De forma porventura inesperada, a decisão do Ministério da Educação de alterar as regras com que contratualiza com algumas escolas privadas (apenas 79) o serviço público de Educação tornou-se, nos últimos dias, no tema político mais quente do momento. Passos Coelho entrou no debate, o Governo respondeu, o CDS decidiu marcar um debate parlamentar. Tudo isto tendo como pano de fundo a mobilização de milhares de alunos dessas escolas, que conseguiram fazer chegar ao primeiro-ministro 50 mil cartas. Entretanto o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, visto por muitos como um dos elos mais fracos deste Executivo, está sob fogo cruzado.
Já me referi a este debate no último Macroscópio da semana passada, mas a forma como o debate tem prosseguido na praça pública obriga-me a voltar ao tema, procurando sistematizar a informação e dar conta dos diferentes pontos de vista, mesmo repetindo algumas das referências já feitas.
Começo por uma introdução, e essa só podia ser um Explicador do Observador, preparado pela Marlene Carriço: Contratos de associação. O que são, o que pedem e o que vai mudar. Publicado na sexta-feira passada mantém toda a sua actualidade e aborda 11 questões diferentes.
- O que são os contratos de associação?
- Quantos colégios privados têm contratos de associação? E quantos alunos usufruem dos mesmos?
- Quanto custa às famílias terem os seus filhos a estudar nestes colégios? E quanto custa ao Estado?
- O ensino nestas escolas é exatamente igual ao praticado nas escolas públicas?
- Como são definidas as vagas e a abertura de turmas nestes colégios?
- Porque é que existem zonas com escolas públicas vazias e colégios com contratos de associação?
- Que cortes sofreram os contratos de associação nos últimos anos?
- O que vai mudar no próximo ano letivo?
- Qual o impacto das alterações nestes colégios?
- O que reclamam os colégios privados e o que responde o Ministério da Educação?
- O que defendem os partidos?
Ainda no domínio do esclarecimento dos dados de base, é importante procurar perceber com que números estamos a lidar, nomeadamente saber se as “poupanças” anunciadas pelo Governo são credíveis. Para isso o Observador preparou um Fact Check, em que eu também colaborei – Poupar 26 mil euros por turma transferida para o público? É pouco provável – cujo veredicto é essa afirmação é “enganadora”. Os três principais elementos que nos levam a chegar a essa conclusão é que a) o Governo fala de que só necessita de mais dois professores por cada turma nova, quando o actual número médio de alunos por professor aponta para que serão necessários três; b) as contas do Governo não incluem todos os gastos adicionais, para além da contratação de professores, que criar mais turmas implicaria para as escolas que as recebessem; c) o salário médio que o professores dessas turmas ganhariam, para caberem nas contas do Governo, é bastante mais baixo que o actual salário médio dos professores.
Um documento importante nesta discussão é também o único estudo independente sobre quanto custa ao Estado um aluno numa escola privada com contrato de associação e numa escola estatal. Foi realizado em 2012 pelo Tribunal de Contas, utiliza dados de 2009/2010, mas chegou à conclusão que o Estado pagava nessa altura mais pela educação de cada aluno quando ele estava numa escola do próprio Estado. O documento pode ser encontrado aqui – Apuramento do custo médio por aluno –, sendo que o nosso Fact Check faz um enquadramento dos seus números à luz da evolução posterior do sistema.
Um ponto importante de discussão é sobre quais são os imperativos constitucionais. É uma discussão que implica olhar para dois artigos diferentes da nossa Lei Fundamental (que pode ser consultada aqui):
O artigo 43.º, Liberdade de aprender e ensinar:
1. É garantida a liberdade de aprender e ensinar.
2. O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas.
E o artigo 75.º, Ensino público e particular:
1. O Estado criará uma rede de estabelecimentos oficiais de ensino que cubra as necessidades de toda a população.
2. O Estado fiscaliza o ensino particular supletivo do ensino público.
Há um ponto de tensão entre estes dois artigos da Constituição, próprio das condições em que esta foi redigida. Senão vejamos: se o Estado criar um “rede de estabelecimentos oficiais” que cubra toda a população ou está a negar a “liberdade de aprender e ensinar”, ou está a criar redundâncias. Vale por isso a pena seguir as reflexões de um deputado constituinte, Mário Pinto, que sempre foi um acérrimo defensar da liberdade de ensino. Nestes últimos dias já escreveu dois artigos no Observador:
- Caramba! Desculpem a grosseria, é caso para isso, onde se indigna com o que considera ser o desconhecimento das normas constitucionais neste debate: “é muito difícil compreender que a discussão pública que se tem alimentado entre nós, sobre a liberdade de ensino e de escola dos cidadãos, omita, salvo em raras e honrosas intervenções, a referência ao direito que rege na matéria — direito que o Estado Português não tem vindo a cumprir e agora mais deseja incumprir.” Neste artigo também invoca alguma legislação fundadora da escola pública que temos;
- Há princípios irrenunciáveis, onde lembra que “O Conselho Nacional da Educação já defendeu, no Parecer 1/89, que a gratuitidade tinha de ser aplicada em todas as escolas, públicas e privadas, sob pena de discriminação inconstitucional entre alunos”. Nesse texto cita longamente esse parecer, o que é bastante útil para enquadrar a actual discussão.
Antes de passarmos a outros textos de opinião e análise, deve referir ainda um trabalho interessante de Rita Tavares no Observador onde se ouviram dois antigos ministros de governos socialistas que deram respostas diferentes à questão de saber o que fazer quando há lugar em escolas públicas perto de escolas com contratos de associação – Dois ex-ministros do PS, dois caminhos. Para Marçal Grilo, “Neste momento há que racionalizar a rede e isso deve fazer-se fechando escolas estatais”, sejam as públicas, sejam as com contratos de associação, pois para ele ambas são escolas de serviço público de Educação. Por isso ““nem umas nem outras devem ter privilégios, na hora de optar pelo público ou pelo privado.” Já Maria de Lurdes Rodrigues defende que as escolas a encerrar devem ser as particulares.
No terreno há muitas paixões e por isso é que é interessante ler um texto desapaixonado de um professor da Universidade de Minho, Artur Rodrigues, Contratos de associação – Estudo de caso, editado aqui no Observador. É um texto que relata uma situação concreta, a de Barcelos, mostrando um mapa e acrescentando um testemunho pessoal, acabando a explicar, com base nesse caso concreto, aquilo que se perde com o fim do contrato de associação aí existente: “Perde-se liberdade de escolha e concorrência entre escolas que promove a qualidade. Perde-se igualdade de acesso a um projeto educativo diferenciado e de qualidade, dado que só os ricos poderão dele beneficiar.”
A par com este texto toda uma outra polémica tem atravessado as páginas do Observador, envolvendo vários dos nossos colunistas, incluindo eu próprio. Recapitulemos as peças dessa polémica, até porque a ela se acrescentou hoje um novo elemento:
- Ataque soviético contra os contratos de associação, de André Azevedo Alves, 30 de Abril: “Formalmente, o ministro da Educação dá pelo nome de Tiago Brandão Rodrigues, mas tornou-se claro desde que iniciou funções que apenas encobre o verdadeiro rosto do poder no sector, o de Mário Nogueira.”
- Sr. ministro, respeite a escolha das famílias, de Alexandre Homem Cristo, 2 de Maio: “Acabar assim com contratos de associação é um erro: entre duas opções de serviço público, deve prevalecer a que oferece melhores garantias de qualidade aos alunos – seja sua gestão estatal ou privada.”
- Onde está a direita liberal em Portugal?, de Luís Aguiar-Conraria, 4 de Maio, onde se atacam os argumentos destes dois colunistas: “Como a escolaridade é obrigatória e o nosso Estado é laico, é obrigação do Estado garantir que existe uma escola laica. Um Estado laico não pode obrigar uma família a inscrever as suas crianças em escolas de inspiração católica.”
- Neste país é mesmo difícil encontrar um liberal, que eu próprio escrevi (5 de Maio) procurando responder aos argumentos de Luis Aguiar-Conraria: “Num sistema aberto, liberal, o Estado garantiria que qualquer família, rica ou pobre, poderia escolher a escola e o tipo de ensino que entendesse melhor para os seus filhos. No nosso sistema estatista e jacobino, “socialista”, essa é uma liberdade que só os que podem pagar escolas privadas têm.”
- É difícil ser liberal entre jacobinos, onde André Azevedo Alves volta à carga (7 de Maio): “Sugerir que as questões morais mais desafiadoras têm respostas óbvias e inequívocas dadas pela cartilha jacobina do radicalismo não é só simplista do ponto de vista intelectual: é moralmente bizarro.”
- Um jacobino, moralmente bizarro, soviético, radical e progressista entre liberais, o contra-ataque de Luis Aguiar-Conraria, editado hoje: “É uma contradição lógica defender-se a escolaridade mínima obrigatória e dizer que o Estado tem de respeitar as preferências dos pais. As duas posições são incompatíveis.”
Mas há mais textos, ainda no Observador, sobre esta polémica a merecer referência:
- Contratos de associação: Clareza e transparência, da deputada socialista Susana Amador – a defesa das opções do Governo por uma deputada da maioria;
- Carta Aberta ao ministro da Educação, do presidente do Fórum para a Liberdade de Educação, Fernando Adão da Fonseca, um texto mais teórico sobre o sentido da liberdade de ensino;
- Liberdade de ensino ou Estado-educador?, de João Carlos de Espada, um texto onde se enquadra esta discussão numa visão diferente do que deve ser o Estado Social no século XXI, defendendo a ideia do “Estado Garantia”;
- O Alentejo ocupado de Cunhal fica hoje nas escolas, de Rui Ramos, uma análise política do que significam as escolas e os sindicatos dos professores para o PCP neste exacto momento histórico;
- Inimigo da Escola Pública, de Alexandre Homem Cristo, sobre como Mário Nogueira é, na prática, o inspirador das políticas educativas da actual maioria.
Como terão notado, cingi-me neste Macroscópio quase exclusivamente a textos saídos no Observador, se bem que traduzindo diferentes perspectivas, mas gostava de acabá-lo com uma referência a uma curta análise de Paulo Baldaia na TSF,Marcelo alinha com a direita na educação por assumir que vai contrariar a ideia da maioria dos jornalistas de que o Presidente não se quis pronunciar sobre esta polémica. Não é essa a sua leitura: “O Presidente da República vai dizer ao primeiro-ministro que "na educação, o Estado, o sector social e os privados prosseguem a mesma causa". Marcelo Rebelo de Sousa dirá ainda a António Costa que, se "o fim é o mesmo", é preciso "compreender que há um diálogo a estabelecer e que há caminhos de convergência que devem ser percorridos". Ou seja, Marcelo vai voltar a puxar o ministro da Educação para mais perto das posições dos partidos à direita do PS e pedir ao governo menos pressa e mais gradualismo”.
E por aqui me fico por hoje, sabendo que este tema vai continuar a mobilizar a opinião pública. No Observador estamos a preparar mais trabalhos, sempre com a preocupação de explicar, enquadrar a ajudar a pensar.
Tenham bom descanso, e também boas leituras. Até amanhã.
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