António de Oliveira Salazar deixou o Governo de Portugal em 1968, após ter sofrido um acidente vascular cerebral, mas continuou a acreditar que ainda mandava em Portugal por mais dois anos, até morrer. Essa história é relatada num livro e chamou a atenção do realizador de La Casa de Papel.
O livro “A incrível história de António Salazar, o ditador que morreu duas vezes” do jornalista e escritor italiano Marco Ferrari acaba de ser lançado em Espanha, pela editora Debate, o que deu azo a várias entrevistas ao seu autor.
Numa delas, ao jornal El Periódico de España, Marco Ferrari conta que a história revelada pelo livro é tão absurda e espantosa que “o realizador de La Casa de Papel quer fazer um filme sobre esse capítulo da vida de Salazar”.
“A farsa mais importante da história”
“Foi a farsa mais importante da história”, considera o jornalista italiano, referindo-se ao facto de Salazar ter sido enganado para acreditar que ainda governava Portugal quando Marcelo Caetano tinha ascendido ao poder.
Após um acidente vascular cerebral, Salazar chegou a entrar em coma e, em 27 de Setembro de 1968, foi substituído na Presidência do Conselho de Ministros por Marcelo Caetano.
Mas até morrer, em 27 de Julho de 1970, Salazar acreditou que ainda mandava em Portugal. Tudo devido a uma operação encenada porque os médicos tinham receio de que ele sucumbisse mal soubesse que tinha sido removido do poder.
É isso que o livro de Marco Ferrari conta, notando que a encenação passava por realizar reuniões falsas do Conselho de Ministros. “Para dar mais verosimilhança à farsa, às vezes, os interlocutores falavam mal de Marcelo Caetano”, escreve o jornalista.
A operação passava ainda pela impressão de um exemplar falso do Diário de Notícias que incluía fake news que omitiam referências a Marcelo Caetano e noticiavam as reuniões encenadas entre Salazar e os seus pretensos ministros.
Além disso, gravavam-se programas de rádio e de televisão em que Salazar continuava a aparecer como líder de Portugal e que só passavam na casa do ditador.
Entrevista a jornalista francês revelou encenação
A farsa acabou em 1969 “quando o jornalista francês Roland Faure, do diário L’Aurore, viajou até Lisboa e solicitou uma entrevista com o ditador”, relata Ferrari no El Periódico.
“A Dona Maria, a governanta [de Salazar], permitiu [ao jornalista] o acesso à casa, mas advertiu-o para que não comentasse que Marcelo Caetano era o novo Chefe de Estado”, refere o jornalista.
“Na entrevista, Salazar chega a dizer, perante o assombro de Faure, que Caetano ‘era inteligente e tinha autoridade, mas que se enganava ao não querer trabalhar connosco no Governo. Porque, como você sabe, não faz parte do Governo‘”, conta ainda Ferrari.
“Salazar ainda acreditava que governava Portugal”, conclui o escritor, frisando que “os poucos exemplares do L’Aurore que chegaram ao aeroporto de Lisboa foram interceptados e queimados pela PIDE“.
“Salazar era mais inteligente do que Franco”
Ferrari considera que Salazar era “um homem do campo que controlava tudo através de um sistema baseado no partido único e na PIDE”, conforme refere ao El Periódico.
O jornalista nota ainda que “Salazar era uma sombra”, que “não participava em inaugurações”, “nem concedia entrevistas” ou “aparecia na televisão”.
“Ainda que governasse o maior império do mundo, muito maior do que o britânico, nunca viajou até Angola, Moçambique ou Timor-Leste”, repara.
“Em toda a sua vida, só fez uma viagem de avião, de Lisboa ao Porto, e voltou de carro”, diz ainda o escritor italiano, contando que, “uma vez, viajou de barco de Lisboa à Madeira e passou a ida e a volta toda a vomitar”.
Porém, Ferrari não duvida de que “Salazar era mais inteligente do que Franco” e diz que “teve uma grande influência” sobre o ditador espanhol, “até ao ponto de o convencer a não entrar na Segunda Guerra Mundial”.
Mas, “ao mesmo tempo, como temia que os espanhóis pudessem ocupar parte de Portugal, fez-se aliado dos britânicos, aos quais vendia armas, o mesmo que fazia com os nazis, aos quais fornecia volfrâmio“, relata ainda o jornalista.
Ferrari também repara que Salazar “cedeu uma das ilhas dos Açores aos norte-americanos para que a utilizassem como base militar”, o que foi “uma decisão muito inteligente” porque “não afectava a neutralidade da Península Ibérica e, ao mesmo tempo, “os nazis não pensavam atacar a base com barcos ou aviões porque não deixava de ser território português”.
“Em Portugal, nunca houve processo como o de Nuremberga”
“Nos seus quarenta anos [de ditadura], foram torturados e assassinados mais de 22 mil opositores“, sustenta Ferrari, apontando que, contudo, “nos arquivos oficiais não existe nem um só documento que vincule a PIDE com Salazar”.
O jornalista nota ainda que, apesar dos crimes cometidos pela PIDE e pelo regime de Salazar, “em Portugal, nunca houve um processo como o de Nuremberga“, de julgamento de crimes políticos.
“Tão pouco se estudou a questão do terror da PIDE“, diz também.
“O passado esqueceu-se, mas Salazar é considerado pelos portugueses como o mal menor numa época de grandes ditadores noutros países”, analisa Ferrari no El Periódico, considerando que “isso explica porque é que, ao contrário de Hitler e de Mussolini, mas tal como Franco, Salazar morreu na sua cama“.
Susana Valente, ZAP //