As eleições autárquicas subdividem-se em 308 municípios e 3.092 juntas de freguesia, cada qual com as suas especificidades. Mas essa diversidade não inviabiliza leituras políticas ao nível nacional, com eventuais repercussões nas lideranças de partidos ou no Governo em funções.
Aliás, não seria inédita a queda de um líder partidário (e até primeiro-ministro) na sequência de um mau resultado em eleições autárquicas. Em dezembro de 2001, António Guterres criou esse precedente, ao demitir-se dos cargos de primeiro-ministro e secretário-geral do PS para evitar que o país caísse “num pântano político”. Anteriormente, em janeiro de 1989, a substituição de Vítor Constâncio por Jorge Sampaio na liderança do PS deveu-se, em grande medida, ao processo de escolha do candidato socialista a Lisboa nas eleições autárquicas desse ano. Entre outros exemplos.
Mas como é que se define o vencedor das eleições autárquicas? O partido que obtém mais presidências de câmaras municipais, o que recolhe mais votos ao nível nacional, o que conquista as autarquias mais importantes, o que acumula mais vereadores? Depende das circunstâncias. Na noite eleitoral, cada partido costuma exaltar as suas vitórias e relativizar as suas derrotas. Parece que não há vencidos, apenas grandes e pequenos vencedores. A profusão de candidaturas independentes e coligações variáveis acentuou esse fenómeno.
Neste contexto, o que esperar das eleições de domingo? O PS dispõe de uma vantagem confortável (mais 44 câmaras municipais do que o PSD) para gerir e só um desastre generalizado nas urnas de voto poderá custar-lhe a presidência da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP). O PSD procura encurtar a distância e recuperar alguns municípios importantes. O PCP tem 34 bastiões para defender, com especial atenção em Loures, Almada, Setúbal e Évora. O CDS-PP aposta num bom resultado da líder Assunção Cristas em Lisboa, volta a apoiar o independente Rui Moreira no Porto, estabelece cerca de 100 alianças com o PSD (que em 2013 resultaram em 19 vitórias) e tenta preservar as suas cinco presidências. O BE mantém o apoio a Paulo Cafôfo no Funchal e foca-se no aumento do número de vereadores eleitos.
Além dessa contabilidade relativa de ganhos e perdas, há um conjunto de decisões em jogo que poderão ter importantes repercussões políticas, tanto ao nível local como nacional. O Jornal Económico selecionou seis pontos de análise, na forma de perguntas. Com respostas mais ou menos em aberto, pendentes da contagem dos votos.
1. Medina terá de formar uma “geringonça”?
Em Lisboa, a vitória eleitoral de Fernando Medina parece não estar em perigo (tendo em conta as sondagens), apesar da sua campanha defensiva, acossado por críticas generalizadas. E mesmo que perca a maioria absoluta na Câmara Municipal de Lisboa (CML), cenário provável (com intenções de voto entre 41% e 49,5%), poderá firmar acordos de governação com a CDU e/ou o BE, cujos candidatos (João Ferreira e Ricardo Robles, respetivamente) já entreabriram as portas para eventuais negociações. “É uma questão que se colocará depois de conhecidos os resultados. A CDU tem por hábito, nas câmaras em que é maioria, distribuir pelouros pela oposição. Em alguns casos onde não é maioria também tem responsabilidades em determinados pelouros, sempre que considera que estão reunidas as condições para desenvolver um bom trabalho,” afirmou Ferreira, em entrevista ao Jornal Económico. “O BE quer uma viragem política à esquerda na CML. E, para isso, estamos disponíveis para nos sentarmos e discutir pilares fundamentais: transportes, habitação, creches para as crianças. Estamos disponíveis para uma viragem à esquerda, estamos prontos para isso,” anunciou Robles, em debate na Rádio Renascença. A disponibilidade dos partidos mais à esquerda para viabilizarem um executivo minoritário de Medina deverá servir de antídoto contra o “voto útil”, impossibilitando assim a maioria absoluta. Nesse cenário, Medina vai enfrentar uma tarefa hercúlea: formar uma “geringonça” que conjugue as diversas sensibilidades da sua coligação (PS, Livre, Cidadãos Por Lisboa e Lisboa É Muita Gente) com as da CDU e/ou do BE.
2. O CDS-PP vai superar o PSD na capital?
Além da dimensão da provável vitória de Medina e da correlação de forças entre PS, CDU e BE, as atenções focam-se na disputa pela liderança da oposição na CML, estando Assunção Cristas (CDS-PP/MPT/PPM) ligeiramente à frente de Teresa Leal Coelho (PSD) nas intenções de voto (entre 1% e 1,8%, dentro das margens de erro). A confirmar-se, esta ultrapassagem (que até hoje só ocorreu uma vez, nas eleições autárquicas de 1976) terá um relevante significado político. Desde logo ao consolidar a posição de Cristas no CDS-PP, libertando-a do espectro de Paulo Portas que obteve 7,59% dos votos em 2001, quando se candidatou à CML, prometendo nos cartazes: “Eu fico” (mas não ficou). Ora, nas mais recentes sondagens, Cristas tem entre 13,3% e 17% das intenções de voto, podendo vir a duplicar o resultado alcançado pelo ex-líder. Mais, comprova o erro político de Pedro Passos Coelho, ao ter recusado uma candidatura conjunta PSD/CDS-PP (encabeçada por Cristas) em Lisboa. Agora corre o risco de ser humilhado e daí talvez o aviso de Miguel Relvas, antigo “braço direito” de Passos Coelho, referindo-se a Cristas: “Anda atrevida, anda.” Em contraste com o que sucedeu em 1978, quando Nuno Krus Abecasis (CDS) conquistou a presidência da CML através de uma coligação PSD/CDS, já em 2017 Passos Coelho (e Relvas) parecem entender a relação entre PSD e CDS-PP como um jogo de soma zero. Importa recordar que a primeira maioria absoluta de Cavaco Silva (PSD) em eleições legislativas data de 1987, apenas dois anos depois da terceira vitória consecutiva de Abecasis em Lisboa.
3. Moreira não necessitará do PS para governar?
É indisfarçável o nervosismo reinante nas hostes de Rui Moreira, recandidato à presidência da Câmara Municipal do Porto (CMP) através de um movimento independente que conta com o apoio do CDS-PP e do MPT. Anteontem chegou ao ponto de classificar como “falsa” uma sondagem que o colocava empatado com Manuel Pizarro (PS) nas intenções de voto, ambos com 34%, a larga distância dos restantes candidatos: Álvaro Almeida (PSD/PPM) com 9%, Ilda Figueiredo (CDU) com 8% e João Teixeira Lopes (BE) com 7%. O movimento de Moreira alertou para “erros grosseiros” nos “questionários e metodologias”, considerando que “o mais gritante tem a ver com a omissão do nome de Rui Moreira entre as opções apresentadas aos inquiridos.” No mesmo dia, questionado sobre a sondagem, Moreira apelou: “Perante tudo o que tem sucedido nesta campanha, eu espero que os portuenses compreendam muito bem aquilo que está a suceder e que nos dêem a maioria absoluta no domingo.” De facto, as várias sondagens relativas às eleições autárquicas no Porto têm sido estranhamente díspares: algumas colocam Moreira no limiar da maioria absoluta e outras apontam para um empate com Pizarro. Resta aguardar pelo apuramento dos resultados oficiais. E lembrar que, na sequência da surpreendente vitória em 2013, Moreira governou a CMP com o apoio do PS, assegurando uma maioria absoluta. Mas entretanto queimou a ponte que o unia aos socialistas e tanto o PSD como a CDU e o BE não estão dispostos a preencher esse espaço político. Sem maioria absoluta, Moreira ficaria à mercê de uma possível “coligação negativa” da esquerda?
4. A liderança de Passos Coelho resistirá a uma hecatombe eleitoral?
Nas eleições autárquicas de 2013, o PSD sofreu uma derrota pesada, tendo baixado de 139 para 106 presidências de câmaras municipais (enquanto o PS subiu de 132 para 150). A mudança de poder ocorreu em alguns dos municípios mais populosos e importantes do país, nomeadamente em Sintra, Vila Nova de Gaia, Porto, Coimbra e Funchal. O PSD também perdeu a presidência da ANMP que mantinha desde 2001. O cenário foi tão desolador que Pedro Passos Coelho, então nas funções de primeiro-ministro, chegou a admitir que se tratou de “um dos piores resultados de sempre” do PSD. Neste contexto, as expectativas para as eleições de 2017 são muito baixas, algo que deverá beneficiar Passos Coelho no rescaldo. Ou seja, mesmo que não consiga recuperar muitas câmaras municipais, poderá alegar que melhorou em relação a 2013. De qualquer modo, Passos Coelho já ressalvou: “Eu nunca me demitiria de presidente do PSD por causa de um resultado autárquico.” O problema é que a oposição interna está a preparar o terreno para disputar a liderança. “Muitos dentro do PSD dizem que o resultado já foi mau e pior não vai ser. Não. Não são os resultados de 2013 que me interessam. Pedro Passos Coelho tem que prestar contas da casa que recebeu e da casa que entrega,” avisou esta semana Nuno Morais Sarmento, na Rádio Renascença. Em suma, Passos Coelho não se demite, mas Rui Rio garantiu entretanto que vai avançar “em qualquer circunstância” como candidato à liderança. E as iminentes humilhações eleitorais do PSD em Lisboa e no Porto poderão ter um peso significativo nessa disputa.
5. O populismo vai render mais votos?
Tradicionalmente, o populismo costuma manifestar-se em eleições autárquicas através de promessas irrealizáveis de obras faraónicas, ou programas baseados em excessiva despesa pública. No caso de André Ventura, candidato do PSD e do PPM à Câmara Municipal de Loures, estamos perante uma forma mais perigosa de populismo que coloniza o discurso racista e securitário da extrema-direita. Não por acaso, depois de proferir declarações racistas sobre os ciganos, associando a etnia como um todo à criminalidade e à subsidiodependência, Ventura foi assediado pelo líder do PNR, José Pinto-Coelho, que o classificou como um dos “seus” e convidou: “Venha para o PNR e será livre.” Mas Ventura permanece no PSD e insiste em alertar para “um problema com a comunidade cigana”, no geral, além das suas promessas de arrancar todos os parquímetros de Loures, criar 10 mil empregos, transformar a Polícia Municipal num “exército de proteção”, expulsar residentes de bairros sociais que não paguem as contas, etc. Acresce uma série de ideias “politicamente incorretas” que extravasam o perímetro do poder local, nomeadamente a aplicação da pena de morte (ou prisão perpétua) em Portugal. Esta forma de populismo vai ter sucesso nas urnas de voto? A última sondagem em Loures confere 18,2% das intenções de voto a Ventura, pouco acima dos 16% que o PSD obteve em 2013. Mas o “voto populista” costuma ser subestimado em sondagens. As eleições em Loures serão um balão de ensaio para este populismo que, em caso de sucesso, poderá contaminar o discurso político ao nível nacional.
6. BE e PCP vão reconsiderar apoio ao Governo do PS?
É um cenário muito improvável, mas não impossível. Se o PCP perdesse uma parte considerável das 34 presidências de câmaras municipais que conquistou em 2013, sobretudo os bastiões mais importantes de Almada, Setúbal e Loures, decerto que se iniciaria um processo de reflexão interna sobre as vantagens/desvantagens de integrar a “geringonça” que suporta o atual Governo em funções, liderado pelo PS. O mesmo se aplica ao BE, embora seja ainda mais improvável, na medida em que não tem uma grande implantação ao nível autárquico. Ou seja, o BE não tem muito a perder nestas eleições. O hipotético desastre de comunistas e bloquistas nas urnas de voto teria efeitos, desde logo, nas negociações em curso do Orçamento do Estado para 2018, fazendo aumentar as suas reivindicações perante os socialistas. A “geringonça” tornar-se-ia um jogo de soma zero, podendo desembocar numa situação política insustentável. E dificilmente seria replicável a médio prazo, nas eleições legislativas de 2019. Por outro lado, se o PCP e o BE conseguirem excelentes resultados, aumentando o número total de votos e de presidências de câmaras municipais (no caso do BE, importa salientar que apenas integram a extensa coligação que apoia o independente Paulo Cafôfo no Funchal), isso também poderá gerar repercussões políticas ao nível nacional, tornando-os mais confiantes e assertivos nas negociações com o PS. Mas o cenário de maior tensão política seria uma discrepância nos resultados do PCP e do BE, isto é, um dos partidos ter bastante mais proveitos eleitorais do que o outro, transformando a correlação de forças das esquerdas.
Por Gustavo Sampaio
Fonte: O Jornal Económico