Nesta época de balanços, este Macroscópio não pretende – nem podia pretender – proceder ao balanço deste tão surpreendente ano de 2016. Ainda é demasiado cedo para percebermos se alguns dos acontecimentos deste ano são apenas fenómenos pontuais ou se assinalam um começo de um outro tempo. De resto isso mesmo referi hoje em mais um Conversas à Quinta com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto – 1917. Há um século, o mundo mudou para sempre – pois é pouco provável que no final desse ano que foi o da Revolução Russa já se tivesse uma ideia de como os acontecimentos em Petrogrado e Moscovo condicionariam toda a história do século XX. Agora que estamos quase a entrar em 2017 também ainda é cedo para dizer até que ponto o que se passou em 2016 influenciará o future das nossas sociedades democráticas e liberais, mas não deixa de ser uma boa oportunidade para reflectirmos. E é isso que se faz no conjunto de textos que sugiro hoje, com perspectivas naturalmente diferentes, mas que julguei, por regra, desafiantes.
Uma das tentações mais recorrentes em alturas destas é encontrar paralelos no passado. Nunca são rigorosos – a História verdadeiramente nunca se repete – mas podem ser educativos. E com que anos se tem comparado 2016? Com 1848, por exemplo, o ano em que um conjunto de revoluções democráticas abalou a Europa. Em 2016's parallels with the revolutions of 1848 o historiador Andrew Roberts faz para a BBC algumas analogias que são curiosas, mas julgo que não muito mais do que isso. Na sua opinião, “The nearest historical equivalent for the year 2016 is 1848, when a series of revolutions broke out one after the other, many of which were similar to each other but each of which was also subtly different, according to local circumstances.” O que uniu essas revoluções e fez com que se sucedessem umas às outras, foi que criaram a percepção de que “establishments could be overthrown”. Aqui também se poderiam assemelhar a alguns dos fenómenos a que assistimos, se pensarmos que foram, antes de tudo o mais, desafios ao status quo, mas as semelhanças ficam-se, para já, por aqui.
Já em Was 2016 just 1938 all over again?, a historiadora Julie Gottlieb analisa, no site The Conversation, as semelhanças com esse ano marcante dessa década terrível que a foi a dps anos 30 do século passado. Porém depois de notar que “It is too simplistic to say that history repeats itself”, acrescenta: “And yet, throughout this past year I could not escape the feeling that we have been here before. We share with those who lived through 1938 overwhelming sensibility of bewilderment, suspense, desperation and fear of the unknown. I can’t help but wonder what future historians will make of 2016.”
Entrar em terrenos desconhecidos, lidar com um mundo que compreendemos menos. Não há dúvida que, pelo menos neste ponto, muitos estarão de acordo, muitos partilharão a mesma sensação de insegurança. A partir daí as análises podem divergir muito. Nomeadamente sobre o tipo de desafios que a democracia liberal enfrenta. Tomemos por exemplo Fareed Zakaria, que em 2003 escreveu um livro muito influente, O Futuro da Liberdade, e que hoje pensa que America’s democracy has become illiberal, como escreve no Washington Post. O seu argumento é que “The Founding Fathers were skeptical of democracy and conceived of America as a republic to mitigate some of the dangers of illiberal democracy. The Bill of Rights, the Supreme Court, state governments and the Senate are all bulwarks against majoritarianism. But the United States also developed a democratic culture, formed in large part by a series of informal buffers that worked in similar ways. Alexis de Tocqueville called them “associations” — meaning nongovernmental groups such as choir societies, rotary clubs and professional groups — and argued that they acted to “weaken the moral empire of the majority.” Ora, na sua perspectiva, o que está a acontecer é que “we are now getting to see what American democracy looks like without any real buffers in the way of sheer populism and demagoguery. The parties have collapsed, Congress has caved, professional groups are largely toothless, the media have been rendered irrelevant.”
John O'Sullivan defende uma perspectiva quase oposta em Populism vs post-democracy, um interessante artigo que publicou na Spectator. O que ele vê é mais o povo a reivindicar o seu direito a exprimir-se por oposição aos “informal buffers”, mas não só, referidos por Zakaria: “The great undiscussed problem of modern democracy is that liberalism without democracy is the system of government towards which the West has been moving for a generation or more. There has been an increasing shift of power from elected and accountable bodies, such as Parliament, to semi-independent bureaucratic agencies that make their own laws (called regulations), to the courts, and in more recent years to European and other transnational bodies. Liberal progressive elites at the top of mainstream political parties went along with this shift of power. It helped them to ignore the apparent wishes of the voters.” Mais adiante, já em forma de conclusão, acrescenta: “‘In short,’ as the Dutch political scientist, Cas Mudde, pointed out some years ago, ‘populism is an illiberal democratic response to undemocratic liberalism. It criticises the exclusion of important issues from the political agenda by the elites and calls for their repoliticisation.’ The populist upsurges in Europe are such a response. The answer is to discuss the issues at their heart.”
Continuando a contrastar pontos de vista, vale a pena ler visões quase catastrofistas do que aconteceu quando o povo foi às urnas em 2016 comparadas com outras em que há uma tentativa de entender melhor as motivações dos eleitores. Um texto que talvez possa colocar na primeira categoria é o de Lionel Barber no Financial Times, The year of the demagogue: how 2016 changed democracy. Por um lado, o que o preocupa: “It was a good year for strongmen: Vladimir Putin in Russia; Recep Tayyip Erdogan in Turkey; Xi Jinping, now promoted to “core” leader in China. It was an even better year for demagogues, the crowd-pleasers and rabble-rousers who feed on emotions and prejudice. In the year of the demagogue, several vied for the lead role: Nigel Farage, then Ukip leader, godfather of Brexit and Trump acolyte; Rodrigo Duterte, a brutal newcomer to power, who pledged to slaughter millions of drug addicts to clean up the Philippines; and Trump himself, who constantly marvelled at the size of his crowds.” Por outro lado, a chamada de atenção para os movimentos tectónicos que determinam estes sobressaltos eleitorais: “Something more profound is happening in advanced democracies. The forces at work are cultural, economic, social and political, driven in part by rapid technological change. Artificial intelligence, gene editing, self-driving cars — progress on all these groundbreaking technologies accelerated in 2016. Each is massively empowering (the smartphone has given everyone a voice) but also massively disruptive (the impact of artificial intelligence on jobs has barely begun to be felt). In political terms, Brexit and the Trump triumph highlight the decline of the party system and the end of the old left/right divide.”
Já Charles Moore, escrevendo na Spectator, mostra mais simpatia – compreensão? – pelas motivações dos eleitores. Fá-lo num texto com um título que é tão provocador como desafiante: I’m a part of the elite. So why am I cheering for the populist right? Nele escreve, por exemplo, que “The response of elites to their failures is too often to stigmatise the people who complain. Those who protest at immigration levels ten times higher than 30 years ago are treated as racists. Even the ballot box itself is seen as ‘populist’. Remainers argue that the referendum issues were ‘too complicated’ for voters. They seem actively to dislike the idea that our nation should once more be governed by its elected representatives. Having failed electorally, they turn to ‘lawfare’ — preferring a case before the Supreme Court to the direct implementation of what Parliament handed to the people to decide. Voters now believe that their rulers really do not like them very much, so the feeling becomes mutual.”
Este choque entre os eleitores e as elites que forma o chamado “establishment” tem vindo a ocorrer sob diferentes formas, como nota Kieron O'Hara na The Conversation, em 2016: the year the establishment met its match, um texto útil por ajudar a distinguir os diferentes tipos de insurgência, um que habitualmente “arrumamos” à esquerda, outro à direita: “Broadly speaking, there are two separate attacks on an apparently settled order – one from within, one from without. Neither has a clear agenda, and each is more oppositional than constructive. It is therefore all the more important to understand what they oppose.”
Já em ¿Qué es el populismo? Bernard-Henri Lévy ajuda-nos a pensar, no El Pais, sobre a natureza do fenómeno, concluindo que “Decimos “populismo”. Y es el nombre, finalmente único, de la reacción de las democracias al pánico que les gana y a la desbandada que las amenaza.”
Como pano de fundo de muitas destas “insurreições eleitorais” podemos localizar um descontentamento crescente com o rumo da União Europeia. O que me levou a juntar aqui três textos publicados na imprensa portuguesa nos últimos dias onde isso ressalta muito evidente:
- “Marine Le Pen vai vencer e a França vai sair do euro” é uma entrevista, saída no Público, ao economista italiano Claudio Borghi, que se senta no Parlamento Europeu no mesmo grupo da líder da Frente Nacional francesa e que é reveladora por mostra até que ponto esta sector político acredita que esta União Europeia está condenada, ao mesmo tempo que acredita que, por exemplo, uma saída da Itália do euro acabaria por correr bem: “No fim as pessoas serão inteligentes. Os responsáveis vão sentar-se à mesa e vai sair daí um plano de desmantelamento válido para todos. Diz-se que não há alternativa, mas se um quiser sair e disser, “eu vou, querem que vá e provoque a confusão ou vamos todos e resolvemos os problemas de todos?”.
- O espectro europeu, crónica de António Barreto no Diário de Notícias, considera que “vivemos hoje os tempos mais perigosos que a Europa conheceu desde o fim da Segunda Guerra. Nem o surto terrorista dos anos setenta é comparável com o momento actual” e que “As forças centrífugas ameaçam tornar-se dominantes. Para ser forte e coesa, a Europa ficou muito aquém. Para ser forte e plural, a Europa foi longe de mais. Em qualquer dos casos, a União parece não estar em condições de resolver os seus problemas. Espera por eleições nacionais em vários países, o que agrava a percepção de que a União não existe e a cidadania europeia é uma ficção”.
- BCE é uma ameaça maior do que o populismo, texto de Rui Ramos no Observador, é uma reflexão sobre como, na Europa, se procura evitar enfrentar os probleas de fundo com paliativos: “Há anos que o BCE usa dinheiro barato para poupar Estados, bancos e empresas à realidade da falência e à necessidade de reformas. O resultado tem sido perverso. Em 2008, explicaram-nos que o capital financeiro erguera um castelo de cartas. Mas como descrever o actual castelo europeu de dívidas e de défices alimentados pelo BCE? Sabemos como o abuso do crédito acabou da última vez. Irá agora acabar de maneira diferente? O BCE está a gerar na Europa uma espécie de subprime político, cuja ruptura, um dia, poderá precipitar a primeira grande viragem do século.”
Tendo de continuar a avançar quando é tanto o nevoeiro talvez conviesse ser mais humilde, e por isso gostei de ler Jeremy Warner no Telegraph, onde nota que 2016 It was the year that almost everyone got wrong – again. Ou seja, não imaginámos que fosse possível passar o que se passou no Brexit e com a eleição de Trump porque vivíamos instalados num falso conforto: “We had come to assume a status quo bias in politics – that when push comes to shove, people will always vote for the devil they know, rather than the deep blue sea – or worse, we had become too metropolitan in our outlook to appreciate the reality of life in the great hinterland of our countries. For this complacency alone, the political/business/institutional establishment deserves its humiliation.”
A questão, agora, deveria saber ler os sinais e tirar as devidas lições, algo que a The Economist (de onde retirei a ilustração com que abri esta newsletter) procura fazer no seu editorial The future of liberalism: How to make sense of 2016. O seu ponto de partido é que “Liberals lost most of the arguments this year. They should not feel defeated so much as invigorated”. O que ponto de chegada é que não faltam oportunidades para usarmos o que hoje nos surge como uma crise como sendo a oportunidade de mudar e de o fazer dentro do sistema que sempre mostrou ter mais capacidade para mudar de forma gradual, pacífica, mas no fim do dia transformando realmente as vidas para melhor: “Liberals must explore the avenues that technology and social needs will open up. Power could be devolved from the state to cities, which act as laboratories for fresh policies. Politics might escape sterile partisanship using new forms of local democracy. The labyrinth of taxation and regulation could be rebuilt rationally. Society could transform education and work so that “college” is something you return to over several careers in brand new industries. The possibilities are as yet unimagined, but a liberal system, in which individual creativity, preferences and enterprise have full expression, is more likely to seize them than any other.”
Temos muito que pensar, muito que discutir, muito que avançar se quisermos que 2016, mesmo sendo um ano-charneira, é o que nos reconduz à essência do destino democrático e liberal. Não faltarão ocasiões para o fazermos em 2017, e o Macroscópio promete ajudar.
Tenham um Bom Ano Novo, para todos votos de um melhor 2017.
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