Revista Catolicismo
Nesta magna festividade da Cristandade, desejando a todos nossos leitores e colaboradores um Santo e Feliz Natal, oferecemos-lhes uma matéria com admiráveis considerações sobre a autêntica “Paz na Terra” — que, segundo Santo Agostinho, é a “tranquilidade na ordem” — que tanto almejamos e, a fim de alcançá-la, a indispensável “Glória a Deus no mais alto dos Céus” — que não pode ficar relegada a um segundo plano.
A glória de Deus no alto dos Céus, aspecto secundário do Natal?
“Admirável profundidade de toda palavra inspirada! Tão simples que até uma criança o pode compreender, o cântico dos Anjos de Belém — Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade (Lc. 2, 14) — encerra entretanto verdades das mais profundas”.
Plinio Corrêa de Oliveira
Reprodução de Catolicismo, nº 156, Dezembro de 1963
Repousais, Senhor, em vosso misérrimo e augustíssimo presépio, sob os olhos da Virgem, vossa Mãe, que vertem sobre Vós os tesouros inauferíveis de seu respeito e de seu carinho. Jamais uma criatura adorou com tão profunda e respeitosa humildade o seu Deus. Nunca um coração materno amou mais ternamente seu filho. Reciprocamente, jamais Deus amou tanto uma mera criatura. E nunca filho amou tão plenamente, tão inteiramente, tão superabundantemente sua mãe.
Toda a realidade desse sublime diálogo de almas pode conter-se nestas palavras que indicam aqui todo um oceano de felicidade, e que em ocasião bem diversa haveríeis de dizer um dia do alto da Cruz: “Mãe, eis aí teu filho. Filho, eis aí tua Mãe” (cfr. Jo. 19, 26). E, considerando a perfeição deste recíproco amor, entre Vós e vossa Mãe, sentimos o cântico angélico que se levanta das profundezas de toda alma cristã: “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade” (Luc. 2, 14).
Fala-se mais de paz do que da glória de Deus
Adoração dos Reis Magos (detalhe) – Georges Lallemand, 1624. Hermitage, São Petersburgo
“Paz na Terra aos homens de boa vontade”: o jogo complicado, mas célere das associações de imagens me faz sentir imediatamente que em numerosas ocasiões no ano que finda ouvi falar de paz, e de homens de boa vontade. Curioso… dou-me conta de que ouvi falar menos, e até muito menos, da glória de Deus no mais alto dos Céus. A bem dizer, disto quase não ouvi falar. Nem mesmo implicitamente; pois implicitamente se fala da glória de Deus quando se afirmam os soberanos direitos d’Ele sobre toda a criação, e, por amor a Ele, se reivindica o cumprimento de sua Lei por parte dos indivíduos, famílias, grupos profissionais, classes sociais, regiões, nações, e toda a sociedade internacional.
Por que este silêncio? — Pergunto-me. Por que os homens querem tanto a paz? Por que tantos homens se ufanam de ter boa vontade? E por que tão poucos são os que se preocupam com a glória de Deus, e se blasonam de por ela agir e lutar?
A paz dos homens vale mais que a glória de Deus?
Em outros termos, o fato essencial do vosso Santo Natal, Senhor, seria só a paz na Terra para os homens de boa vontade? E a glória de Deus no mais alto dos Céus seria como que um aspecto colateral, longínquo, confuso e insípido para os homens, do grande evento de Belém?
Em outros termos ainda, a paz dos homens vale mais que a glória de Deus? A Terra vale mais que o Céu? O homem vale então mais do que Deus? E a paz na Terra pode ser obtida, conservada e até incrementada sem que com isto nada tenha a ver a glória de Deus?
Por fim, o que é um homem de boa vontade? É o que só quer a paz na Terra, indiferente à glória de Deus no Céu?
Todas estas questões convidam a uma detida análise do cântico angélico.
Meditar no Santo Natal de modo transcendente
Admirável profundidade de toda palavra inspirada! Tão simples que até uma criança o pode compreender, o cântico dos Anjos de Belém encerra entretanto verdades das mais profundas.
Como é proveitoso, pois, nutrir o espírito com essas palavras, para participar devidamente das festas do Santo Natal!
Ajudai-nos, Mãe Santíssima, Sede da Sabedoria, com vossas preces, para que, iluminados pelas claridades que de Jesus dimanam, possamos entender o cântico angélico que é o mais perfeito e autorizado comentário do Natal.
“Se só Deus é bom, a boa vontade autêntica é a que se volta toda para Deus, e ama o próximo, não pelo mero amor do próximo, mas pelo amor de Deus”
“Boa vontade” em relação a quem?
“Homem de boa vontade”: o que representa isto aos olhos de tantos e tantos de nossos contemporâneos?
Para o sabermos, basta indagar: boa vontade para com quem? A resposta salta impetuosa e impaciente, como sói acontecer quando a pergunta tem algo de ocioso por inquirir o que é quase evidente. Ora bolas, dirão muitos de nossos coetâneos, boa vontade para com o próximo. Aquele que, ateu ou sequaz de uma religião, seja ela qual for, adepto da propriedade privada, do socialismo ou do comunismo, quer que todos os homens vivam alegres, na fartura, sem doenças, sem lutas, sem riscos, aproveitando o mais possível esta vida, este é um homem de boa vontade.
Visto nesta perspectiva, o homem de boa vontade é um artífice da paz. Diz o ditado que “em casa onde falta o pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Logo, onde há pão todos têm razão e há paz. Onde há pão, teto, remédios, segurança, com maior razão há necessariamente a paz.
Paz terrena libertada de implicações religiosas?
E a glória de Deus? Para o “homem de boa vontade” assim concebido, é ela um elemento supérfluo no que se refere à paz na Terra. Pois é da adequada ordenação da economia que decorre a boa ordem na vida social e política, e portanto a paz.
“Supérfluo” é dizer pouco, a respeito da glória de Deus no Céu, considerada em função da paz na Terra. Como alguns homens creem em Deus, e outros não creem, e como entre os que creem há diversidade no modo de entender Deus, este último pode atuar como perigoso fautor de divisões, discussões e polêmicas. Deus é um senhor por demais comprometido há milhares de anos em polêmicas, para que dele se fale a toda hora. Para ter paz na Terra é melhor não estar falando a todo momento sobre Deus e sua glória no Céu.
E depois… o Céu é tão vago, tão longínquo, tão incerto! Que dele falassem os Anjos, vá lá, pois lá moram. Mas nós homens, cuidemos da Terra.
Unir a glória celeste à paz terrestre é para o “homem de boa vontade” algo de tão incorreto, supérfluo e pejado de fatores de luta como é, por exemplo, imprudente unir a Igreja ao Estado. A Igreja livre do Estado e o Estado livre da Igreja, eis um anelo bem típico do “homem de boa vontade”. A paz terrena libertada de implicações religiosas, e Deus no seu Céu e sua glória, sorrindo de braços cruzados para a Terra em paz, a uma tal distância da Terra que lá não chegue nem sequer o Lunik, eis o ideal do “homem de boa vontade”.
Sem que os homens deem glória a Deus, não há paz no mundo
Adoração dos Reis Magos (detalhe) – Wouter Pietersz Crabeth II. Museum het Catharina Gasthuis Gouda, Paises Baixos
Estas são as considerações do “homem de boa vontade” entre aspas, cujo coração está longe do Céu, e cujo olhar só se detém sobre a Terra.
Contudo, quanto divergem elas do sentido próprio e natural do cântico angélico!
Realmente, se o Natal dá glória a Deus no mais alto dos Céus e simultaneamente é a fonte da paz na Terra para os homens de boa vontade — foi o que os Anjos proclamaram em seu cântico — não se pode dissociar uma coisa da outra. Sem que os homens deem glória a Deus, não há paz no mundo. E a guerra, enquanto considerada no agressor culpado, é incompatível com a glória de Deus.
Vós, Senhor Jesus, Deus humanado, sois entre os homens o Príncipe da Paz. Sem Vós a paz é uma mentira e, afinal, tudo se converte em guerra.
E é porque os homens não compreendem isto, que procuram de todos os modos a paz, mas a paz não habita no meio deles.
A “boa vontade” inautêntica e agnóstica
O que é então o homem de boa vontade, se não é o homem que ama o próximo? Será porventura o que odeia seu próximo?
Ao fariseu, que Vos chamou de bom Mestre, perguntastes: por que Me chamais de bom, se só Deus é bom? (cfr. Luc. 18, 19 ).
Se só Deus é bom, a boa vontade autêntica é a que se volta toda para Deus, e ama o próximo, não pelo mero amor do próximo, mas pelo amor de Deus. O homem é tal, que não pode amar o próximo pelo próximo. Ou o ama por amor de si mesmo, e isto é egoísmo. Ou o ama por Deus, e isto sim é amor verdadeiro.
Em consequência, a “boa vontade” agnóstica e a paz terrena que ela tende a instaurar, nem são boa vontade autêntica, nem paz verdadeira.
E o falso “homem de boa vontade” é em última análise um semeador de guerras e um artífice de ruínas.
Paz é a mera abstração de controvérsias?
Mas, dirá alguém, como pode ser Jesus o fundamento da paz, se ninguém como Ele tem suscitado tanto ódio? O populacho, cumulado por Ele de favores espirituais e materiais de toda ordem, preferiu Barrabás, um bandido. Isto não é ódio? Os Imperadores contra Ele moveram perseguições atrozes. Os arianos contra Ele mobilizaram todas as potências da Terra. Depois vieram os maometanos. E depois, e depois, todos os grandes vagalhões da História, até o nazismo e o comunismo. Aliás, acrescentaria talvez alguém, Simeão bem exprimiu essa verdade, profetizando que Ele seria ao longo da História uma pedra de escândalo, um sinal de contradição para a morte e ressurreição de muitos (cfr. Luc. 2, 34). Ele próprio disse de Si que trazia à Terra o gládio (cfr. Mat. 10, 34). Por melhor que tudo isto seja — poderia argumentar um “homem de boa vontade” entre aspas —, a verdadeira paz, isto é, uma plena e completa desmobilização dos espíritos, uma inteira cessação não só de todas as guerras como de todas as polêmicas, não é possível com Jesus Cristo. A paz só é autêntica quando abstrai de todas as controvérsias, inclusive aquelas a que Jesus Cristo — sem culpa própria, concede o “homem de boa vontade” — dá ocasião.
A verdadeira paz não exclui a luta do bem contra o mal
Adoração dos pastores (detalhe) – Giorgione, séc. XVI. Samuel H. Kress Collection, National Gallery of Art, Washington
Sim, diria um homem de boa vontade autêntico, isto é, um homem que com todas as veras de sua alma ama a Deus.
Neste caso, é por burla que a Escritura chama Jesus Cristo Príncipe da Paz (cfr. Is. 9, 6), e a Igreja, fazendo eco ao Batista (cfr. Jo. 1, 29 e 36), O apresenta como um manso Cordeiro a quem os homens devem pedir o dom da paz: “Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, dona nobis pacem” (Eis o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo — Jo, 1, 29).
Ou é por que a verdadeira paz não exclui a luta do bem contra o mal, a polêmica entre a luz e as trevas, o perpétuo esmagar da cabeça da Serpente pela Virgem sem mancha, a hostilidade entre a raça oriunda da Virgem e a raça da Serpente? A paz é a ordem de Cristo no Reino de Cristo. Ela tem, pois, como condição a luta dos sequazes de Cristo contra os inimigos de Cristo. A paz de Cristo não se identifica de modo nenhum com a falsa paz, sem lutas nem polêmicas, do pretenso “homem de boa vontade”.
Três grandes lições, ó Deus-Menino, recolhemos do vosso Santo Natal. Ficamos sabendo que não há paz na Terra sem Vós. Que homem de boa vontade autêntico não é quem ama o homem pelo homem, mas quem o ama por amor de Vós. E que vossa Paz inclui a cessação de todas as lutas exceto a vossa incessante e gloriosa guerra contra o demônio e seus aliados, isto é, o mundo e a carne.
Virgem Maria, Medianeira de todas as graças, debruçada em adoração sobre o Deus-Menino, obtende-nos uma plena compenetração de todas estas verdades.
E permiti que nas perspectivas que elas desvendam, cantemos convosco e com todas as criaturas celestes e terrenas das quais sois Rainha:
“Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na Terra aos homens de boa vontade”.
Adoração dos Reis Magos – Giuseppe Chiari, séc. XVIII. Santa Maria del Suffragio, Roma