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"Um dos grandes desafios da cobertura jornalística é compreender quando um desastre começa, quanto ele dura e quando ele termina" Créditos: Arquivo pessoal |
Dairan Paul
Doutorando em Jornalismo pelo PPGJOR/UFSC e pesquisador do objETHOS
Denise Becker
Mestranda em Jornalismo pelo PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
Mesmo para jornalistas com vasta experiência, narrar uma pandemia global é tarefa que está longe de ser simples ou livre de dilemas. Isolamento de indivíduos, rearranjo nos modos de trabalho e as vidas que foram perdidas pelo coronavírus são apenas alguns dos impactos mais imediatos na população. No caso do jornalismo, há interferências no seu processo produtivo, à medida que profissionais passam a apurar boa parte das informações em suas casas, a partir de estruturas técnicas limitadas e sem contato físico com entrevistados. Os desafios para informar o surto de maneira significativa são globais, mas sujeitos a importantes variações locais.
Nem tudo é novidade, entretanto: algumas questões morais são comuns a coberturas de tragédias e surgem redimensionados no Covid-19. Quais cuidados éticos devem preocupar jornalistas? Como lidar com fontes enlutadas ou que passaram por traumas recentes? É possível escrever sobre temas delicados sem apelar para uma linguagem sensacionalista? Olhar para coberturas anteriores de surtos globais pode ser uma alternativa para a estruturação de histórias construtivas com ênfase no que as pessoas podem fazer na fase pós-coronavírus.
Para a pesquisadora Márcia Franz Amaral, nenhum profissional se torna especialista no coronavírus de um dia para o outro, assim como nenhum jornal consegue criar uma estrutura de cobertura de uma hora para outra. Professora do curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (PPGCOM/UFSM), Amaral estuda coberturas jornalísticas de desastres desde 2011, e assinala que acontecimentos complexos dificilmente são previstos ou narrados em sua totalidade pelo jornalismo – embora riscos e vulnerabilidades possam ser antecipados.
Diversos fatores estão envolvidos em uma tragédia e conferem complexidade ao acontecimento, explica a pesquisadora. Os sentidos que compõem uma catástrofe modificam-se ao longo da história e “têm grande poder de afetação, pois só existem porque destroem, mas ao mesmo tempo desvelam problemas sociais, ambientais e econômicos”.
É essa multiplicidade de causas que pode colidir com a lógica das rotinas jornalísticas. “A cobertura compassada com o tempo cronológico do desastre é fundamentalmente anestesiante”, sintetiza a professora. “Nestas condições, a apuração, que é o diferencial do jornalismo, ocorre de maneira fragilizada, superficial, em tempo real e a conta gotas”.
Assim, temáticas outrora negligenciadas pela grande imprensa emergem nas manchetes de jornais e são destacadas nas escaladas de programas noticiosos em horário nobre da TV brasileira: o papel do Estado na crise, desemprego, trabalho informal, falta de água e de saneamento. “A desigualdade social saltou na cara do jornalismo tradicional”, reitera. Nesse sentido, cabe à informação jornalística de qualidade articular diferentes campos – político, social, econômico -, “iluminar explicações possíveis, dotar este desastre de inteligibilidade, configurar seu passado e antever seu futuro”.
Márcia Amaral é pesquisadora CNPq, líder do Grupo de Pesquisa Estudos de Jornalismo e organizadora do livro Periodismo y Desastres, publicado peça Editora da Universidade Oberta de Catalunya (UOC) e o Institut de la Comunicació da Universitat Autònoma de Barcelona (InCom-UAB) em setembro de 2019. Na entrevista a seguir, a professora discute aspectos da cobertura jornalística no Brasil, algumas lições a partir de desastres anteriores, como os casos Kiss e Mariana, e o papel desempenhado pelas testemunhas nas tragédias.
Como estamos vendo, a pandemia do coronavírus domina o noticiário. De forma geral, qual é a sua avaliação da narrativa sobre o COVID-19 na mídia brasileira? Algum exemplo chamou sua atenção, positiva ou negativamente?
É difícil fazer uma avaliação generalista da cobertura midiática. De maneira geral, creio que o jornalismo está vivendo um momento de resgate de sua importância, pois a Covid-19 reconectou muitos cidadãos (inclusive os jovens) ao jornalismo. Grandes portais, jornais, rádios e emissoras de televisão batem recordes de público e aplicativos de notícia nunca foram tão procurados. Mas isso não significa uma redenção do jornalismo como negócio porque há extrema dificuldade de monetizar todas estas audiências. Muitos pequenos jornais já estão em crise e demitem seus profissionais. Em outros países que estão vivenciando esta experiência, percebe-se que o acesso ao jornalismo cresce nas primeiras semanas e, posteriormente, há uma saturação. Entretanto, podemos afirmar que há um crescimento ao menos temporário de audiência e de seguidores dos veículos tradicionais de comunicação.
Mas é preciso pontuar que por outro lado, temos no país um deserto de notícias que impede certas regiões de terem acesso a informações locais que são tão importantes para a vida cotidiana do cidadão comum. Cabe também lembrar do desmonte da comunicação pública no Brasil e a necessidade de ela ser reestruturada em outras bases para que seja acionada em momentos tão importantes como o que estamos vivendo.
Quanto à cobertura da grande mídia, observamos um certo redirecionamento. Mesmo que estas grandes empresas de comunicação tenham apoiado o projeto do governo e suas medidas econômicas, obrigam-se agora a dar um passo atrás e a defender, por exemplo, verbas para a pesquisa e a cobrir parte das vulnerabilidades sociais no Brasil.
Por um lado, temos uma cobertura direcionada totalmente às classes média e alta, até porque no caso da Covid-19, há uma camada da população que pode se proteger mais do que as demais. Aí cabe o discurso de que não contrair o vírus só depende de nós, ou seja, há culpabilização antecipada dos futuros afetados. Há uma grande dificuldade tanto do jornalismo como da comunidade científica de elaborar um discurso que leve em conta as experiências da maioria da população. Boa parte do discurso dos epidemiologistas, fontes dos jornalistas, ainda está focado na lavagem das mãos, no distanciamento social, no uso de máscaras, no pagamento de contas com cartões bancários ou nas compras virtuais ou por telentrega.
Ainda de maneira incipiente e também não sabemos por quanto tempo, algumas matérias jornalísticas passam a abordar a dura realidade das zonas periféricas, das comunidades indígenas e dos marginalizados de maneira geral. Mas tratam-se de matérias sobre estas comunidades e não de matérias para estas comunidades, direcionamento que a televisão aberta e o rádio poderiam fazer. Assim, creio que o temor do coronavírus gerou visibilidade para alguns campos problemáticos já existentes que agora parecem estar sendo alçados a “problemas de todos”, como a importância e fragilidade do SUS e a falta de estrutura do sistema de saúde das pequenas cidades. De alguma maneira, tem se atravessado na cobertura temáticas como o papel do Estado na crise, o desemprego, o trabalho informal, a falta de água e de saneamento. A desigualdade social saltou na cara do jornalismo tradicional, mas de maneira ainda muito tímida, pois ainda está enquadrada como um problema gerencial e não estrutural. Falta na cobertura a abordagem de sociólogos, urbanistas, antropólogos e sanitaristas que deem conta de debater os problemas históricos do país.
Muitas questões ainda estão também acobertadas, como as questões de gênero. No caso, por exemplo, da defesa de isolamento vertical por parte de algumas pessoas, percebe-se que é totalmente ignorado o papel das mulheres que agregam funções de dona de casa, trabalhadora, compradora de mantimentos, mãe e cuidadora dos idosos, enfermos e vulneráveis.
No plano ideal, o jornalismo precisa participar efetivamente e criticamente deste momento em que o controle social e a democracia são questões tão delicadas. A crise epidemiológica, somada à crise do sistema de saúde e às crises econômicas, sociais e políticas vai exigir muito do jornalismo. O enredamento da questão epidemiológica com as disputas políticas é bastante complexo. Esta é uma grande oportunidade para o jornalismo escancarar os problemas brasileiros e debater formas originais de enfrentá-los, e há que se duvidar que esta grande imprensa sustentará estes temas por muito tempo.
Neste caso em específico, temos como marca também uma cobertura que não é realizada nas ruas ou nas redações, mas desde a casa dos apresentadores e jornalistas, o que instaura um novo padrão estético e de performance dos profissionais, mas certamente tem graves consequências na apuração jornalística.
Olhando para trás, o que jornalistas podem aprender a partir de coberturas de outras tragédias recentes, como a boate Kiss, em Santa Maria, e o desastre em Mariana?
Um dos grandes desafios da cobertura jornalística é compreender quando um desastre começa, quanto ele dura e quando ele termina. Compreender o passado de um desastre e fazer ver seu futuro (o passado do próximo desastre) é desafiador. Dar cobertura jornalística à longa duração de cada acontecimento limite também é. Como são acontecimentos que nascem publicamente por suas consequências imediatas, quando o impacto inicial se dilui, o jornalismo tende a abandoná-lo.
Outro ponto importante que a cobertura de outras tragédias nos mostra é que o acionamento das fontes jornalísticas vai se modificando ao longo dos dias e este acionamento vai iluminando ou silenciando diferentes campos problemáticos que envolvem o acontecimento.
No caso do incêndio da Boate Kiss, como foi uma tragédia com centenas de sobreviventes, o jornalismo concedeu nas primeiras horas um grande papel às testemunhas, ou seja, a quem vivenciou a experiência, e os depoimentos delas foram fundamentais na reconstituição da tragédia. Neste caso, contrariando a lógica de priorizar as falas oficiais, as testemunhas tiveram seus depoimentos priorizados e transgrediram a função estrita de contar seus dramas individuais. Foram as testemunhas que esclareceram onde o fogo começou e as dificuldades enfrentadas para escapar da boate.
Já no desastre de Mariana, a cobertura inicial foi do tipo “drone”, pois tratava-se de um acontecimento ocorrido no espaço de uma grande empresa mineradora. Os jornalistas não tiveram acesso imediato às pessoas afetadas. O que chama a atenção é o quanto o jornalismo precisa orquestrar a entrada de suas fontes de maneira a diversificar não somente o número de pessoas que falam, mas também seus pontos de vista. Como neste caso a região era muito dependente da atividade mineradora, houve situações em que as próprias vítimas falavam a favor da empresa e, então, a matéria dava conta apenas de um ponto de vista. Outro aspecto observado é que muitas pessoas afetadas apareceram na cobertura sem sequer serem identificadas. Algumas coberturas que analisamos não concederam espaço aos afetados que manifestavam o sentimento de injustiça e indignação. Assim, o testemunho das vítimas ficou restrito à experiência individual, e o potencial político das falas que poderia colaborar com a configuração de uma questão pública, foi silenciado.
Em outras análises de cobertura sobre desastres ligados a eventos climáticos extremos, percebemos que as fontes especializadas têm uma grande importância no enquadramento das matérias jornalísticas, pois são elas que, muitas vezes, cobram ação do Poder Público. Até porque o papel das fontes oficiais, na ocorrência imediata dos desastres, normalmente é tergiversar e atribuir o desastre à força da natureza. E ainda sobre este tema, ressalto a importância, no caso da cobertura das mudanças climáticas, de o jornalismo rever seu hábito de revelar sempre o contraditório e dar a ver sempre posições opostas. Não há motivos para dar espaço a negacionistas das mudanças climáticas, por exemplo, se elas já foram exaustivamente provadas pela ciência. E no caso de a matéria trazer fontes que se contradizem, há também que dimensionar a participação de cada fonte na matéria.
Noutros casos, se a informação ou declaração da fonte contraria evidências científicas, é necessário buscar dar a contraposição na mesma matéria para não ficarmos refém de jornalismo declaratório, polêmico, gerador de likes que vai, entretanto, dar visibilidade para informações duvidosas ou obscurantistas.
Desta maneira, cada acontecimento tem suas especificidades e cabe aos jornalistas criar estratégias de como relatá-lo.
Quais cuidados éticos (em relação à linguagem e à etapa de apuração) você destacaria para a cobertura de catástrofes e situações de desordem social?
Creio que o jornalismo participa da construção social da realidade, não é um mero lugar de passagem de informações. Desta maneira, quando cobre um desastre no dia a dia ajuda a configurar modos de inteligibilidade para ele e configura formas de vivenciá-lo. A concepção do jornalismo como espelho da realidade ainda está muito presente no senso comum dos jornalistas e acaba isentando o profissional do jornalismo daquilo que ele divulga. O que é dito sobre o acontecimento integra o desenrolar deste acontecimento, tem efeitos de toda a ordem. Por exemplo, se eu eu faço uma matéria com foco em algumas prateleiras vazias de um supermercado, por mais que elas estejam efetivamente vazias, preciso pensar nos efeitos de sentido desta matéria que pode dar a sensação a um público tão diverso que há problemas de abastecimento em todas as cidades. Os cuidados éticos devem estar presentes desde a apuração até a antecipação de como tal informação vai circular e ser recebida em cada camada da população, e que efeitos pode causar.
Todos os limites são muito tênues neste momento, pois até a cobertura excessiva pode ser antiética por ser excessiva. Cenas que se tornam ícones nos desastres, por exemplo, costumam ser reproduzidas ad infinitum,como o avião nas torres gêmeas ou a cena do jovem que tenta quebrar a parede da boate Kiss com uma marreta. Por vezes, a cobertura excede seu papel de agregar conhecimento ao acontecimento e pode chegar à beira do entretenimento e da fruição (como cenas quase cinematográficas captadas em desastres, a exemplo de cidades desertas ou a chegada de um tsunami).
A própria denominação do acontecimento precisa ser refletida, porque alguns termos e expressões que já o inscrevem numa determinada ordem imaginária do acontecimento sensacional (catástrofe, caos, tragédia, emergência, desastre anunciado, desastre natural, tsunami de lama, rio nas ruas, o rio invadiu, a chuva matou, vírus assassino, doença mortal) criam também sentidos determinados ao acontecimento. Por vezes, algumas vulnerabilidades e riscos que envolvem o acontecimento ficam mais evidentes na sua designação. Outras vezes, são interditados. Ou seja, a denominação pode suavizar um acontecimento, dotá-lo de dramaticidade, configurá-lo no âmbito de uma explicação monocausal ou ainda no âmbito da busca pela justiça. A denominação inscreve o acontecimento em determinados campos problemáticos, convoca alguns personagens e argumentos, e borra outros. No caso do coronavírus, temos observado o uso de metáforas como “guerra”, “combate”, “inimigo”. Isso certamente tem determinados efeitos de sentido entre o público, como o de estarmos todos no mesmo front, defendendo-nos do mesmo inimigo etc.
O contato com fontes enlutadas ou que passaram por situações traumáticas é comum em casos como esse. O testemunho das vítimas afetadas é relevante para a cobertura? Quais abordagens devem ser evitadas pelos jornalistas ao contatá-las?
Em casos de tragédias, o relato da experiência dos afetados é sempre de grande valor, porque auxilia na reconstrução do acontecimento ou no conhecimento dele. Também é um recurso muito utilizado porque produz proximidade com o público do jornalismo que muitas vezes se considera vítima virtual (pessoas que supostamente poderiam estar no lugar dos que sofrem ou foram atingidos).
A primeira recomendação é não expor pessoas em situações vulneráveis. No caso de isso acontecer, deve-se questionar o quanto a exposição das pessoas afetadas nos auxilia a conhecer melhor este acontecimento.
É difícil dimensionar a abordagem entre o público e o privado. No início da cobertura sobre o Covid-19, vimos um certo exagero na individualização de quem teria trazido o vírus, com histórias de casamentos e noivados que teriam disseminado-o, ou até o local de trabalho de cada um dos primeiros infectados.
No caso de entrevistar pessoas afetadas, os manuais recomendam que o jornalista as trate com dignidade, permita-se conhecer a história da pessoa e também as condições da entrevista priorizando o bem estar da pessoa. E do ponto de vista da audiência, algumas imagens e informações sobre o sofrimento de pessoas devem ser acompanhadas de advertência prévia.
Regras absolutas não servem na cobertura de acontecimentos extremos, pois em algum momento pode ser importante mostrar à população de uma cidade que há alguém afetado pela doença ou dar visibilidade à vulnerabilidade dos profissionais de saúde no atendimento ao público.
Fonte:objethos