António Costa começa, esta segunda-feira, a visita oficial a Angola, quebrando um jejum de sete anos. De lá para cá, muitos foram os contratempos. E um "irritante".
A última visita oficial de um primeiro-ministro português a Angola aconteceu no final de 2011. Durou cerca de 24 horas e, à época, era Pedro Passos Coelho o chefe de Governo. Com a aterragem de António Costa em Luanda, esta segunda-feira, é colocado um ponto final no hiato de 2498 dias desde a última visita oficial de um líder do Executivo. Demasiado tempo, dizem alguns; o tempo necessário ou possível, dirão outros. Certo é que, durante sete anos, as relações entre os dois países não foram as melhores.
Das "desculpas" do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, ao anúncio de José Eduardo dos Santos sobre o fim da "parceria estratégica" entre Angola e Portugal, passando pelas ondas de choque provocadas pelo 'caso Manuel Vicente', vários foram os episódios que confirmaram essa animosidade.
Mas, depois das polémicas que levaram, inclusive, ao sucessivo adiamento da deslocação dos representantes do Governo ao território angolano, os tempos são outros. Serão mesmo? Segundo as mais altas entidades dos dois Estados, não há dúvidas. Exemplo disso foram, pouco antes do anúncio das datas da deslocação a Angola, as cartas enviadas pelo presidente da República angolano, João Lourenço, a António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, como "sinal das boas relações" entre os dois países.
Pode então dizer-se que nos encontramos perante um ambiente diplomático que, em vésperas da visita oficial, é mais saudável? Marcelo sempre o proclamou, falando num relacionamento "francamente bom" entre dois países "destinados a estar juntos". Mais ainda, entende o chefe de Estado, depois de o Tribunal da Relação de Lisboa ter feito "desaparecer o irritante", ao remeter para Angola, já este verão, o processo judicial que envolve o antigo vice-presidente angolano, Manuel Vicente, no âmbito da ´Operação Fizz´.
"Tenho esperança de que com esta decisão da Relação o 'irritante' que existia fique ultrapassado", disse também, em entrevista ao Diário de Notícias, António Costa, que assinala que visita acontece num "momento auspicioso" das relações.
Preparar a visita, adiar a visita, marcar a visita. Eis a visita, após o "irritante"
Foi no início de fevereiro do ano passado, há um ano e sete meses, que o ministro dos Negócios Estrangeiros português, Augusto Santos Silva, confirmou que a sua visita a Angola, nesse mesmo mês, servia também para preparar uma deslocação "ao mais alto nível". Isto é, que incluísse o primeiro-ministro.
Não só a visita oficial de António Costa não se realizou, como, poucos dias depois, também Angola anunciava o adiamento da deslocação da ministra da Justiça portuguesa, Francisca van Dunem. "Foi adiada, a pedido das autoridades angolanas, aguardando-se o seu reagendamento", lia-se num curto comunicado do ministério, dado a conhecer uma semana depois de o Ministério Público português ter acusado de corrupção e branqueamento de capitais o antigo vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, no âmbito da 'Operação Fizz'.
Daí para a frente, foi a constante recusa das autoridades portuguesas em entregar o processo às autoridades angolanas que fez novamente estalar o verniz, com Angola a fazer "depender muito" dessa decisão o bem-estar das relações entre os dois países. Uma posição que também não deixou indiferente Pedro Passos Coelho que, enquanto líder do PSD - e da oposição -, não escondeu a preocupação com a "degradação da relação bilateral" e sinalizou: "Os governos não respondem pelos tribunais e os tribunais não respondem por aquilo que os governos fazem", disse.
Do lado angolano, meses mais tarde, era o presidente João Lourenço a criticarabertamente as autoridades portuguesas. "Lamentavelmente, Portugal não satisfez o nosso pedido, alegando que não confia na justiça angolana. Portanto, nós consideramos isso uma ofensa" afirmava, no início deste ano e cerca de seis meses antes de anunciadas as datas da visita oficial que agora começa.
Uma tomada de posse, um novo presidente e uma ausência
Há um ano, na cerimónia da tomada de posse de João Lourenço como novo presidente de Angola, Portugal esteve representado ao mais alto nível, com Marcelo Rebelo de Sousa entre os convidados. Porém, se o chefe de Estado esteve presente, houve uma ausência notada durante a cerimónia: a palavra "Portugal".
Durante o discurso da posse, o novo presidente angolano adiantou que, do ponto de vista económico, Angola daria "primazia" a "importantes parceiros" como os Estados Unidos da América, a República Popular da China, a Federação Russa, a República Federativa do Brasil, a Índia, o Japão ou a nossa vizinha Espanha, mas deixou de fora Portugal. "E outros parceiros não menos importantes, desde que respeitem a nossa soberania", sublinhou João Lourenço, numa expressão que, desde logo - e tendo em conta os processos judiciais envolvendo altas figuras de Angola -, foi entendida como uma clara crítica ao Estado português.
Em Angola, o chefe de Estado português não hesitou em destacar a "amizade e fraternidade" e as "muitas boas" relações entre os dois países. Em Portugal, António Costa também garantiu que as relações estariam "ótimas". Mas, a verdade é que, apesar de Marcelo ter sido aplaudido em Luanda, Portugal não foi mencionado, abrindo caminho às críticas e à especulação.
Os editoriais do Jornal de Angola
A 11 de julho deste ano, num editorial intitulado "As relações entre Angola e Portugal", o Jornal de Angola escrevia que os dois países têm "tudo para estabelecer exclusiva e definitivamente uma relação de amor e não mais de ódio" e que têm também "condições para se constituírem num bom exemplo de cooperação, na base do respeito mútuo".
Mas, se a data do anúncio da visita de António Costa ao território angolano motivou um editorial em que se sublinha a normalização da relação entre os dois Estados, os últimos tempos foram férteis em críticas do jornal a Portugal.
Logo no primeiro editorial de 2017, intitulado "Desejos para o Novo Ano", o diário não poupava nas críticas à imprensa portuguesa. "Seria bom que, de uma vez por todas, a imprensa portuguesa entendesse que Angola é um país independente e que, como tal, tem todo o direito de pensar pela sua cabeça", lia-se no editorial.
Outro exemplo foi o editorial publicado em julho de 2014, no qual, a propósito da visita de José Eduardo dos Santos ao Brasil, se escrevia que "só Lisboa, orgulhosamente só, continua a dar guarida a todos os inimigos da democracia angolana, estendendo-lhes a passadeira vermelha e ao som de trombetas e fanfarras". No mesmo editorial, assinalava-se que "cada qual escolhe os amigos que quer" e que "Portugal escolheu a Jamba e agora escolhe os antigos colaboradores de Savimbi."
Também em outubro de 2013 as palavras escritas no Jornal de Angola motivavam o debate acerca da relação entre os dois países. Num editorial intitulado "Clarificação necessária", o diário salientava os "percalços" nas relações entre os dois países e, apontando o dedo ao Ministério Público Português, escrevia: "Investiguem quem quiserem. Mas não violem o Segredo de Justiça para assassinarem a honra de altas figuras do Estado Angolano."
Um texto que surgia poucos dias depois de um outro, que, com o título "O pedido de desculpas de Rui Machete", se referia a Portugal como "um país muito pobre" e que se "arreganha" perante as antigas colónias. Mas, o que levou, afinal, o governante português a avançar, aos microfones da Rádio Nacional de Angola (RNA), com um pedido de desculpas às mais altas instâncias angolanas?
As "desculpas" de Rui Machete. Um momento "menos feliz"
Foi em outubro de 2013, depois de serem noticiadas as investigações por parte das autoridades portuguesas a altas figuras do regime de José Eduardo dos Santos, que Rui Machete afirmou, na RNA, que o ministério dos Negócios Estrangeiros tinha entrado em contacto com Angola, pedindo "diplomaticamente desculpas" por "uma coisa que não está na nossa mão evitar". Após estas afirmações, as críticas ao ministro foram muitas. Tantas que Rui Machete se viu obrigado a reconhecer que se tinha tratado de um momento infeliz por parte da diplomacia portuguesa. "Num propósito de apaziguamento, procurando minimizar essas repercussões negativas nos Estados (...) lamentei aquele facto, não me custando hoje admitir tê-lo feito de forma menos feliz", disse.
Ainda assim, durante vários meses, a polémica incendiou as relações e levou mesmo o ex-presidente angolano, José Eduardo dos Santos, a relevar as "incompreensões" e a rejeitar a "construção da parceria estratégica" antes anunciada. Nada que não tivesse, no entanto, solução: mais de um ano depois, o líder de Angola recebia o ministro dos Negócios Estrangeiros e dava por encerrado "um ciclo em que tinha havido um ou outro mal-entendido". Mas o ciclo ainda não tinha terminado. E outros episódios se seguiram.
Agora, depois dos avanços e recuos nas relações diplomáticas, certo é que a visita oficial de António Costa a Angola - com João Lourenço na liderança do país e do MPLA - surge rodeada de expectativas, mas num momento de aparente melhoria das relações diplomáticas. O mote já foi dado por Marcelo Rebelo de Sousa, que não vislumbra "irritante nenhum" que possa afetar o "sucesso da visita".
Fonte: TSF