Nunca se tinha visto um golpe assim. A mensagem de Erdogan retransmitida via Facetime por um jornalista que segurava um iPhone. Milhares nas ruas a cercar os tanques. Polícias a levarem militares presos, quando costuma ser ao contrário. Mas contragolpes assim já se tinham visto muitos, com milhares de prisões, de demissões forçadas e de direitos fundamentais suspensos. Num dia, a percepção de que se tinha evitado o regresso do golpismo militar, um hábito com velhas tradições na Turquia; no dia seguinte a impotência perante uma deriva autoritária de um presidente que parece mostrar absoluta indiferença perante os apelos da Europa e dos Estados Unidos.
Dir-se-á: é na Turquia, lá longe, no outro extremo da Europa. É assim na geografia – não é no significado nem nas implicações. Já iremos com mais detalhe ao que se passou e ainda pode passar, mas para tomarmos consciência que a distância não é motivo para não nos inquietarmos vou apenas referir-vos dois textos, nenhum deles sobre a Turquia, ambos com reflexões importantes sobre o que parece ser o recuo da ordem liberal à escala global. O primeiro foi uma entrevista que eu mesmo fiz ao historiador Timothy Garton Ash a propósito do Brexit e da candidatura de Donald Trump – “Eu vi como os ingleses votaram no Brexit. Por isso, não se iludam: Trump pode ganhar” – onde ele refere, referindo aos que defendem uma ordem demoliberal, que “Os ventos sopram contra nós, não tenho qualquer dúvida. Contra todos os que, como eu, acreditam no liberalismo internacionalista. Tivemos um período extraordinário em que tudo melhorou – a democracia estendeu-se por todo o mundo, primeiro na Europa Ocidental e na América do Norte, depois na Europa do Sul e na América do Sul e, a seguir na Europa do Leste, depois na Ásia. Até à Primavera Árabe tudo parecia correr bem, ir na boa direcção, na direcção da liberdade. Mas depois, algures entre o referendo francês, o referendo holandês e a crise financeira, os ventos mudaram de direcção. Agora, da situação na Ucrânia ao Brexit, do fim da Primavera Árabe à crise da Zona Euro, a maré virou e nós estamos da defensiva.”
No mesmo sentido recomendo a leitura de The Shrinking of the Liberal Order, um artigo de William Galston no Wall Street Journal onde se nota que “The optimistic assumption that history’s arc is linear and progressive is being challenged by the older, darker view that order is locked in a perpetual struggle with chaos, security with danger. If liberal means are no longer adequate to guarantee order and security, say the challengers, they become niceties we can no longer afford.”
Mas vamos até à Turquia para vermos até que ponto o que lá se está a passar encaixa neste padrão. E comecemos por referir algumas sínteses que ajudam a seguir o fio dos acontecimentos. Uma delas, bastante completa, com muitas actualizações até ao dia de ontem foi a feita pela The Atlantic, What's Going On in Turkey?. A principal actualização de hoje é que uma das consequência da declaração do estado de emergência por Erdogan foi a suspensão temporária da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Na edição em inglês do jornal turco Hurriyet, Murat Yetkin descreve, em Extraordinary Times In Turkey, os termos do que considera ser “The biggest elimination operation in Turkish public service is under way following the failed coup attempt of July 15. It focuses on the elimination of suspected sympathizers of Fethullah Gülen from public service - not only from the military but also from the courts, the intelligence services, universities, schools, state auditing institutions, everywhere you can think of.” O texto é interessante por recordar com algum detalhe quem é esse Fethullah Gülen que se tornou no inimigo público número 1 de Erdogan.
Por isso salto para a alemã Spiegel que conseguiu entrevistar o clérigo turco, actualmente a viver na Pensilvânia, Estados Unidos. O texto chama-se precisamente Public Enemy No. 1: A Visit with Fethullah Gülen, Erdogan's Chief Adversary e revela-nos um homem que faz alarde de viver modestamente mesmo dirigindo uma enorme organização. Nessa entrevista, apara além de voltar a negar qualquer envolvimento no golpe, Gülen insinua que “it may have been Erdogan himself who staged the putsch in order to strengthen his power and he notes that the president spoke of a golden opportunity to conduct a purge. But Gülen says he was also surprised by the unusual course taken by the putsch. After all, he said, the rebels failed to eliminate the political leadership right at the beginning. In effect, he is spinning his own conspiracy theory to counter Erdogan's. But he has no proof.”
A verdade é que, como também se recorda neste texto, este líder religioso, propagandista de um Islão mais moderno e moderado, entrou em ruptura com Erdogan, que inicialmente apoiou, um processo que também aconteceu com outros, mesmo que por motivos diferentes. Isso mesmo recorda Asli Aydintasbas, fellowno European Council on Foreign Relations, que em Turkey’s Strongman Recoups His Losses, um texto do Wall Street Journal, faz uma recapitulação sobre a forma como as suas próprias opiniões foram evoluindo: “I was an early supporter of AKP in its first years and enthusiastic about their efforts to diminish the importance of hardline secularism in Turkish politics. Fourteen years ago I wrote on these pages that AKP-style Islamism could evolve into a version of Christian Democrats in Europe. But my own views on secularism have since changed. I now believe that it is impossible to establish a pluralistic democratic order without real secularism. It is also equally difficult to imagine that, having defeated the mighty military, the conservative base of the AKP and all the religious sects that were out on Friday night will want anything but an even more rigid Islamic order headed by Mr. Erdogan.”
Num registo mais analítico, deixo duas sugestões. A primeira é um texto mais longo e informativo, mas que enquadra bem o que se está a passar naquilo que a Turquia foi politicamente nos últimos 100 anos, na prática desde o triunfo de Ataturk e do seu regime autocrático, laico e modernizador. Trata-se de A Coup as Audacious as Turkey's Future, de Reva Goujon na Stratfor. É um texto que não alimenta grandes expectativas sobre a possibilidade de a Europa ou os Estados Unidos terem uma influência suficientemente forte sobre o regime de Ankara para alterarem o curso dos acontecimentos: “As the inevitable crackdown ensues, European lectures on respect for human rights will fall on deaf ears. Turkey's leaders will do what they deem necessary to feel secure, and their European counterparts will bite their tongues as they try to preserve the Continent's tenuous immigration deal with Ankara. Erdogan will similarly use Washington's reliance on Ankara's cooperation in the fight against the Islamic State to demand Gulen's extradition from the United States.”
A outra análise a não perder é a da The Economist, que dedica a sua capa desta semana à Turquia: Erdogan’s revenge, que introduz defendendo que “Turkey’s president is destroying the democracy that Turks risked their lives to defend.” Mais adiante, no principal editorial desta edição, traça-se um quadro sombrio sobre o future, um futuro que pode não sorrir a ninguém: “Mr Erdogan’s greatest success—the economy—has become his weak point. Many tourists are now too frightened to visit, so the current-account deficit will only gape wider. To stay afloat the country needs foreign investment and loans, so it must reassure foreigners that it is stable. With Mr Erdogan acting like a vengeful sultan, that will be hard. The repercussions of the putsch will be felt for a long time. The coup-makers killed many fellow Turks, discredited the army, weakened its ability to protect the frontier and fight terrorists, rattled NATO and removed the restraints on an autocratic president. A terrible toll for a night of power-lust.”
Para terminar em beleza regresso ao Observador e ao programa que gravamos todas as quintas-feiras, o Conversas à Quinta, com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto. Hoje foi naturalmente dedicado à situação na Turquia e permitiu uma profundidade de análise que tornou esta episódio especialmente interessante e esclarecedor, em muitos aspectos uma verdadeira lição de história e de geopolítica. Por isso não hesitei em intitulá-lo Golpe na Turquia: O que precisa (mesmo) de saber. Como sempre o programa pode também ser ouvido em podcast (pode descarregar e assinar aqui).
O jornalista turco do Hurriyet que citámos quase a abrir esta newsletter falava de “tempos extraordinários”, e dificilmente poderemos deixar de concordar. O problema é que não são apenas extraordinários, são também perigosos e inquietantes. Na Turquia e bem para além dela. Mas por hoje é tudo, tenham um bom descanso e aproveitem para selecionarem as melhores leituras. Até amanhã.
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