sábado, 20 de dezembro de 2025

Crónica - Quando aprender Matemática custa mais de 100 euros, só para a máquina de calcular...

 O Estado orgulha-se, e bem, de facultar manuais escolares gratuitos no ensino obrigatório. É uma conquista civilizacional que contribuiu para reduzir desigualdades e garantir que nenhum aluno fique para trás por falta de livros. Mas essa lógica de justiça social parece esgotar-se quando se chega às calculadoras gráficas exigidas no ensino secundário. Livros há para todos. Calculadoras, apenas para quem pode pagar.
A incoerência é evidente. Os manuais são considerados instrumentos essenciais ao sucesso escolar e, por isso, assegurados pelo erário público. Já a calculadora gráfica, sem a qual disciplinas nucleares como Matemática A ou Física e Química se tornam substancialmente mais difíceis, é tratada como um acessório opcional. Na prática, não o é. É um requisito silencioso, mas determinante, que condiciona o percurso de milhares de alunos.
Esta exigência não atinge apenas os estudantes do ensino público. Também os alunos do ensino privado são confrontados com a mesma obrigação, sem qualquer apoio do Estado. Convém recordá-lo. Estes alunos não deixam de ser cidadãos com direitos nem de pertencer a famílias que contribuem, direta ou indiretamente, para o financiamento do sistema educativo. Muitos frequentam o ensino privado não por luxo, mas por ausência de resposta pública adequada ou por razões geográficas e familiares.
Num tempo em que se insiste, com razão, na importância estratégica das áreas científicas, esta situação torna-se ainda mais difícil de compreender. O país carece de profissionais qualificados nas ciências, na engenharia e na tecnologia. Multiplicam-se discursos sobre a necessidade de apostar nas áreas STEM. Contudo, logo à entrada do ensino secundário, levantam-se barreiras económicas que afastam precisamente os alunos com menos recursos desses percursos exigentes.
Não estamos a falar de valores simbólicos. Muitas destas calculadoras ultrapassam largamente os 100 euros. Para inúmeras famílias, esse montante representa uma escolha dura entre material escolar e despesas essenciais do quotidiano. A educação deixa, assim, de ser um direito universal e passa a depender da capacidade financeira do agregado familiar.
O argumento de que se trata de um investimento pessoal não resiste a uma análise séria. Também os manuais escolares o são, e ainda assim o Estado reconheceu que não podem ser fator de exclusão. Se a calculadora gráfica é essencial para aprender e para ser avaliado, então deve ser apoiada. Se não é essencial, então não deveria ser exigida. Tudo o resto é uma contradição pedagógica e social.
A ironia torna-se ainda mais evidente quando se constata que vivemos rodeados de tecnologia com capacidades de cálculo muito superiores às destas máquinas especializadas. No entanto, esses meios são proibidos em contexto de avaliação, enquanto se continua a impor um objeto caro, específico e socialmente discriminatório. Não se trata de modernização do ensino, mas de persistência num modelo ultrapassado.
A escola não pode ser justa apenas no discurso. Tem de o ser nos meios concretos que permitem aprender. Se o Estado pretende verdadeiramente promover o ensino das ciências e garantir igualdade de oportunidades, tem de apoiar todos os alunos, independentemente de frequentarem o ensino público ou privado. A educação não pode ser gratuita apenas para alguns.
Talvez esteja na hora de assumir uma solução estrutural. A introdução de cheques-ensino, extensivos também à aquisição de equipamentos escolares essenciais, permitiria ultrapassar grande parte destas incoerências. Em vez de apoios dispersos e desiguais, cada aluno teria um valor atribuído para os meios que o próprio sistema exige.
Com cheques-ensino, o apoio deixaria de depender da escola frequentada e passaria a centrar-se no aluno. Haveria mais transparência, mais equidade e maior liberdade de escolha. As famílias saberiam com o que podem contar, as escolas deixariam de improvisar respostas sociais e o Estado cumpriria, finalmente, o princípio da igualdade de oportunidades que tanto proclama.
No fim, a equação é simples. Ou continuamos a fingir que a escola é gratuita, enquanto impomos custos que muitos não conseguem suportar, ou assumimos políticas coerentes que tornem essa gratuitidade real. Quando aprender Matemática custa mais de 100 euros, o problema não é da calculadora. É do sistema.

*Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor

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