LUÍS GODINHO (TEXTO) (FOTO D.R.)
Em “Até ao Último Sopro” (2020), há um poema no qual Joaquim Murale escreve que a poesia “come-se
bebe-se
respira-se
fornica-se
usa-se em todas as coisas mais ou menos [extra]ordinárias
veste-se da cabeça aos pés”.
Gostava de tratar os livros por “filhos” e, como adiante se verá, teve muitos ao longo da vida. Mas já não assistiu ao nascimento do último, “O Cio da Serpente”, cujo “parto” chegou a anunciar na sua página de Facebook: “É com imensa alegria que vos anuncio que ‘O Cio da Serpente’, o meu novo livro de poesia, será lançado em Lisboa, no próximo dia 8 de junho, um sábado, pelas 16h00, no espaço acolhedor da biblioteca da Casa do Alentejo. A vossa presença é muito importante para mim, pelo apoio e carinho que representa e pela força que me dá, mas também para o meu novo filho que, pelas vossas mãos, ganhará o mundo com maior ousadia e segurança”. A morte trocou-lhe as voltas.
A informação de que o poeta morreu chegou-nos através da Lincemoz, a Liga dos Naturais e Amigos do Concelho de Estremoz, que reúne boa parte da diáspora estremocense residente na Área Metropolitana de Lisboa. “A direção”, referia essa curta mensagem de correio eletrónico, “informa que o seu sócio, poeta Joaquim Murale, faleceu inesperadamente no dia 26 do corrente [mês de maio]”. Mas acrescentava que o lançamento de “O Cio da Serpente”, anunciado para 8 de junho, se manteria inalterado, agora com a dupla finalidade de apresentação de um livro novo e de homenagem póstuma ao seu autor.
“A obra de Joaquim Murale, no seu conjunto, deixa-nos um alerta mas também uma mensagem de esperança: podemos mudar o mundo! Isto não é um exagero retórico. Podemos mesmo!, e é urgente!, missão para todos os que – como ele dizia – não se rendem, que não se humilham, nem aceitam as muitas formas de estar morto”, diz o editor Jorge Castelo Branco, que num texto introdutório a “O Áspero Tempo das Marionetas” (2022) considera a obra literária de Murale como estando “inequivocamente comprometida com valores de justiça social e empenhada na edificação de valores de rutura”. Uma obra “comprometida, igualmente, com princípios essenciais de coerência”, e que por isso “é uníssona, sólida e perturbante”.
Pseudónimo literário de António José Rocha, Joaquim Murale nasceu em Estremoz a 18 de março de 1953, aqui tendo descoberto nas primeiras letras, muito por “culpa” da biblioteca itinerante da Gulbenkian. Aos 14 anos, acompanha a família para a periferia da capital, em busca de melhores condições de vida, tendo começado a trabalhar de forma precoce, com apenas 16 anos. Os estudos, esses, só os retomaria mais de duas décadas depois, licenciando-se aos 40 anos em psicologia social e das organizações, no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA).
Os livros de poesia “Do Fogo e da Água” (1977) e Erva de Agosto” (1979) foram os primeiros que publicou, lançando em 1980 o seu primeiro texto para teatro, “Ao Atiçar do Lume” (1980), premiado pela Secretaria de Estado da Cultura, e outro livro dramatúrgico, “Diálogos da Sala de Fumo” (1982) e mais de duas décadas de silêncio. Regressaria à edição em 2005, com um primeiro romance, “Dou Este Mar por um Céu de Andorinhas”, a que se seguiu “Há Sempre um Sonho no Enquanto” (2006) e outras dezenas de obras, tocando os mais diversos géneros literários, do romance à poesia, dos contos ao teatro. “Escrevo para mudar o mundo”, disse Joaquim Murale numa entrevista ao “Jornal de Notícias” em 2017, uma das poucas publicações que assinalou a sua morte: “autor de uma obra extensa que fazia a apologia da dignidade humana e procurava combater as desigualdades sociais, Joaquim Murale entendia a literatura como um instrumento de transformação das consciências”. Veja-se, por exemplo, um poema de 2023 no qual regista que o Alentejo, “depois dos anos da hedionda tirania”, continua a “expulsar filhos” e “agora vive de escravizar imigrantes”.
Foi o padre Mário Pais de Oliveira, no prefácio a “De Riso Largo Como a Lua Plena” (2014), quem sublinhou estarmos “perante um autor e uma escrita em que a ficção consegue dizer a realidade tal e qual ela é, ainda melhor do que uma qualquer grande reportagem de jornal, de revista ou de tv”, pois “os olhos da mente cordial de Joaquim Murale conseguem ver a realidade que é mantida cativa, sequestrada, sob o manto ideológico com que ela sempre nos é apresentada”.
Uma observação que o próprio autor não teria dificuldade em subscrever, ele que numa das últimas entrevistas [a Sérgio Almeida, “JN”, 2022] se assumia, não sem alguma amargura, como um dos herdeiros da tradição “realista” da literatura portuguesa: “Temo que possa perder-se! Vejo as novas gerações muito acomodadas quando o realismo implica denúncia, confronto e, consequentemente, sofrer na pele as consequências: a censura do silenciamento! Hoje busca-se fama e sucesso, que são legítimos, mas quase sempre inférteis. Um escritor realista nunca será ‘best-seller’, por sublime que possa ser a sua escrita”.
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“AS NOITES BRANCAS”
Um dos poemas, “Adágio em Sol Maior para Voz e Violoncelo”, dedica-o Joaquim Murale a Estremoz, a sua cidade natal: (…) “O rumor do silêncio
As noites brancas
A alma plena
O sol a pique no restolho
As mãos coando o estio da tarde
O Alentejo refulge tanta luz”.