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Foto de arquivo mostra Kim Jong-un em março de 2013
| EPA/KCNA
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Pyongyang disse estar a estudar plano para atacar ilha americana de Guam, no Pacífico. Trump recordou ter o maior arsenal nuclear
Se Donald Trump decidir mesmo lançar "o fogo e a fúria" contra a Coreia do Norte, um conflito desse género iria provocar "dezenas de milhares de mortos na Coreia do Sul nos primeiros dias", garante Mark Hertling, general na reserva e analista da CNN. Tudo porque, se o poderio militar dos EUA é inquestionavelmente maior do que o dos norte-coreanos, um primeiro ataque deve centrar-se nas instalações nucleares de Kim Jong-un. Com os norte-americanos a precisar de vários dias para destruir a artilharia colocada na fronteira entre as Coreias e com Seul a 50 km de distância, é de esperar um grande número de baixas, segundo vários estudos.
Ora, apesar de muitos analistas concordarem que nem os EUA nem a Coreia do Norte têm mesmo a intenção de se lançar numa guerra, a verdade é que nas últimas horas o conflito atingiu um tom perigoso. Depois de Pyongyang prometer dar uma "lição implacável" aos EUA na sequência da aprovação de novas sanções na ONU, foi a vez de Trump ameaçar lançar "o fogo e a fúria" contra a Coreia do Norte em caso de ataque contra o seu país. Pelo meio, a Agência de Informações da Defesa (DIA) confirmou que os norte-coreanos conseguiram produzir ogivas nucleares com as dimensões adequadas para colocação em mísseis balísticos intercontinentais.
Ontem, foi a vez de Pyongyang anunciar que está a "examinar cuidadosamente" um plano para atacar Guam, um território americano no Pacífico, onde vivem pouco mais de 160 mil pessoas, mas que abriga uma base militar com um esquadrão de submarinos, uma base aérea e um grupo da guarda costeira. Popular entre os turistas japoneses e sul-coreanos, Guam está protegida pelo sistema de mísseis antimíssil THAAD, instalado na Coreia do Sul. Num discurso na televisão, o governador do território, Eddie Calvo, garantiu estarem prontos para "qualquer eventualidade". Mas procurou tranquilizar a população, afirmando que "neste momento não pesa qualquer ameaça contra nós".
Povoada há 4000 anos pelos chamorros, povo indígena que hoje representa 40% da população, Guam foi colonizada pelos espanhóis no séc. XVI. Estes cederam a ilha aos EUA em 1898 após a derrota na Guerra Hispano-Americana.
Na administração Trump, se o secretário da Defesa, James Mattis, deixou um ultimato à Coreia do Norte para "deixar de pensar em qualquer ação [militar] que leve ao fim do seu regime e à destruição do seu povo", o secretário de Estado, Rex Tillerson, procurou acalmar os ânimos. O responsável pela diplomacia dos EUA afirmou que "os americanos devem dormir bem à noite", sem se preocuparem com "a retórica dos últimos dias". Quanto às declarações de Trump, Tillerson explicou que "o que o presidente está a fazer é mandar uma mensagem forte à Coreia do Norte numa linguagem que Kim Jong-un entenda, porque ele não parece entender a linguagem diplomática".
Desde 2006, a Coreia do Norte realizou cinco ensaios nucleares, recusando pôr fim ao seu programa apesar de ser alvo de sanções internacionais. Desde fevereiro, o país, um dos mais isolados do mundo, já efetuou o lançamento de 17 mísseis em 12 ocasiões diferentes. E os analistas acreditam que terá capacidade para atingir território americano, podendo mesmo chegar a Nova Iorque, com a trajetória certa.
Os americanos têm bases aéreas e militares tanto na Coreia do Sul como no Japão, além de já terem enviado para o Pacífico três porta--aviões nos últimos meses. Mas uma guerra com a Coreia iria obrigar a retirar as famílias dos militares ali destacados e levar para a região o resto do material e do pessoal necessários. Sun Zhe, codiretor da China Initiative na Universidade de Columbia, acredita que, em caso de conflito, os EUA se limitarão a ataques aéreos. "Não vão fazer uma intervenção terrestre. Vão bombardear instalações militares, mas não me parece que atravessem o paralelo 38 [que divide as Coreias]."
Apesar dos esforços do seu chefe da diplomacia e dos apelos à contenção da comunidade internacional - inclusive da China, único aliado de Pyongyang -, Trump recorreu ontem ao Twitter para deixar outro aviso. "A minha primeira ordem como presidente foi para renovar e modernizar o nosso arsenal nuclear. Este é agora mais forte e poderoso do que alguma vez foi", escreveu na primeira parte de um tweet que rematou: "Esperemos nunca ter de usar este poder, mas nunca chegará o dia em que não seremos a nação mais forte do mundo."
O perigo do bluff presidencial
Com a popularidade em queda - 38% segundo a última sondagem da CNN -, Trump decidiu jogar a sua credibilidade ao ameaçar a Coreia do Norte. "Trump pode ficar encurralado porque está a prometer uma ação que pode não querer cumprir", explicou Timothy Naftali à estação de televisão. Para o historiador presidencial na Universidade de Nova Iorque, o presidente devia "ter cuidado quando faz ameaças porque, para bem da credibilidade dos EUA, pode ter de as cumprir. Por isso, o presidente têm tanto cuidado de não fazer bluff. Porque o outro lado pode desafiá-los".
Ao surgir diante dos jornalistas, de braços cruzados e maxilares rígidos, no seu clube de golfe em Nova Jérsia, onde passa uns dias de férias para os quais levou o trabalho, e prometer lançar "o fogo e a fúria" sobre a Coreia do Norte, Trump veio incendiar ainda mais a situação. Com esta ameaça direta, o presidente americano arrisca-se a dar um argumento a Pyongyang quando esta diz que os EUA estão mesmo dispostos a atacá-la.
Esta retórica bélica por parte de um inquilino da Casa Branca é quase inédita nos últimos anos. Ronald Reagan causou espanto ao chamar "império do mal" à União Soviética em 1983, mesmo assim num contexto que não era ameaçador, e George W. Bush garantiu "eles que venham!", referindo-se aos rebeldes durante a Guerra do Iraque, um comentário que o presidente que colocou a Coreia do Norte no "eixo do mal" disse mais tarde lamentar.
O único momento comparável será quando Harry Truman, depois de lançar a bomba atómica sobre Hiroxima no final da II Guerra Mundial, ameaçou o Japão que se não se rendesse imediatamente enfrentaria "uma chuva de ruína vinda do céu, como nunca se viu na Terra". Três dias depois, os EUA lançavam outra bomba atómica sobre Nagasaki - fez ontem 72 anos.
Fonte: DN