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O herege exclui a si mesmo da Igreja, “sendo condenado pelo seu próprio julgamento” |
Em artigo anterior,[1] mostramos a gravidade do pecado de heresia e como um ensinamento ambíguo leva à heresia ou já a contém. De acordo com São Tomás de Aquino, o pecado da heresia participa do mais grave dos pecados — o ódio a Deus[2], que “é principalmente um pecado contra o Espírito Santo”.[3]
Também mostramos como um herege usa as sombras da ambiguidade para enganar os fiéis e evitar a condenação, e como é necessário desmascarar a heresia oculta em proposições ambíguas. Uma vez que essas proposições podem com frequência ter um bom significado, juntamente com um significado mau, para averiguar o seu verdadeiro significado, não basta examinar as palavras. Cumpre também levar em conta os atos, gestos, atitudes e omissões do autor. Se eles corroborarem o mau significado, pode-se legitimamente concluir que esse é o verdadeiro sentido das declarações ambíguas.
Finalmente, mostramos a falácia em sustentar que um herege ambíguo não pode ser condenado, em virtude do princípio jurídico in dubio pro reo. Uma vez que a heresia subjacente à proposição ambígua foi exposta, seu verdadeiro significado errôneo se torna claro e ela deixa de ser uma proposição duvidosa.[4]
Neste artigo, apresentaremos algumas consequências teológicas e canônicas do pecado de heresia, especialmente a sua incompatibilidade com a jurisdição eclesiástica.
A. RECORDANDO ALGUMAS NOÇÕES SOBRE A HERESIA
1. O que é “heresia”
De acordo com o cânon 1325 do Código de Direito Canônico de 1917, herege é aquele que, depois de ter sido batizado e ainda se declarar cristão, nega ou duvida com pertinácia uma verdade que deve ser crida com fé divina e católica.
De acordo com o cânon 751 do Código de 1983, “chama-se heresia a negação pertinaz, após a recepção do batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela”.[5]
2. Delito canônico de heresia
Embora seja um grave pecado contra a fé, a heresia interna (oculta) não produz efeitos canônicos.
Para que a adesão à heresia tenha efeitos jurídicos é necessário que ela se manifeste externamente, por meio de palavras — orais ou escritas —, ou através de atos, gestos, atitudes ou ambigüidades e omissões.[6]
Neste caso, a heresia será um delito canônico, o qual pode ser notório de duas maneiras: por notoriedade de direito (depois da sentença de juiz competente, que tenha passado em julgado, ou da confissão do delinqüente) ou por notoriedade de fato, “se é publicamente conhecido e foi cometido em tais circunstâncias que não pode ser ocultado com nenhum subterfúgio nem pode caber escusa dele ao amparo do direito”.[7]
3. Heresia e perda do ofício eclesiástico
A punição para o delito de heresia é a excomunhão automática (cânon 1364). Para os eclesiásticos, além da excomunhão, a adesão à heresia implica a perda do ofício eclesiástico pelo próprio Direito — ipso iure (cânon 194).
Juan Ignacio Arrieta,[8] professor da Universidade de Navarra, comenta que a ação da autoridade competente, de que trata o §2 desse cânon,[9] “é declarativa, e se faz necessária, não para provocar a vacância de direito do ofício, e sim para que se possa exigir juridicamente a remoção […] e consequentemente se possa levar a cabo a colação do novo titular.”[10]
Em outras palavras, a perda do ofício eclesiástico é automática. A declaração da autoridade competente é necessária simplesmente para confirmar que o ofício está vago e pode ser preenchido por outra pessoa.
4. Renúncia tácita: incompatibilidade entre heresia e jurisdição eclesiástica
O cânon 188 do Código de Direito Canônico de 1917, afirma que defender a heresia constitui uma renúncia tácita:
“Em virtude de renúncia tácita admitida pelo mesmo direito, ficam vacantes ipso facto, e sem nenhuma declaração, quaisquer ofícios, se o clérigo: … 4.º Defecciona publicamente da Fé Católica”.[11]
Segundo São Roberto Belarmino, todos os antigos Padres ensinam que “os hereges manifestos perdem imediatamente toda a jurisdição”.[12]
Ou seja: alguém que deixou de ser membro da Igreja, por causa da heresia manifesta, não pode gozar de nenhuma jurisdição. Pois heresia e jurisdição eclesiástica são incompatíveis.
5. Pertinácia e heresia
O acima exposto não se aplica a um herege puramente material, que cai em erro por ignorância ou inadvertência. Pelo contrário, é a sorte do herege pertinaz; ou seja, aquele que adere a um erro contrário à Fé ou duvida persistentemente de uma verdade de fé, com pleno conhecimento e plena advertência.[13]
Para haver pertinácia, no sentido teológico-canónico, não são necessárias várias advertências, nem uma prolongada obstinação no erro.
Este é, entre outros, o ensinamento de Adolphe Tanquerey (1854-1932): “Para que haja pertinácia não é necessário que a pessoa seja admoestada várias vezes e persevere por muito tempo na sua obstinação, mas basta que ciente e voluntariamente [sciens et volens] negue o assentimento a uma verdade proposta de modo suficiente, quer o faça por soberba, quer pelo gosto de contradizer, quer por outra causa”.[14]
O cardeal Juan de Lugo (m. 1660) explica a razão pela qual as advertências nem sempre são necessárias para caracterizar a pertinácia: “Também no foro externo nem sempre se exige a advertência e a repreensão prévia para que alguém seja punido como herege e pertinaz […]. Pois se de outro modo puder constar, dada a própria notoriedade da doutrina [por ela professada], a qualidade da pessoa e outras circunstâncias, que o réu não poderia ignorar a oposição daquela doutrina à [da] Igreja, por esse próprio fato será considerado herege. […] ”[15]
B. O HEREGE EXCLUI A SI MESMO DA IGREJA
Ao aderir à heresia, o herege exclui a si mesmo da Igreja. Como diz São Paulo, ele é “condenado por seu próprio julgamento” (Tito 3: 10-11).
Comentando este texto de São Paulo, diz São Jerônimo: “Por isso se diz que o herege condenou a si mesmo; porque o fornicador, o adúltero, o assassino e os outros pecadores são expulsos da Igreja pelos sacerdotes; mas os hereges pronunciam sentença contra si mesmos, excluindo-se da Igreja espontaneamente; exclusão esta que é a sua condenação pela própria consciência ”.[16]
Santo Agostinho comenta na mesma linha: “Separai-vos dos membros da Igreja! separai-vos de seu Corpo! Mas por que dizer a eles que se separem da Igreja quando já o fizeram? Com efeito, eles são hereges; eles já estão fora da Igreja”. [17]
Finalmente, o Papa Pio XII afirma que “nem todos os pecados, embora graves, são de sua natureza tais que separem o homem do corpo da Igreja, como fazem os cismas, a heresia e a apostasia”.[18]
C. CONCLUSÃO
O herege exclui-se da Igreja, e nenhuma intervenção é necessária por parte da Autoridade. O herege dita a sua própria sentença condenatória.
O abandono da fé católica implica uma renúncia tácita de qualquer ofício eclesiástico, já que aqueles que deixaram de fazer parte da Igreja não podem gozar de jurisdição nela.
A importância dessa doutrina teológico-canônica não é estritamente acadêmica. É crucial no estudo da hipótese teológica de um papa herético, como será visto em um artigo posterior.
ABIM
[1] Luiz S. Solimeo, “Ambigüidade, heresia e ódio a Deus” [“Ambiguity, Heresy, and Hatred of God”], TFP.org, 31 de maio de 2019, https://www.tfp.org/ambiguity-ethery-and-hatred-of-god/.
[2] Summa Theologica, II-II, q. 34, a. 2, ad 2.
[3] Ibid., II-II, q. 34, a. 2, copus e resposta ad 1.
[4] Ver Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira,
Não só a heresia pode ser condenada pela autoridade eclesiástica, “Catolicismo”, n° 203, novembro de 1967.
[6] Ver Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira,
Atos, gestos, atitudes e omissões podem caracterizar o herege, “Catolicismo”, n° 204, dez. 1967.
[7] Código de Derecho Canónico y Legislación Complementaria, BAC, Madrid, 1969, 8ª. Edición. Salvo indicação em contrário, todas as traduções de outras línguas e todos os destaques são nossos.
[8] O Bispo D. Juan Ignacio Arrieta Ochoa de Chinchetru é secretário do Pontifício Conselho para os Textos Legislativos desde 15 de fevereiro de 2007.
[9] Cânon 194 § 2: “A destituição mencionada nos nº 2 e 3, só pode ser urgida, se constar dela por declaração da autoridade competente.”
[10] Comentário de Juan Ignacio Arrieta, in Pedro Lombardia y Juan Ignacio Arrieta,
Código de Derecho Canónico – Edición Anotada, Ediciones Universidad de Navarra, Pamplona, 1983.
[11] Código de Derecho Canónico y Legislación Complementaria, BAC, Madrid, 1969, 8ª. Edición.
[12] São Roberto Belarmino,
De Rom. Pont., Lib. II, cap. 30, p. 420, citado em Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira,
Considerações sobre o “Ordo Missae” de Paulo VI − Parte I: A Hipótese Teológica de um Papa Herege, São Paulo, 1970, p. 32.
[14] Adolpho-Alfredo Tanquerey,
Syn. Th. Mor. et Past., p. 473, citado em Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira,
Atos, gestos, atitudes e omissões podem caracterizar o herege, “Catolicismo”, n° 204, dez. 1967.
[15] Juan de Lugo,
Disputationes, vol. II, disp. XX, sect. IV, n. 157-158. Ver também Antonius Diana,
Resolutiones Morales, resol. 36; Vermeersch,
Iuris Can., 3, 245; Noldin, vol. 1,
Compl. Poenis Eccl., p. 21; Regatillo,
Inst. Iuris Can., 2, p. 508, citado em Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira,
Atos, gestos, atitudes e omissões podem caracterizar o herege, “Catolicismo”, n° 204, dez. 1967.
[16] Citado em Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira,
Can a Pope Be… a Heretic? The Theological Hypothesis of a Heretical Pope, trans. John Spann (Portugal: Caminhos Romanos, 2018), pp. 85-86.
[17] Sermo 181, ML 38/981, citado em Michaele Nicolau-Ioachim Salaverri,
Sacrae Theologiae Summa, I,
De Ecclesia Christi, III, n. 1060