Choques eléctricos, dedos entalados em portas até ficarem partidos, pontapés e murros (principalmente na cabeça) são as agressões violentas mais comuns sofridas pelos reclusos que cumprem pena por filicídio (assassínio dos próprios filhos). Jorge Alves confirma que os pais que matam os filhos são recebidos com muita animosidade pelos outros presos, e que na maioria dos casos sofrem agressões físicas e verbais de forma continuada. Estes homicidas especiais tentam muitas vezes o suicídio, por «peso na consciência» e «para fugir às pressões de que são alvo».
Foi o que aconteceu também a Francisco Esperança, que em 2012 matou a mulher, a filha e a neta, acabando enforcado no Estabelecimento Prisional de Lisboa, para onde tinha sido enviado por receio de represálias por parte dos outros reclusos, já que estes «nunca deixam passar em branco este tipo de crimes que envolvem crianças».
O bancário reformado, licenciado em Direito, causou reboliço na prisão quando a população prisional soube de quem se tratava. Foi preciso acalmar os ânimos aquando da sua chegada ao estabelecimento. Francisco Esperança era o homicida de quem todos falavam na altura – tinha dizimado toda a família, matando-a à catanada, num dos crimes mais sangrentos de que há memória. O massacre fez inúmeras manchetes de jornais e foi considerado um dos piores crimes de sempre no nosso país. Segundo apurámos, houve quem fizesse apostas para saber «quanto tempo ia durar». Dias depois da sua chegada à prisão, enforcou-se na cela com os lençóis da cama, a 17 de Fevereiro de 2012. O Ministério Público (MP) abriu um inquérito para apurar o que tinha, de facto, acontecido.
Um outro alegado filicida foi encontrado morto na cela da cadeia anexa à Polícia Judiciária (PJ) do Porto. Não se sabe ainda se António Reis, suspeito da morte da ex-companheira e do filho de ambos, se suicidou com ingestão de medicamentos ou se teve morte natural. O crime que o levou à cadeia tinha ocorrido dias antes, em Ermesinde. E o dia 23 de Julho do ano passado foi, para uma das vítimas, Marinha Gonçalves, a sua ex-companheira, igual a tantos outros. Foi trabalhar, e depois do expediente, jantou em casa de familiares, como fazia várias vezes por semana.
Naquela noite, regressava calmamente ao apartamento onde vivia apenas com o filho de cinco anos, que já se tinha recusado estar com o pai algumas vezes, porque «tinha medo dele». Foi com o pretexto de ver a criança que António Reis se dirigiu à porta do prédio onde Marinha Gonçalves e o filho moravam. Esperou que ambos saíssem do carro para os abordar. A mulher pegou no filho ao colo e dirigiu-se até à porta. Não chegou a entrar. Mãe e filho foram baleados, a mulher no pescoço, a criança na cabeça. Ainda foram levados com vida para o Hospital de São João, no Porto, mas acabaram por falecer ali mesmo. António Reis foi preso horas depois do crime e colocado numa cela com outros dois detidos para, segundo a PJ, evitar o suicídio. O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) do Porto abriu um inquérito para averiguar a causa da morte.
É também por medo de represálias, pelo alarme social que o crime provocou, e para evitar o suicídio, que João Barata – homicida confesso do filho de cinco meses, morto à facada – se encontra em prisão preventiva no Hospital Prisional de Caxias. Durante uma discussão por telefone (no passado mês de Março, em Linda-a-Velha) com a companheira e mãe do bebé, João Barata ameaçou, como já tinha acontecido inúmeras vezes, matar o filho – fazia-o sempre que a companheira falava em terminar a relação. Alarmada, a mãe da criança – nesse dia, o miúdo estava com o pai – ligou para a PSP, que chegou à habitação já depois de o crime ter ocorrido. Os agentes e os bombeiros encontraram Henrique com uma faca de cozinha espetada lateralmente no peito, deitado na cama. Alguns bombeiros tiveram mesmo que se afastar do local do crime, para recuperarem do choque.
Antes de ser detido, o alegado homicida fotografou o crime e enviou as imagens à mãe do bebé, como forma de castigo, e para provar que, desta vez, tinha passado da ameaça à prática. Apesar da constante vigilância na cadeia, João Barata já se envolveu em brigas com outros reclusos e não tem contado com o apoio de familiares, nem de amigos – raras vezes recebe visitas.
O «abandono» por parte dos familiares e amigos é comum quando se trata de pais que matam filhos, apesar dos remorsos que muitos demonstram
Jorge Alves diz que estes homicidas sentem, frequentemente, «uma culpa muito grande». «Não querendo justificar os crimes», sublinha, «muitos destes reclusos cometem os homicídios num acto de loucura e arrependem-se logo». «A culpa e as pressões levam-nos ao suicídio.» Vítor Ilharco, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR), acredita que muitos destes suicídios «não acontecem logo porque num primeiro momento há uma grande vigilância destes homicidas». «É preciso destacar psicólogos para as cadeias, já que, com estes profissionais, nunca se permitiria, por exemplo, que um homicida dividisse a cela com reclusos de crimes menores», sustenta.
Fernando Almeida, psiquiatra forense, autor do livro Homicidas em Portugal, explica o que leva, tantas vezes, os filicidas ao pôr termo à própria vida. «Estamos a falar de crimes consanguíneos e, por isso, diferentes de todos os outros. Quem os pratica está ligado à vítima por laços de afeto. O filicídio é um ato cometido, muitas vezes, num quadro psicótico.»
O psiquiatra sublinha ainda que «quando o filicida volta ao estado normal constata que fez uma enormidade». Segundo o psiquiatra forense, seria necessário maior intervenção de psicólogos e psiquiatras nas cadeias. Opinião partilhada por Jorge Alves, que acredita que filicidas e pedófilos «deveriam ter terapias». Para fugir às agressões, os filicidas optam, com frequência, pelo isolamento, mantendo-se fechados na cela. É o caso de Vanessa, a cumprir pena de 11 anos pelo homicídio da filha recém-nascida, que atirou a um poço, em conluio com o pai da bebé. Isolou-se das restantes reclusas quando chegou à prisão. Tem-se mantido assim.
Leonor Cipriano «tem-se mantido afastada de confusões», depois de ter acusado inspectores da PJ de tortura e agressões
Quem também se afastou da restante população prisional foi Leonor Cipriano, presa pela morte da filha Joana, em 2004. Está a cumprir pena de 16 anos em Odemira, onde, ´«se tem mantido afastada de confusões», depois de ter acusado inspectores da PJ de tortura e agressões. O tio da criança, João Manuel Cipriano, condenado a 16 anos pela morte da sobrinha, também está preso, no Estabelecimento Prisional de Belas, na Carregueira, sob vigilância permanente – a mesma prisão onde o antigo apresentador de televisão Carlos Cruz e o ex-presidente do Benfica Vale e Azevedo, cumpriram pena.
Em 2003, Catarina Filipa, com pouco mais de dois anos, foi maltratada até à morte pelo pai, José Gomes, e pela madrasta, Clara Moreira. Em Ermesinde, ainda hoje se fala no assunto nos cafés e pela vizinhança – a criança tinha marcas de penetração vaginal e anal, sinais de violência física e de abusos sexuais continuados. Inicialmente, a madrasta foi encaminhada para a cadeia de Custóias mas, quando souberam por que estava lá, as outras reclusas revoltaram-se e Clara Gomes acabou por cumprir parte da pena em Felgueiras. Hoje foi recolocada em Santa Cruz do Bispo, Matosinhos, com sinais de depressão.
«Para evitarem agressões, muitos reclusos pedem transferência, que não é facilitada pelo sistema, mesmo quando o motivo é a integridade física das pessoas», explica Vítor Ilharco, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso (APAR). A mesma fonte afirma ainda que os filicidas «são agredidos selvaticamente quando chegam à prisão». «Muitas vezes, os guardas fecham os olhos e até são eles quem informam os outros condenados sobre o tipo de crime cometido por quem chega de novo.»
«Desgraçaste a minha vida, agora vou desgraçar a tua»
Há, porém, filicidas que dizem não se arrependerem dos crimes que cometeram. É o caso de Kelly Oliveira que, em dezembro de 2012, matou os filhos, de um e de dois anos. Poucos dias antes do Natal, ateou fogo à habitação onde morava com o marido, em Alenquer, provocando a morte das crianças. Depois de abandonar a casa em chamas, deixou um bilhete ao companheiro. «Desgraçaste a minha vida, agora vou desgraçar a tua», podia ler-se.
Ligou também à sogra a contar o que tinha feito de forma fria e calculista, segundo a acusação. Em Tribunal, onde foi condenada a 24 anos de cadeia, justificou o crime alegando que se queria vingar do marido e da sogra. Recusou pedir desculpa e não mostrou sinais de arrependimento. Kelly Oliveira foi inicialmente colocada num hospital psiquiátrico, em Coimbra, por dois motivos. Para receber tratamento e como medida de segurança para evitar eventuais retaliações na cadeia.
Os casos chocantes de pais que matam filhos e os torturam até à morte são muitos. Foi também esse o fim de vida trágico da pequena Leonor, que teve morte lenta e agonizante. Em Agosto passado, o pai colocou-a, alegadamente, em água a ferver para que a bebé parasse de chorar. Segundo a acusação, cobriu posteriormente o corpo da filha com sal e calou o choro compulsivo com vinho, para não chamar a atenção dos vizinhos.
Depois de uma tortura de longas horas e vendo que a bebé tinha deixado de reagir, a mãe contactou o INEM. O cenário encontrado chocou médicos e enfermeiros. Leonor tinha 50 por cento do corpo queimado e parte da pele estava ainda a boiar na água da banheira. Emanuel Mário ficou detido e pediu protecção na cadeia, onde se tem tentado manter afastado dos outros reclusos.
Em Novembro de 2010, Sandra Monteiro também matou o filho Tiago, de 2 anos, afogando-o numa ribeira em Rio de Mouro. A mulher chegou a inventar um outro cenário às autoridades, dizendo que cinco homens teriam afogado a criança, tese que não convenceu as autoridades. Logo após o crime tentou suicidar-se, mas acabou detida e acusada. Foi condenada pelo Tribunal de Sintra a 18 anos de cadeia por homicídio qualificado.
Foi mergulhada em água a ferver e queimada com um ferro como castigo por não querer viver com Aurora, acabando por não resistir às lesões
Vanessa Filipa, criança de cinco anos, foi assassinada pela avó e pelo pai, em 2005, no Bairro do Aleixo, no Porto, por se recusar a dizer às assistentes sociais que queria viver com a avó. Vanessa estava a ser criada por uma mãe adoptiva, mas o processo ainda não estava concluído. A menina continuava a ver a avó esporadicamente, que entretanto ficou a saber por uma vizinha que, se pedisse a guarda da neta, teria direito a um subsídio por parte da Segurança Social. Foi mergulhada em água a ferver e queimada com um ferro como castigo por não querer viver com Aurora, acabando por não resistir às lesões.
Quando o pai e a avó perceberam que Vanessa estava morta, encenaram um rapto, afirmando que a menina tinha desaparecido na feira. A essa altura, num domingo de manhã, já o corpo de Vanessa se encontrava no Rio Douro. Quando resgataram o corpo à água, ficou imediatamente clara a tortura a que tinha sido sujeita – as marcas das queimaduras eram bem visíveis. A família de Vanessa era acompanhada por técnicos do Rendimento Social de Inserção, mas não a sinalizaram como estando em risco.
Foi aberto um processo de averiguações logo após a morte da criança para se apurarem eventuais responsabilidades. Também a família de Maria Isabel (Bia), de dois anos – alegadamente morta à pancada pelo padrasto, no início do mês de Março –, estava sinalizada pelo núcleo da Comissão Nacional de Crianças e Jovens em Risco, de Loures, desde Setembro de 2014, altura em que surgiram os primeiros sinais de violência física. O companheiro de Cátia Teixeira, de 24 anos e mãe da criança, tomava conta da menina e do irmão, também ele vítima de maus tratos. Para Bia e para tantas outras crianças a ajuda não chegou a tempo.
Texto: Cynthia Valente | WIN Porto