domingo, 14 de dezembro de 2025

Crónica | Os primeiros japoneses da Europa passaram pelo Alentejo

 Muito antes de o Japão se tornar um fascínio global, quatro jovens japoneses atravessaram o mundo e chegaram a Portugal. Partiram de Nagasaqui no final do século XVI, numa época em que o Japão começava a abrir-se ao exterior com cautela e curiosidade, graças à ação dos jesuítas. A viagem durou quase dois anos. Dois anos de mar, de tempestades, de portos longínquos e de espanto contínuo, até alcançarem Portugal, o país que para eles representava o centro da cristandade e a porta de entrada na Europa.
Vieram por Macau e por Goa, lugares onde o Oriente e o Ocidente já se cruzavam diariamente. Eram muito jovens, ainda adolescentes, e tornaram-se os primeiros japoneses de que há memória segura a pisar solo europeu. Onde passavam despertavam admiração. Não apenas pela distância percorrida, mas porque traziam consigo um Japão desconhecido, quase mítico, aos olhos dos europeus.
Em Portugal, passaram por várias cidades, mas foi no Alentejo que a história ganhou contornos inesperados. Em Évora, cidade de saber e de fé, ouviram um órgão tocar. O som impressionou-os de tal forma que ficou gravado na memória como algo quase sobrenatural. A força da música, a vibração do ar, a solenidade do espaço religioso eram experiências completamente novas para jovens vindos de um mundo musical tão diferente.
Em Vila Viçosa, a receção foi ainda mais simbólica. D. Teodósio II, duque de Bragança, recebeu-os com solenidade e curiosidade. Tinha praticamente a mesma idade que aqueles jovens japoneses. O encontro entre adolescentes de extremos opostos do mundo, vestidos de forma diferente mas unidos por um mesmo ritual de cortesia e admiração, diz muito sobre aquele momento único da história.
Para os jesuítas, esta embaixada tinha um valor enorme. Era a prova viva de que o cristianismo criava raízes no Japão e um poderoso argumento para angariar apoios e fundos na Europa. Para a Casa de Bragança, o contacto com o Japão era também uma forma de afirmação política e cultural, mostrando que Vila Viçosa estava ligada a um mundo muito maior do que o mapa de Portugal deixava imaginar.
Durante alguns dias, os jovens viveram em ambiente cortesão. Falaram da comida como maravilhosa. Observaram as pessoas, os gestos, as festas, as brincadeiras e os jogos. Olhavam tudo com curiosidade genuína. Não eram apenas enviados em missão religiosa. Eram jovens a descobrir o mundo.
Mas esta história não é apenas sobre japoneses na Europa. É também sobre Portugal no Japão. A presença portuguesa deixou marcas profundas. No vestuário, por exemplo, a influência foi evidente. O botão, inexistente no Japão antes do contacto europeu, foi introduzido pelos portugueses e rapidamente adotado. Vestir à portuguesa tornou-se moda em certos meios urbanos e cortesãos, sobretudo nas cidades portuárias.
O quimono manteve-se, mas ganhou novas leituras. O cinto, o obi, passou a assumir variações e significados influenciados pelo contacto com o vestuário europeu. Chapéus começaram a ser usados como sinal de distinção. Os óculos, raros e fascinantes, tornaram-se símbolo de saber e estatuto. Até os leques europeus chegaram ao Japão e foram reinterpretados por uma cultura que já lhes dava grande valor estético.
A língua japonesa também guardou memórias desse encontro. Palavras portuguesas entraram no vocabulário quotidiano e sobreviveram ao tempo, ligadas à comida, aos objetos, ao vestuário e à vida prática. São pequenas pistas linguísticas que ainda hoje contam esta história silenciosa.
Quando regressaram ao Japão, tinham passado cerca de oito anos desde a partida. Já não eram jovens curiosos. Eram padres. Mas o país que reencontraram era outro. O cristianismo fora proibido e começara uma perseguição implacável. Um deles foi obrigado a renunciar à fé. Outro conseguiu fugir para Macau. Julião permaneceu no Japão, vivendo a fé em segredo e acompanhando os crentes longe dos olhares do poder.
Há também mistérios que resistem ao tempo. Não se sabe o que aconteceu aos objetos oferecidos por D. Teodósio II no Alentejo, como livros e outros presentes que simbolizavam o encontro entre dois mundos tão distantes.
Um desses símbolos, porém, chegou até nós. O órgão oferecido por D. Teodósio à embaixada permanece hoje preservado numa associação japonesa. É mais do que um instrumento musical. É a prova de que, muito antes do Japão se tornar uma paixão moderna, já havia jovens japoneses a ouvir música europeia no Alentejo e portugueses a deixar marcas profundas do outro lado do mundo.
*Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor