Já ouviram falar de “geografia feminista”? Talvez estejam a achar tão estranho como estudar “física socialista”, “genética liberal”, “matemática homossexual” ou “química ameríndia”. No entanto a disciplina existe, tem departamentos em algumas universidades, entrada na Wikipédia, revistas académicas dedicadas e toda uma rede de seguidores. Na verdade até há quem vá mais longe e estude “glaciologia feminista”. (Não estou a inventar: “Merging feminist postcolonial science studies and feminist political ecology, the feminist glaciology framework generates robust analysis of gender, power, and epistemologies in dynamic social-ecological systems, thereby leading to more just and equitable science and human-ice interactions.”)
Quando se chega a este ponto naturalmente coloca-se a questão de saber onde acaba a ciência e começa a ideologia, um debate que não é novo, um tema que de resto já alimentou controvérsias famosas. Uma delas, ainda na década de 90 do século passado, teve como protagonista o matemático Alan Sokal que conseguiu publicar numa revista americana muito respeitada, a Social Text, um artigo sem pés nem cabeça, Transgredir as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica. A sua ideia era denunciar os excessos dos pós-modernistas, sendo desenvolveria as suas teses num livro que escreveu com Jean Bricmont, Imposturas Intelectuais (Gradiva, 1999). Nele criticavam-se autores como Lacan, Kristeva, Irigaray, Latour, Baudrillard, Deleuze, Guattari, Virilio e Bergson, que utilizavam um jargão aparentemente científico mas vazio de sentido.
O que agora aconteceu foi que três autores levaram o exercício de Sokal a um novo patamar ao enviarem uma vintena de artigos falsos para um conjunto de publicações daquilo que definem como “grievance studies”, algo que talvez pudéssemos traduzir como “estudos do ressentimento” e que incluem muitos novos e esotéricos ramos das ciências sociais. Penso que quem primeiro se referiu, em Portugal, à polémica que explodiu nos meios académicos foi Luís Aguiar-Conraria aqui no Observador, em Desconstruir a heteronormatividade pela porta dos fundos. Vejamos um dos exemplos que ele desenvolve, que fala por si: “Comecemos pelo artigo que deu o título a esta minha crónica: Going in Through the Back Door: Challenging Straight Male Homohysteria, Transhysteria, and Transphobia Through Receptive Penetrative Sex Toy Use. Nele, os autores advogam que, para se diminuir a transfobia, a homohisteria e a transhisteria homens heterossexuais deviam experienciar prazer anal com uns vibradores. Não estou a gozar. Como forma de terapia para curar os problemas descritos, os autores sugerem que, em ambiente controlado, os homens sigam o tratamento prescrito. Cito a última frase: «A partir destes dados, concluímos que a transfobia e a transhisteria exibem uma relação tão estreita com o erotismo penetrativo anal que a penetração anal em ambientes “seguros” pode servir de remédio.» Este artigo foi mesmo publicado na Sexuality & Culture, uma boa revista académica. É inacreditável, mas é verdade. Não quero, de forma alguma, refrear o leitor de fazer esta experiência. Esteja à vontade, mas faça-o por bons motivos e não para curar qualquer homohisteria de que padeça.” Surpreendido? Não fique, que há mais neste artigo e há mais neste Macroscópio. Seja lá como for, regresso a Conraria pois ele nota que a sua crónica “pode, e deve, ser lida como uma anedota bem-disposta. Mas a verdade é que depois de rirmos, devemos também chorar. Sendo a comunidade académica uma das comunidades mais corporativas que existem, não é de esperar dela qualquer acção redentora. Nenhuma tentativa será feita para separar o trigo do joio. O mais provável é que se ataquem os autores deste estudo, que, na verdade, segue a melhor tradição etnográfica. Duvido, por exemplo, que algum dos editores das revistas científicas envolvidas seja corrido.”
Nos Estados Unidos um dos primeiros grandes jornais a dar conta desta controvérsia foi o Wall Street Journal (de que é a imagem que abre esta newsletter), onde Jillian Kay Melchior nos relatou o essencial do caso em Fake News Comes to Academia: “How three scholars gulled academic journals to publish hoax papers on ‘grievance studies.’” Tal como notei logo a abrir, “The existence of a monthly journal focused on “feminist geography” is a sign of something gone awry in academia. The journal in question— Gender, Place & Culture —published a paper online in May whose author claimed to have spent a year observing canine sexual misconduct in Portland, Ore., parks”. Para concluir o quê depois de ter estado, supostamente, a observar o comportamento dos cães? Isto: “a call for awareness into the different ways dogs are treated on the basis of their gender and queering behaviors, and the chronic and perennial rape emergency dog parks pose to female dogs.” Ou seja, um disparate de dimensão semelhante ao destacado no artigo de Conraria, algo que alguém que alguma vez na vida tivesse contactado com um cão (ou sobretudo com uma cadela) saberia ser um perfeito dislate.
Acontece que este tipo de revista académicas só deveriam publicar textos depois de estes passarem por uma revisão de especialistas, de “pares”, a chamada “peer review”, o que as deveria proteger de fraudes. Só que, defendem estes autores, existe actualmente em certos meios universitários um ambiente fechado sobre si mesmo em que há uma ideologia de “ressentimento” que se sobrepõe a qualquer preocupação científica. Por isso terem optado por esta forma de a denunciarem. Ao jornal um dos autores disse que “he was criticizing an academic subculture “that typically ignores (or disdains) reasoned criticism from the outside.” He concluded: “How can one show that the emperor has no clothes? Satire is by far the best weapon; and the blow that can’t be brushed off is the one that’s self-inflicted.” Sendo que a visibilidade do caso, neste ambiente académico, pode representar o fim das carreiras dos autores, como os próprios reconhecem: “Mr. Boghossian doesn’t have tenure and expects the university will fire or otherwise punish him. Ms. Pluckrose predicts she’ll have a hard time getting accepted to a doctoral program. Mr. Lindsay said he expects to become “an academic pariah,” barred from professorships or publications. Yet Mr. Lindsay says the project is worth it: “For us, the risk of letting biased research continue to influence education, media, policy and culture is far greater than anything that will happen to us for having done this.”
O New York Times também abordou esta polémica em Hoaxers Slip Breastaurants and Dog-Park Sex Into Journals, tendo também falado com os autores que, ao contrário do que alguns dos seus detractores, não são militantes conservadores, pelo contrário: “In a joint telephone interview, Mr. Boghossian, an assistant professor of philosophy at Portland State University, and Mr. Lindsay, a writer with a doctorate in math, described themselves as “on the left,” and supportive of social justice “in the common parlance.” As for accusations of trolling, they said the scholars engaged in “grievance studies” were the ones fanning the flames of the culture wars. Their only goal, they said, was to protect the integrity of scholarship, which they suggested was lower in the fields they targeted.” O jornal cita reacções de académicos de outras especialidades, nomeadamente das chamadas “ciências exactas”, e se é verdade que alguns admitem que mesmo nestas seria possível um jornal científico das suas áreas seria possível uma fraude, destaco a reacção de Yascha Mounk, um cientista político de Harvard, autor de um recente e influente livro, The People vs. Democracy: Why Our Freedom Is in Danger and How to Save It. Escreve o NYT que “called the hoax “hilarious and delightful” on Twitter. In an interview, he said of the authors, “What they have shown is that certain journals, and perhaps to an extent certain fields, can’t distinguish between serious scholarship and a ridiculous intellectual hoax.”
Citei Yascha Mounk também porque ele escreveu sobre este tema um artigo na The Atlantic, What an Audacious Hoax Reveals About Academia,de conteúdo bem interessante. Primeiro, quando falamos das áreas denunciadas por este trabalho não estamos a falar de zonas marginais da Academia, estamos a falar de investigadores de Universidades prestigiadas: “Generally speaking, the journals that fell for Sokal Squared publish respected scholars from respected programs. For example, Gender, Place and Culture, which accepted one of the hoax papers, has in the past months published work from professors at UCLA, Temple, Penn State, Trinity College Dublin, the University of Manchester, and Berlin’s Humboldt University, among many others.” Depois, e este é o aspecto mais importante, “it is nonsensical to insist that nonsense scholarship doesn’t matter because you don’t like the motives of the people who exposed it, or because some other forms of scholarship may also contain nonsense. If certain fields of study cannot reliably differentiate between real scholarship and noxious bloviating, they become deeply suspect. And if they are so invested in overcoming injustice that they are willing to embrace rank cruelty as long as it is presented in the right kind of progressive jargon, they are worsening the problems they purport to address.”
O que nos permite voltar à nossa “geografia feminista”, até porque essa área de estudos (chamemos-lhe assim) já tinha sido objecto de controvérsia, sem grandes consequências. O ano passado, por exemplo, Charlotte Allen perguntava na Weekly Standart Are You Ready for 'Feminist Geography'? e depois como contava-nos como Daniel Cockayne, Universidade de Waterloo, Ontário, Canada, “an “economic geographer,” says his research “is influenced by social theory, including feminist theory, Marx’s writing, political theory, post-structuralism, psychoanalysis, and queer and affect theory . . . Additionally, Daniel also investigates the relationship between queer theory and software studies, and is engaged in feminist critiques of knowledge production in geography.”
“Nonsense”, diríamos nós não se desse o caso de este tipo de estudos estar a florescer nos meios universitários de todo o mundo desenvolvido ao mesmo tempo que académicos que se atrevem a discordar do cânone dominante correm sérios riscos de ser ostracizados. Ainda esta semana o londrino Telegraph contava-nos que um Oxford professor who defended British Empire says academics are now afraid to share a platform with him. O académico em causa, Nigel Biggar, tem uma longa carreira e pouco tem a perder por ter manifestado as suas opiniões, contudo aquilo que descobriu sobre o ambiente na sua prestigiada universidade assustou-o: “However he said the “most disturbing” reaction he encountered came from a junior academic he invited to a private conference he had organised to discuss a paper on the British Empire. Prof Biggar said: “He said ‘I’d love to come but you have to promise me that my name appears nowhere and if you take photographs my face doesn’t appear anywhere, because I fear if some of my senior colleagues got to find out I was consorting with you my career would be damaged’.”
Este último episódio permite-me terminar com uma recomendação que pode parecer interesseira, mas não é. Refiro-me de novo ao programa que faço com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto, Conversas à Quinta, e que esta semana versou a recomendação de um organismo do Conselho da Europa para que Portugal mudasse o ensino da sua História, supostamente para não ignorar a violência cometida contra os povos das ex-colónias. Em Será que agora querem dizer-nos que História devemos ensinar nas nossas escolas?é feita uma leitura muito crítica dessa recomendação, nota-se que ela não é feita a nenhum outro país europeu que, como Portugal, também tenha tido um império colonial, para além de se enquadrar o activismo que levou à inclusão dessa recomendação num relatório sobre racismo no quadro mais geral de uma tentativa de revisão da História não à luz da procura da verdade sobre o que realmente aconteceu, mas sim seguindo critérios que sirvam agendas políticas contemporâneas. Sinceramente acho que é mais um programa a não perder, pelo desassombro e pelo que nele se aprende.
De resto, como sempre, desejo-vos bom descanso, boas reflexões e um algum do bom senso e abertura de espírito que parece faltar nalguns departamentos académicos mesmo das mais prestigiadas universidades.
Mais pessoas vão gostar da Macroscópio. Partilhe:
no Facebook no Twitter por e-mail
Leia as últimas
em observador.pt