Hoje esta newsletter terá menos sugestões de leitura do que o habitual. E com o que julgo ser uma boa razão: alguns dos textos merecem mesmo ser lidos, os meis leitores não devem ficar pela breve síntese que deles aqui apresentarei.
De novo a preocupação será tentar compreender. E compreender começa por saber ouvir o outro lado, como nota Henrique Raposo na sua crónica desta semana no Expresso, Barbárie 2.0 (paywall). Aí reflecte sobre uma constante dos temos que vivemos, o nem sequer sermos capazes de ouvir os outros, os que têm outra ideias. Partindo de um programa de televisão, sublinha que “O contraste entre 1998 e 2016 é total. Seguindo a cultura do Twitter e do Facebook, as pessoas hoje só sabem fazer duas coisas: diabolizar ou gozar com o adversário; o outro lado ou é um mal absoluto que deve ser erradicado ou é uma horda de tontos que deve ser caricaturada. Perdeu-se a capacidade para “compreender”, que não é o mesmo que “apoiar”.”
Este ambiente é uma das componentes de O mundo que criámos, para retomar o título da coluna deste domingo de António Barreto no Diário de Notícias, onde chega a uma triste conclusão: “Populistas, nacionalistas, reaccionários, comunistas e revolucionários: criámos os espectros que nos ameaçam. Ou deixámos criar.” Como sucedeu isso? A lista é longa, o autor procura ser exaustivo, pelo que dela só cito esta passagem: “Fomos brandos perante ideias nefastas. A noção de que a identidade nacional é fantasia reaccionária. A certeza de que a igualdade é fonte de liberdade. A crença de que o sistema democrático gera sempre a liberdade. A convicção de que basta querer para que um pobre e um desempregado deixem de o ser. A certeza contrária: se um pobre e um desempregado são o que são, é por culpa da sociedade.”
Servem estes dois texto de introdução ao primeiro prato forte de hoje, um ensaio de Joan C. Williams publicado na Harvard Business Review logo a seguir à eleições americanas: What So Many People Don’t Get About the U.S. Working Class. Este texto é um murro no estômago e suponho que matéria bem indigesta para quem apenas procura confirmar as suas ideias, não está aberto a sequer considerar as ideias alheias. A autora até admite que “Saying this [já vamos ver o quê] is so unpopular that I risk making myself a pariah among my friends on the left coast.” Na verdade quase tudo o que se refere no texto é anátema para a forma de pensar dominante nos círculos da elite da Costa Leste. Como isto, por exemplo: “National debates about policing are fueling class tensions today in precisely the same way they did in the 1970s, when college kids derided policemen as “pigs.” This is a recipe for class conflict. Being in the police is one of the few good jobs open to Americans without a college education. Police get solid wages, great benefits, and a respected place in their communities. For elites to write them off as racists is a telling example of how, although race- and sex-based insults are no longer acceptable in polite society, class-based insults still are.” Isto e muito mais, até porque esta investigadora tem falado para muitas plateias e sabe bem como muitas vezes o que diz cai (ou caía) em orelhas moucas, como conta ao recordar o que se passou no fim de uma das suas palestras em Harvard: “The woman who ran the speaker series, a major Democratic operative, liked my talk. “You are saying exactly what the Democrats need to hear,” she mused, “and they’ll never listen.” I hope now they will.”
Ora a surdez não se faz apenas de recusa em ouvir – passa também pela desqualificação do adversário ao ponto de nem sequer o procurar entender. Isso acaba quase sempre numa subestimação das suas capacidades. Hoje, que as eleições já passaram e já foram ganhas por Donald Trump, começamos finalmente a ouvir falar, e a dar mais atenção, à chamada Alt-Right, ou Direita Alternativa, um movimento que tinha muitos operacionais na campanha do magnate e que agora colocou algumas das suas figuras – como Steve Bannon – nos lugares de mais relevo da nova Administração. Já falámos dele no Observador – Quem é Steve Bannon, o “homem forte” do governo de Trump? – tal como também já desenvolvemos um pouco a apresentação desta nova corrente política em Alt-Right. Os radicais que Trump leva para o poder, onde também apresentamos mais duas das suas figuras mais controversas, Richard Spencer e Milo Yiannopoulos.
Penso contudo que é necessário ir mais longe, e por isso recomendo a leitura de uma entrevista de Michael Wolff na Hollywood Reporter: Ringside With Steve Bannon at Trump Tower as the President-Elect's Strategist Plots "An Entirely New Political Movement". AÍ Bannon apresenta-se – "I'm not a white nationalist, I'm a nationalist. I'm an economic nationalist." – e elabora sem pudor sobre como conseguiu surpreender o extablishment:
"The media bubble is the ultimate symbol of what's wrong with this country," he continues. "It's just a circle of people talking to themselves who have no f—ing idea what's going on. If The New York Times didn't exist, CNN and MSNBC would be a test pattern. The Huffington Post and everything else is predicated onThe New York Times. It's a closed circle of information from which Hillary Clinton got all her information — and her confidence. That was our opening."
Para romper com esta bolha é necessário ir ainda mais longe, até porque o pensamento deste filho de uma família humilde que conseguiu chegar a Harvard, depois à Goldman Sachs, depois à fortuna e à política, parece ser mais elaborado do que parece à primeira vista. E, ao mesmo tempo, mais contraditório, porventura mais incoerente. Em How Donald Trump’s chief strategist thinks about capitalism and Christianity, Joseph Sunde recupera no Acton Institute Power Blog partes da transcrição, realizada pelo BuzzFeed, de uma longa entrevista por Skyperealizada no quadro de uma conferência no Vaticano em 2014. Reparem nesta passagem, por exemplo: “General Electric and these major corporations that are in bed with the federal government are not what we’d consider free-enterprise capitalists. We’re backers of entrepreneurial capitalists. They’re not. They’re what we call corporatist. They want to have more and more monopolistic power and they’re doing that kind of convergence with big government. And so the fight here — and that’s why the media’s been very late to this party — but the fight you’re seeing is between entrepreneur capitalism (…) and the people like the corporatists.” Desconcertante, no mínimo.
Ora, infelizmente, ouvir é aquilo para que muitos não parecem preparados. Mesmo quando deviam ser os mais preparados para isso, como devia suceder com os jornalistas ou candidatos a jornalistas. É por isso imensamente perturbador o episódio relatado nesta coluna da Spectator: Trigger warning: students vote to ban ‘offensive’ newspapers at journalism school: “Although journalism is a competitive field, students at City University — which boasts one of the country’s top journalism departments — have today taken action to narrow the field further. Students have voted for a campus ban on the Sun, Daily Mail and Daily Express. Why? The student union has deemed the views expressed by these popular papers unacceptable — claiming their editorial lines fuel ‘fascism, racial tension and hatred in society’.”
Mesmo achando eu detestáveis muitas das opções desses jornais, a verdade é que são os mais lidos no Reino Unidos e, sobretudo, os mais lidos pelas classes baixas. É por isso lamentável que estes estudantes mostrem um tal fanatismo em tudo contrário aos princípios quer da Universidade, quer da profissão de jornalista. Como notou um dos seus professores, “Students ought to realise that just because you disagree with a view, it doesn’t mean it should be banned. Journalism students in particular must understand that the best way to counter an argument is to debate it rather than use censorship to create an echo chamber.”
Termino por hoje com mais um texto ambicioso, uma entrevista no The Telegraph com um dos mais proeminentes cientistas políticos da actualidade, e que ajuda a arrumar ideias, mesmo sendo sombria no seu diagnóstico: It really is the end of the world as we know it… Ian Bremmer on the end of the Pax Americana, and what comes next (paiwall). O seu ponto de partida é que “The so-called ‘Pax Americana’ that delivered 70 years of peace and rising prosperity after the end of the Second World War has been fraying for over a decade as globalisation, the rise of China and the emergence of a revanchist Russia forces a re-ordering of global institutions. But 2016 has seen a dramatic acceleration in the unravelling of that old world order. The election of Donald Trump, the UK vote for Brexit and surging populist movements all over Europe has left fresh clouds of uncertainty hanging over the future of a Western-backed world.” Um dos seus pontos de chegada é o que encontramos nesta passagem do diálogo com o editor de assunto europeus daquele diário londrino:
What are the biggest centrifugal forces in world affairs at the moment, in your view?
1. Populism empowered by technology. A global phenomenon, but with particular traction in the US and Europe.
2. Erosion of the social safety net. Undermines the legitimacy of established institutions, particularly for centralized state governments.
3. The continued rise of China, along with its alternative economic rule set, principles and priorities.
4. The continued rise of Putin (and simultaneous decline of Russia), along with his alternative security rule set, principles and priorities.
As placas tectónicas estão a mover-se e, como nos terramotos, é difícil prever onde ocorrerá o próximo abalo e qual a sua dimensão. Cabeça aberta, muita atenção, sobretudo muita humildade para ouvir mesmo o que pensamos ser o indizível.
Por hoje despeço-me com votos de que tenham boas leituras (ou guardem-nas para uma melhor oportunidade) e um reconfortante descanso.
PS. Quarta-feira, diz 23, o Observador (com o apoio da Fidelidade) organiza uma conferência no Museu do Oriente em Lisboa, pelas 18h, sob o mote “Para que a vida não pare”, com moderação de Laurinda Alves. Vai-se falar de como enfrentar os imprevistos que estão sempre a cruzar-se na nossa vida. E da força que nos faz ficar. E continuar. Por isso não podia deixar de convidar todos os leitores desta newsletter, que podem inscrever-se aqui, apesar de a entrada ser livre.
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