Muitas centenas de portugueses e lusodescentes foram capturados e estiveram em campos de concentração nazis, muitos foram vítimas de trabalho escravo. Talvez se conte pela maioria dos portugueses de agora a ignorância de tal facto. Ignorância que a partir de agora já não se justifica, depois da publicação e fecunda divulgação da investigação de um grupo liderado por Fernando Rosas. Afinal, o nazi Hitler, nem ao “seu bom aluno” português, Salazar, lhe poupava os “súbditos”. Campos de Concentração e trabalho forçado com eles! (PG)
Governo lembra pela primeira vez os portugueses vítimas do III Reich
A neutralidade de Portugal na II Guerra não impediu que muitos portugueses ficassem presos na sua rede. Porém, nunca um Governo português lhes tinha prestado homenagem. Até este domingo, quando em Mauthausen for descerrada uma placa no contexto da cerimónia anual do campo de concentração. A iniciativa é de um grupo de investigação liderado por Fernando Rosas.
ela primeira vez, as vítimas nacionais do regime nazi vão ser homenageadas por um Governo português. Será este domingo, em Mauthausen, no contexto da cerimónia anual evocativa da libertação do campo, e terá honras de Estado. E uma placa a falar dos caídos será descerrada no Muro das Lamentações, a dizer: “Aos portugueses de todas as origens e credos que foram vítimas da barbárie nazi.”
Não é por mero acidente que logo agora, 72 anos após finda a guerra, se dá existência a estas vítimas. Tal surge da iniciativa de um grupo de investigação liderado por Fernando Rosas que, desde 2014, está envolvido num projeto chamado “Trabalhadores forçados portugueses no III Reich”. Apoiado pela Fundação Memória, Responsabilidade e Futuro — organismo alemão criado em 2001 para indemnizar os antigos trabalhadores forçados e que hoje se dedica a financiar programas internacionais sobre direitos humanos — e pelo Goethe Institut, o projeto tem a participação de historiadores como Cláudia Ninhos, Ansgar Schaefer, António Carvalho, Cristina Clímaco e António Muñoz, que consultaram arquivos em Portugal, Espanha, França e Alemanha e concluíram que várias centenas de portugueses contribuíram por meio do trabalho escravo com a máquina de guerra alemã.
“Esta é uma investigação que nunca vai terminar”, avisa Cláudia Ninhos. A sua suposta infinitude prende-se com a perceção de que os dados até agora alcançados não passam da “ponta do iceberg”, isto é, dos restos da História, as fontes que não foram destruídas e, entre estas, aquelas que não deixam margem para o equívoco. Sendo omnipresente durante a guerra, o trabalho forçado atravessa todo o sistema concentracionário nazi.
A economia de guerra do Reich assentou em mais de 20 milhões de pessoas recrutadas para a alimentar, e que na sua grande maioria morreram presas nessa digestão. Entre eles, muitos portugueses. “A ideia de que Portugal estava de costas para a Europa é salazarista e mentirosa. A neutralidade portuguesa não deixou o país fora da guerra”, reforça Fernando Rosas.
O historiador estará presente na altura em que a placa em Mauthausen for descerrada, ao lado de Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Barreiros, diplomata de carreira e hoje chefe da delegação portuguesa da International Holocaust Remembrance Alliance, Pedro Moitinho de Almeida, embaixador português na Áustria, e representantes da comunidade portuguesa residente naquele país.
“Este é um momento muito importante e emotivo, com uma carga simbólica imensa. Pela primeira vez se reconhece a existência destes portugueses e se lhes presta homenagem”, diz Luís Barreiros, para quem “toda a memória do horror que foi o sistema nazi deve ser preservada para ajudar as nações atuais a identificarem os sintomas e a travarem a sua repetição”. Porém, nem mesmo a justiça do ato contorna a pergunta: porquê a escolha de Mauthausen?
O CAMPO DOS ESCRAVOS
Uma relação privilegiada com a embaixada da Áustria em Portugal, que facilitou a autorização do Ministério do Interior austríaco para a colocação da placa, terá sido o ponto de partida. O facto de ali existir um memorial onde vários países depositaram homenagens é um chamariz adicional. Mas a verdadeira razão é outra: sendo Mauthausen apenas um dos locais por onde passaram e morreram portugueses, este campo e os campos-satélite a ele associados são um dos principais símbolos do trabalho escravo na Europa ocupada pela Alemanha. Os prisioneiros não só eram explorados brutalmente nas pedreiras como eram ‘emprestados’ ou ‘alugados’ a empresas, fábricas e até lojas, envolvendo toda a sociedade austríaca. Em 1945, nos primeiros dias de maio, foi o último campo a ser libertado pelos Aliados.
Claro que houve portugueses em Mauthausen. Cláudia Ninhos e o resto da equipa de investigação identificaram 12, dos quais oito ali morreram. A maioria chegou ao campo no estertor da guerra, em 1944 e 1945. É o caso de Abel Carvalho, nascido em Vila Verde, pintor de profissão, que, após cumprir 14 meses na prisão francesa de Eysses por delito comum, passou por vários campos no território francês até chegar a Dachau e a seguir a Gusen, subcampo de Mauthausen, onde faleceu em 1945.
É também o caso de Delfim da Cunha Ribeiro, de Lousada, toneleiro, clandestino em França, internado em diversos locais antes de o ser em Dachau e em Mauthausen, em 1944, morrendo pouco depois no subcampo de Melk. Tomás Vieira, de Paderne (Albufeira), tesoureiro da Federação de Emigrantes Portugueses em França, foi preso e levado para o campo de Vernet, para Dachau e para Mauthausen, acabando os seus dias em 1944 no subcampo de Ebeense, vítima de broncopneumonia. Estes três portugueses estiveram naquele que ficou conhecido como o Comboio Fantasma — que, saído de Vernet em junho de 1944, vagueou pela Europa durante dois meses, chegando a ter 800 deportados a bordo em condições sub-humanas e extremo calor, até concluir a viagem em Dachau em finais de agosto.
Mauthausen também fez parte da história de Júlio Laranjo. Este alentejano de Alcácer do Sal vivia em França com a família, tinha sido cozinheiro e operário, fazia parte da Resistência — era membro da COM (Organisation Militaire et Civile) desde 1943 — e foi denunciado e detido em Creil, a sede da Gestapo. Compiègne e Royalieu vieram antes de ser deportado para Buchenwald e logo depois para Mauthausen, onde assistiu à libertação do campo pelo exército americano a 5 de maio de 1945. Passou por um centro de acolhimento na Lutécia antes de ser repatriado, a 19 daquele mês.
A PORTA FRANCESA
Os quatro constituem exemplos de como se processava a entrada dos portugueses na Alemanha nazi. A França era a grande porta para esse acesso, por se tratar do principal destino da emigração económica a partir dos anos 20. Em 1940, o Governo português contabilizava 30 mil portugueses autorizados a trabalhar naquele país.
A transição para o Reich fazia-se de diferentes formas: havia os que se voluntariavam em busca de melhores salários e que, com o avanço da guerra, ficaram retidos; os que o faziam estando ilegais em França e, por não terem passaporte ou inscrição no consulado português, eram impedidos de regressar; os que eram recrutados para trabalho especializado e forçados a permanecer nos anos mais duros da guerra; os que eram presos por fazerem parte da Resistência francesa; os que combateram na guerra civil espanhola e, após a queda da Catalunha, foram internados em campos franceses e ali ‘apanhados’ pela invasão da Alemanha. E havia, conta Cláudia Ninhos, os portugueses que nunca se soube que o eram, confundidos até ao final com espanhóis ou franceses — e desses o rasto perdeu-se para sempre.
Os números também surpreendem. De acordo com a revista “Der Arbeitseinsatz im Deutschen Reich” [“A mobilização da Mão de Obra no Reich Alemão”], a partir de 1939 publicada pelo Ministério do Trabalho, em 1941 havia 163 portugueses a trabalhar no Grande Reich — Alemanha e Áustria. Em 1942 registaram-se 329 e, em 1943, 363 (40 dos quais mulheres). Em 1944, eram 376. Estes números não incluem os prisioneiros dos campos de concentração.
Porém, estes não foram postos de parte do projeto. “Até agora identificámos 70 portugueses no sistema concentracionário nazi, dos quais 50 morreram. E identificámos os nomes de 206 prisioneiros de guerra”, revela Cláudia Ninhos, ressalvando a dificuldade de perceber, por exemplo, até que ponto o número dos prisioneiros de guerra se sobrepõe ao dos identificados apenas como trabalhadores forçados. É por esta razão que a placa a ser colocada em Mauthausen não é nominativa: primeiro, porque a realidade é por vezes demasiado difusa para a conseguir circunscrever; segundo, porque entretanto podem surgir novos nomes.
A investigação, no entanto, abrange-os a todos. E todos fazem parte de uma exposição e de um colóquio internacional que a equipa liderada por Fernando Rosas prepara para 17 e 18 de novembro. Os portugueses no trabalho forçado durante a II Guerra Mundial é o mote de um lado da História que ainda não foi contado — o dos percursos individuais desses cidadãos. Quem eram e de onde? Como foram parar à Alemanha do III Reich? Quem sobreviveu e quem não? As respostas existem e têm nome. E são só uma ínfima parte do que o horror deixou como legado.
Luciana Leiderfarb | Expresso
Foto: Muro das Lamentações do campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, onde a partir deste domingo, dia 7, existirá uma placa a recordar os portugueses vítimas da barbárie nazi / GETTY