1 – Os primeiros meses de 1976 em Angola foram de grande azáfama militar por parte da República Popular de Angola: imediatamente a seguir às batalhas de Cabinda, de Quifangondo e do Ebo, ganhas pelas FAPLA conjuntamente com os aliados das FAR recém-chegados a Angola por via da Operação Carlota, havia que retomar e assumir todo o território nacional.
Os esforços nesse sentido foram enormes, por parte do MPLA, das FAPLA, das FAR e do jovem governo, tornando-se muito importantes as questões que se prendiam à mobilização e à organização, ao longo dos anos de 1974 e 1975, os anos mais decisivos em prol da independência e da realização do Programa Mínimo do MPLA.
A juventude patriótica angolana aderiu, pode-se dizer em massa e em regime de voluntariado, constituindo-se os efectivos praticamente a quente (enquanto se desenrolavam os combates), em unidades trilhadas pelos Centros de Instrução Revolucionária, ou mesmo em pequenos núcleos operativos (por exemplo em bairros de Luanda como o Cazenga, o Rangel, o Sambizanga, a ilha do Cabo…), que se foram disseminando próximo das frentes e das escaramuças.
A mobilização de jovens nas cidades, principalmente em Luanda, foi muito sensível, tirando partido do facto do MPLA ter conseguido enorme aderência a partir de suas redes clandestinas e nos expeditos contactos a vários níveis, desde a universidade, até a instituições como por exemplo bancos.
A Organização de Pioneiros Angolanos e a Juventude do MPLA tiveram um crescimento exponencial e garantiam uma constante actividade, inclusive durante as escaramuças contínuas país fora, servindo de porta de entrada para as FAPLA.
Os efectivos que compunham a FNLA eram heterogéneos: haviam angolanos provenientes das áreas do norte, que falavam quicongo, mas também muitos elementos das Forces Armées Zairoises, que falavam lingala.
Era notória a sua desadaptação a Luanda e era fácil distingui-los, pelo que com o desenrolar das escaramuças ao longo de 1974 e 1975, foram sendo confinados aos perímetros de suas bases., sofrendo cada vez mais baixas até à exaustão de terem de retirar por completo da capital, com um último bastião em S. Pedro da Barra.
2 – Foi feito um aproveitamento maior dos que já antes conheciam matérias militares, em especial efectivos que haviam pertencido às Forças Armadas Portuguesas, entre ex-oficiais subalternos, furriéis e sargentos, encaminhando-os de acordo com sua experiência, para onde era mais preciso, em termos de instrução e de combate.
Duma forma geral diminuíam-se ou anulavam-se em instrução, os tempos de ordem unida, de marchas, ou até de aulas políticas, privilegiando-se o conhecimento de armamento (que na altura era muito diversificado pois em alguns lugares havia disponibilidade de armamento da NATO e do Pacto de Varsóvia), de preparação física (ginástica educativa e ginástica de aplicação militar), tiro, bem como exercícios tácticos de pequenos e médios grupos (pelotão, companhia e batalhão, em alguns raros casos chegando-se ao nível de brigada).
Da rápida instrução para o combate era apenas um pequeno passo e a cadência das escaramuças contra a FNLA em Luanda serviu de proveitoso estímulo.
Alguns que comprovaram a sua efectividade nas escaramuças urbanas, teriam muito mais dificuldade nos combates território adentro, pois estavam desadaptados quando saíam das áreas onde tinham nascido e crescido.
Foi por exemplo o caso do “Sabata”: famoso nos ataques à FNLA em Luanda, por profundo conhecedor dos meandros e becos dos musseques, quando saiu da capital demonstrou não conseguir capacidade de manobra e adaptação.
3 – A unidade a que pertenci valorizou sempre a instrução prévia aos combates, não só em Luanda, mas nos Dembos, em época da formação das colunas para a retomada do território e depois em apoio à SWAPO e ANC (1977), bem como à constituição das Forças Especiais no Bié (1977 e sobretudo em 1978).
Em Luanda por via da unidade em que me integrei, formaram-se efectivos da ODP na ilha Cabeleira (Kamuxiba), próximo do Morro da Luz onde ficou instalado o Estado Maior das FAPLA, nos Dembos (os efectivos que retomaram Quibaxe receberam instrução na roça Sagri), para a campanha a norte (treinos básicos de fuzileiros navais e pequenos grupos tácticos na “ilha dos padres”, Cazanga, na baía do Mussulo), em apoio à SWAPO (numa pequena fazenda abandonada na Funda junto ao rio Bengo e tendo a sul as instalações da Rádio Marconi, numa elevação fronteira), no Bié (treino das Forças Especiais na cidade do Kuito tendo como base uma Escola de Ensino Médio abandonada nas imediações da cidade, antes dela voltar a ser utilizada para os fins a que se destinava a sua estrutura)…
Era norma os instrutores na fase final dos treinos integrarem as primeiras missões; isso permitia com as primeiras experiências em combate, introduzir orientações complementares e correcções, melhorando a aptidão combativa.
Alguns efectivos chegaram a cumprir várias instruções, pois havia que considerar o padrão de missões que iriam realizar; por exemplo, na instrução na ilha Cazanga, alguns tiveram o primeiro contacto directo com o mar e todos eles seriam embarcados pela primeira vez numa lancha de desembarque pequena (LDP da frota deixada pelos portugueses, que integraram lanchas de desembarque pequenas, médias e grandes provenientes da Guiné Bissau, assim como lanchas grandes de fiscalização da classe Argos).
4 – Foi no seguimento dessa instrução que esses efectivos foram embarcados na Base Naval de Luanda, já depois da independência, numa lancha de desembarque pequena (LDP), que fez parte duma pequena frota composta por outra lancha de desembarque média, (LDM), carregada de combustível e uma LDG (lancha de desembarque grande), onde seguiram diversos blindados BTR 152 K e os “Corvos ao Embondeiro” sob o comando de Nelson Gaspar, uma unidade formada por ex-Comandos angolanos que haviam pertencido às Forças Armadas Portuguesas.
Essa frota fez-se ao mar no final da tarde dum dia de Fevereiro ou de Março (gostaria de confirmar o dia preciso), com destino a Ambrizete onde todos desembarcariam a fim de integrar a ofensiva a norte.
Na baía de Luanda estavam ancorados alguns dos navios que deram sequência à Operação Carlota e a LDP onde eu seguia mesmo à proa, passou pelo Cerro Pelado, um dos cargueiros que havia atravessado o Atlântico, com grande manifestação de alegria de todo o efectivo nosso e deles.
5 – O oficial mais credenciado e chefe dessa unidade era o camarada Eduardo Cruzeiro, “Alex”para uns, “Prof” para outros, experimentado em várias frentes africanas e europeias na luta anti colonial e anti fascista, um internacionalista português que ingressou na luta em Angola por via das ligações em Argel, ainda antes do 25 de Abril de 1974.
“Alex” adaptou-se bem, por que era um criativo nato, polivalente, de trato fácil e sempre disposto a ensinar e a dar o seu melhor nas missões que lhe foram confiadas.
A unidade absorveu vários efectivos portugueses para além dos angolanos, alguns dos quais se tornaram muito úteis no apoio ao improvisado Centro de Instrução Revolucionária que se instalou antes da independência nos Dembos (roça Sagri).
Nos Dembos além dos angolanos, haviam combatentes portugueses integrados nas FAPLA, mas não cubanos pois as primeiras vagas das FAR desembarcadas na região com a Operação Carlota, receberam a exclusiva missão de defender Luanda a norte e a sul (face à operação Iafeature da CIA e Operação Savanah das SADF).
Na minha unidade, quer transportes, quer logística em equipamentos e armamento, era de origem NATO, pois não se esperou armamento proveniente do exterior, antes conseguiu-se a partir das próprias unidades das Forças Armadas Portuguesas, tirando partido das conexões disponíveis sempre em regime de clandestinidade ou semiclandestinidade.
6 – Na preparação para o desembarque instalámo-nos na ilha Cazanga, na baía do Mussulo, que estava abandonada e servimo-nos de pequenas lanchas com motores fora de borda, das muitas abandonadas com a saída de grande parte dos portugueses.
Só lá para o fim da instrução haveríamos de receber um Zebro III com motor Mercury de 55 cavalos…
Tivemos o apoio duma LDP, que penetrou na baía do Mussulo, colocando à prova a perícia dos marinheiros recrutados à pressa…
De facto essa perícia não era muita pois com a maré baixa a LDP ficou imobilizada num baixio e teve-se que esperar a maré alta para a desencalhar…
Com uma escassa logística alimentar, enquanto decorria o treino de manobra táctica que incluía o embarque e o desembarque, os instruendos recolhiam mabanga, algum coco colhido dos coqueiros da ilha e pescavam, para garantir uma melhor dieta e, como não havia lenha, nem carvão, recorreu-se à recolecção de fezes secas dos burros que tinham sido abandonados na ilha para servir de carvão…
Alguns cabritos que habitavam a ilha trazido pelo clero católico, tiveram de ser abatidos para reforço da dieta…
O muito que nos faltava era compensado com improviso e entusiasmo.
O centro de treino ficou instalado junto da pequena capela da ilha, a nordeste de sua configuração; havia instalações para as madres (que não foram ocupadas durante a nossa presença) a norte, mas ficámos na implantação dos padres, a alguma distância daquelas, onde havia uma pequena ponte-cais que facilitava a nossa manobra de ligação, apoio e logística.
Sem darmos por isso e de forma tão improvisada quão expedita, essa seria a primeira unidade de fuzileiros que se implantou na Angola independente e “acabadinha de estrear” (só anos mais tarde o local haveria de ser aproveitado pela Marinha de Guerra de Angola para esse mesmo efeito)… fuzileiros, se é que assim se pode considerar, pois o treino foi básico e durou exclusivamente o tempo necessário para garantir aprendizagem mínima na preparação do embarque para Ambrizete (N’Zeto).
Fotos:
Alguns dos fuzileiros na ilha Cazanga, com “Alex”;
Lancha de Desembarque Média (LDM) de fabricação portuguesa, uma das lanchas empregues no desembarque de Ambrizete;
O navio Cerro Pelado que foi utilizado na Operação Carlota.
A consultar de Martinho Júnior:
Consultas na Net: