópio de hoje.
O apanhado mais completo das reacções dos especialistas foi o realizado pelo Observador, que ouviu Henrique Pereira dos Santos (arquitecto paisagista), Paulo Fernandes (professor na UTAD e um dos membros da CTI) e José Miguel Cardoso Pereira (professor no ISA e o principal autor do plano de protecção da floresta contra incêndios entregue ao governo em 2006, tendo a maioria das suas propostas ficado na gaveta, como recordou este sábado o Expresso). Estes especialistas viram alguns aspectos positivos nas decisões, mas também muitas omissões. Tantos que o seu balanço é negativo, algo reflectido logo no título: Especialistas: novas medidas são “o primeiro passo concreto para o fogo absolutamente desastroso de 2030”. Vejamos, um por um, o que nos disseram esses especialistas:
- Henrique Pereira dos Santos, porventura o mais crítico: “Não vi uma linha sobre a alteração das estratégias e das opções políticas de gestão do mundo rural. Não vi, em lado nenhum, o Governo assumir que de facto o PDR [Programa de Desenvolvimento Rural] ou os apoios do mundo rural devem caminhar no sentido de criar uma melhor remuneração dos serviços do ecossistema. Sobre isso, zero. Sobre economia, zero. Sobre aquilo que pode contribuir para uma gestão de combustíveis, zero. Nem falo das centrais de biomassa, porque é uma parvoíce. Isso para mim não conta. Para mim, centrais de biomassa são cabras. Se estivessem a falar a sério estavam a falar do apoio à pastorícia.” Outra repetição do que aconteceu em 2003 e 2005.
- Paulo Fernandes, bastante desencantado: “O que foi anunciado tem um alcance bastante limitado, é mais do mesmo. Há algumas melhorias no que diz respeito à questão da profissionalização, mas o que foi anunciado é essencialmente um reforço de meios. O que quer dizer que o nosso sistema de prevenção e combate, que é muito disfuncional, vai ter mais meios mas vai continuar desarticulado, sem coordenação e sem massa crítica”, avisa o engenheiro e também professor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
- José Miguel Cardoso Pereira, o mais optimista, mesmo deixando alguns reparos e sugestões: Em vez de replantar 90% das árvores, o especialista defende que talvez valha mais a pena recuperar apenas 70% e criar espaços de contenção. “À escala de umas décadas, acaba por se obter mais rendimentos com 70% bem protegidos”, frisou. “É impressionante a área queimada deste ano, vai de Viseu ao sul do Tejo. É perfeitamente brutal e releva as consequências deste modelo de ocupação do espaço. Há ali muitas regiões com excesso de floresta, mas há outras zonas do país que podem ser mais arborizadas, onde há agricultura em abandono. Também há zonas em que havia excesso de continuidade. Faz todo o sentido aproveitar a oportunidade de o conta quilómetros ter sido posto a zeros para pensarmos no que é que queremos daquele território, que riscos é que queremos correr e que expectativas de produção é que queremos ter.”
A agência Lusa ouviu Eugénio Sequeira, investigador, ambientalista e antigo presidente da Liga para a Proteção da Natureza, que considerou que as Medidas para floresta são boas, mas muito insuficientes, diz especialista, como titulo o Jornal de Notícias. Cito uma passagem significativa por contrariar um certo discurso urbano e virem de um ambientalista de créditos firmados: “Devia ser dada "atenção às áreas de contenção que as celuloses têm e as espécies que têm nos seus terrenos", defendeu o especialista, explicando que nas propriedades das empresas de celulose existe pinheiro, mas pouco, carvalho, freixo, choupo e zonas abertas de pastagem. Resultado desta gestão do terreno e das espécies, "as áreas das florestas [daquelas empresas] arderam 3% a 4%, enquanto as áreas de eucalipto fora das celuloses arderam quase 50%", realçou.”
Continuando nas reacções, regresso a Henrique Pereira dos Santos, sempre muito activo no blogue Corta-Fitas, onde escreveu O homem que ri, um post onde recorda como muito do que está a ser dito hoje pelos especialistas já foi dito antes pelos mesmos, ou por outros, especialistas: “Posso citar um post meu de 2010, mas mais relevante é um relatório entregue na Assembleia da República, de 2009, que refere explicitamente a elevada probabilidade de haver um ano próximo em que arderiam meio milhão de hectares em Portugal. Esse ano chegou em 2017 e, tal como depois dos anos de 2003 e 2005, isso criou as condições para que o Governo, qualquer que fosse, pudesse fazer opções mais arriscadas porque a sociedade exige de facto que o assunto seja tratado seriamente. Infelizmente, ao leme do barco está de novo o homem que ri. E infelizmente mantém as mesmas opções: a gestão do fogo político é mais importante que a gestão do fogo rural.”
O mesmo Henrique Pereira dos Santos, agora numa coluna do jornal online Eco, aponta o dedo a alguns dos culpados políticos. Em Radicais interroga-se: “Que tal se, antes de responsabilizar os pastores, responsabilizássemos o BE e os Verdes por forçar o desvio do que interessa – a gestão sustentável do mundo rural, assente na competitividade de uma economia capaz de gerir o problema do fogo – para uma questão que não interessa nada para a gestão do fogo, mas dá muitos votos urbanos, como é a falsa questão do eucalipto?”
Este tema da gestão política dos imensos danos da catástrofe que o país viveu permitir-me-ia alinhar uma dúzia de artigos que, ao longo da semana passada, foram dissecando a forma de actuar de António Costa nesta crise. Não vou no entanto fazê-lo, mas abro uma excepção para citar uma passagem da crónica de Miguel Sousa Tavares no Expresso (paywall), A vergonha, onde o escritor e cronista recorda um episódio que se passou com ele para melhor caracterizar a forma de actuar do nosso primeiro-ministro:
Conheci António Costa era ele presidente da Câmara de Lisboa e eu fazia parte de um movimento de cidadãos que se tinha formado para tentar opor-se ao demencial projecto de alargamento do Terminal de Contentores de Alcântara, celebrado entre a Mota-Engil e a Administração do Porto de Lisboa, em condições e através de um contrato que também me fizeram sentir vergonha de ser português. Invocando falsos pressupostos e à custa do dinheiro dos contribuintes, à empresa privada era concedido o direito de ocupar a parte mais nobre da frente de rio de Lisboa com uma barreira de contentores durante dezenas de anos. E, estranhamente, o presidente da Câmara de Lisboa fingia que nada via e nada era com ele, como se perder quilómetros do mais nobre domínio público da cidade lhe fosse uma questão alheia. Mas quando o movimento de que eu fazia parte começou a atrair as atenções da comunicação social e de cada vez mais cidadãos, aí António Costa temeu que aquilo crescesse como uma onda e pudesse pôr em causa a sua recondução nas autárquicas de daí a uns meses. Chamou-nos, e só então começou a negociar connosco, por um lado, e com a APL e a Mota-Engil, por outro. Percebi que o que o incomodava, como presidente da Câmara, não era ver o Tejo tapado com contentores, mas poder perder votos devido ao barulho causado por isso.
Feito este parêntese, passo a outro tema – e que tema: a quase total destruição do chamado Pinhal de Leiria, um desastre tanto ou mais surpreendente já que essas matas são do Estado e geridas pelos seus serviços. Acontece porém que estes já não são o que foram no passado, o que levou o historiador Gabriel Roldão (que acabou de escrever uma volumosa obra sobre aquela mata cuja origem remonta a D. Afonso III e D. Dinis a considerar, em entrevista a Marta Leite Ferreira do Observador, que “O Pinhal de Leiria já está morto há 12 anos” porque a sua gestão foi abandonado. Uma gestão que podia ser exemplar se a riqueza ali gerada fosse utilizada para o tratar. Depois de descrever como, apesar de tudo, a rentabilidade do pinhal já estava a cair, acrescentou que “Este processo garante uma receita de entre três e quatro milhões de euros, que é pouco para o potencial do Pinhal. E mesmo assim (...) apenas 6% é usado na própria Mata e somente para "pagar a uns quantos engenheiros e mangas de alpacas". Os outros 3,76 milhões de euros lucrados com o Pinhal serão "usados pelo ICNF para sustentação de outras florestas".
Gonçalo Castel’Branco, engenheiro florestal, também escreveu sobre o tema no Público, em A Mata Nacional de Leiria foi-se. Que raio de país! É um texto que faz a história do desinvestimento nos serviços florestais: “está bem à vista que o Estado abandonou a floresta portuguesa há muito tempo e que não eram só as dos outros que ardiam. Não se esperava muito num país que desinvestiu tanto na floresta e que conseguiu destruir uma organização florestal centenária. De facto, em 1996 (era primeiro-ministro António Guterres e ministro da Agricultura Fernando Gomes da Silva) foram eliminados os Serviços Florestais, deixando que uma nova Direcção-Geral das Florestas se transformasse numa estrutura central, passando a parte desconcentrada a ser incluída nas Direcções Regionais de Agricultura, que nunca possuíram vocação florestal.” Mais tarde, “em 2006, o Corpo Nacional da Guarda Florestal que ainda fiscalizava o cumprimento de legislação nos espaços florestais foi extinto e os seus efetivos foram integrados na GNR, passando da alçada do Ministério da Agricultura para a do Ministério da Administração Interna. Era primeiro-ministro José Sócrates, ministro da Agricultura Jaime Silva e ministro da Administração Interna António Costa.” Por fim, com Assunção Cristas como ministra da Agricultura, o que restava da Direcção-Geral das Florestas acabou fundido com os serviços de conservação da natureza, um processo que não criou sinergias, antes disfuncionalidades. No mesmo texto Gonçalo Castel’Branco também reconstitui a forma como o Pinhal de Leiria foi sendo abandonado, falando tanto do saque às suas receitas como do abandono das casas onde em tempos viviam os guardas florestais.
Para além do relatório da Comissão Técnica Independente, o governo também recebeu o documento elaborado pela equipa do professor Domingos Xavier Viegas, este mais centrado no estudo exaustivo de como se desenvolveu o fogo de Pedrógão Grande. Este fim-de-semana deu duas entrevistas e os seus pontos de vista nem sempre parecem coincidir com os dos outros especialistas. Não podemos por isso ignorá-las:
- "O país que ardeu está à margem do país que é imaginado em Lisboa", disse ao Diário de Notícias e à TSF, um título sustentado na seguinte passagem: “Fui a todos os lugares onde houve perda de vidas. Quando andamos no terreno o que encontramos? Um país que está à margem do país que é imaginado em Lisboa. Encontramos aldeias que não têm saneamento e casas que não têm água corrente. Como é que estas pessoas, com rendimentos tão baixos e que vivem do que cultivam, podem fazer o trabalho de limpeza das florestas? Há aqui uma falha na governação do país, na distribuição relativa da riqueza. Nós queremos o nosso espaço rural e florestal cuidado. Queremos que tenha pessoas para não ser um matagal, mas temos de dar condições às pessoas. Esse é o primeiro momento crítico, de que falámos e que é transversal a muitos governos.”
- Algumas propostas dos técnicos são "um absurdo", defendeu em conversa com o Público, onde assumiu que discorda de algumas soluções que deveriam ter estado na mesa do Conselho de Ministros. Mesmo assim há outras que considera importantes “A comissão técnica propõe a criação de uma agência para gerir prevenção e combate, inclusive vai ao ponto de recomendar que seja gerida por técnicos florestais. Que haja essa junção e articulação das duas tarefas, parece-me bem. No nosso relatório falamos de um plano de gestão de incêndios florestais que olhe para isto no seu conjunto. Tem de haver alguma estrutura que esteja por cima.” Do que sabemos das conclusões da reunião do Governo esta proposta não foi acolhida, pelo menos por agora.
Guardei para o fim uma evocação, a das opiniões de Gonçalo Ribeiro Telles, porventura utópicas mas sempre frontais. A Visão, que o entrevistou em 2003, depois dos fogos catastróficos desse Verão, foi ao baú repescar essa conversa, com alguns aspectos muito actuais – e polémicos. Em Esta entrevista tem 14 anos mas podia ter sido dada hoje o arquitecto paisagista defende que “A limpeza da floresta é um mito. O que se limpa na floresta, a matéria orgânica? E o que se faz à matéria orgânica, deita-se fora, queima-se? Dantes era com essa matéria que se ia mantendo a agricultura em boas condições e melhorando a qualidade dos solos. E, ao mesmo tempo, era mantida a quantidade suficiente na mata para que houvesse uma maior capacidade de retenção da água. Com a limpeza exaustiva transformámos a mata num espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata, portanto mais seco fica o ambiente.”
Já no Observador, António Covas, professor da Universidade do Algarve, repesca extratos de um seu livro que roda muito em torno da obra de Ribeiro Telles e, em A estética da paisagem e a poesia da natureza, recorda umas palavras desse autor que têm a maior das actualidades e que usa em apoio da sua tese sobre um inevitável regresso do mundo rural: “O mundo rural foi considerado obsoleto, como qualquer coisa que vai desaparecer. Veja-se o disparate que foi a política de diminuição dos activos na agricultura. Contribuiu para o aumento dos subúrbios, dos bairros de lata e da emigração. Trouxe alguma coisa melhor para a província? (...) Os agricultores foram convencidos de que eram uns labregos. Houve toda uma política de desprestígio do mundo rural tendo por base a ideia de que era inferior ao mundo urbano. Esqueceram-se de que o homem do futuro vai ser cada vez mais o homem das duas culturas, da urbana e da rural.”
Mas este debate sobre o mundo rural e a sua sustentabilidade tem sido o debate que ninguém quer ter, como eu próprio noto num curto vídeo de opinião do Observador, Falamos demasiado de fogos e quase nada do mundo rural. Aí defendo, como este fim-de-semana também defendeu o Presidente, que os deputados devem descer ao terreno para conhecer o país e verem as suas paisagens enegrecidas, pois só assim perceberão que o mais importante, neste momento, é fazer renascer o mundo rural. Sem isso nunca teremos floresta sustentável.
Com este apelo a um debate de que poucos falam, e a que certamente regressaremos, termino esta Macroscópio, que já vai longo mas espero vos tenha sido útil. Tenham bom descanso.
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