Escrevo este Macroscópio de longe. Estes dias de euforia nacional – e merecida euforia – apanharam-me em Washington, nos Estados Unidos, onde estou para realizar um conjunto de trabalhos para o Observador. Acompanhei de longe o triunfo da selecção numa cidade silenciosa e alheada dos destinos de Ronaldo, Pepe ou Éder, mas não deixei por isso de celebrar (como comprovarão mais adiante, lá para o fim desta newsletter).
Vindo para antecipar as convenções republicana e democrática que se realizarão nas duas últimas semanas deste mês, aterrei numa América dividida e confusa com o assassinato de cinco polícias brancos por um radical negro em Dallas. Hoje, terça-feira, o
Presidente Obama, que regressou mais cedo de uma viagem à Europa, assim como o anterior presidente George W. Bush, estarão na cidade texana para uma última homenagem a esses “homens de azul”, procurando serenar os ânimos num país onde as manifestações – muitas pacíficas, algumas violentas –
se multiplicaram durante o último fim-de-semana.
Os casos de violência policial que vitimaram dois negros no Minnesota e na Louisiana e desencadearam protestos como os de Dallas, em que um negro de 27 anos, antigo soldado no Afeganistão, matou cinco polícias e feriu mais seis, reabriram a discussão sobre as divisões raciais no país que elegeu, e depois reelegeu, um presidente negro. Assim como reabriram o debate sobre como melhor promover a “lei e a ordem”, um tema politicamente delicado quando estamos a entrar nos últimos meses da longa campanha presidencial. Neste Macroscópio deixar-vos-ei algumas pistas para estes dois debates.
Comecemos pelo tema da violência policial contra minorias étnicas, um assunto que se tornou especial candente depois dos
acontecimentos de Ferguson em Agosto de 2014 depois de um polícia branco ter morto
Michael Brown. Como estamos hoje, dois anos passados? Eis duas perspectivas:
- Em Race divides Dallas despite police progress o FT explica que “In the past six years, Mr Brown has transformed his department into an exemplar of progressive policing. (…) Reforms that have brought excessive force complaints down 64 per cent over a five-year period, sent the number of arrests plummeting and dropped the murder rate to historic lows. Under Mr Brown the department has become a leader in transparency and training, with officers taught to de-escalate situations in order to avoid tragedy.” Mas, como se relata na mesma peça, isso ainda não foi suficiente para fazer baixar as tensões raciais.
(A forma como o chefe da polícia de Dallas tem lidado com a crise é bem retratada pelo New York Times em Dallas Police Chief, David O. Brown, Is Calm at Center of Crisis: “I grew up here in Texas,” he said. “I’m third-generation Dallasite. It’s my normal to live in a society that had a long history of racial strife. We’re in a much better place than we were when I was a young man here, but we have much work to do, particularly in our profession. And leaders in my position need to put their careers on the line to make sure we do things right and not be so worried about keeping their job. That’s how I approach it.”)
- Mas será que a polícia tem mesmo um comportamento diferenciado quando se trata de lidar com minorias? E que mata muito mais negros do que brancos? Sim e não, pelo menos de acordo com um estudo recente citado pelo New York Times em Surprising New Evidence Shows Bias in Police Use of Force but Not in Shootings (o estudo pode ser consultado aqui). O trabalho foi realizado por um economista de Harvard: “Mr. Fryer, the youngest African-American to receive tenure at Harvard and the first to win a John Bates Clark medal, a prize given to the most promising American economist under 40, said anger after the deaths of Michael Brown, Freddie Gray and others drove him to study the issue. “You know, protesting is not my thing,” he said. “But data is my thing. So I decided that I was going to collect a bunch of data and try to understand what really is going on when it comes to racial differences in police use of force.”
O tema da violência e de quem a usa tem alimentado boa parte da controvérsia dos últimos dias – por causa da forma como actua a polícia (e do número de casos: ver
Fatal shootings by police are up in the first six months of 2016, Post analysis finds), mas também por causa da retóricas e dos métodos de movimentos como
Black Lives Matter, este último nascido depois dos acontecimentos de Ferguson. Por isso vale a pena debater o significado de uma fotografia que se arrisca a tornar icónica, a que
A Single Photo From Baton Rouge That's Hard to Forget fala-nos das circunstâncias em que Jonathan Bachman a captou: “
It happened quickly, but I could tell that she wasn’t going to move, and it seemed like she was making her stand. To me it seemed like: You’re going to have to come and get me. And I just thought it seemed like this was a good place to get in position and make an image, just because she was there in her dress and you have two police officers in full riot gear. It wasn’t very violent. She didn’t say anything. She didn’t resist, and the police didn’t drag her off.” Só que, depois, chegou a violência: “
The protest last night at Baton Rouge Police Headquarters organized by individuals from outside our Baton Rouge community resulted in 102 arrests. In addition to the arrests, 3 rifles, 3 shotguns and 2 pistols were confiscated. A Baton Rouge Police Officer had several of his teeth knocked out as a projectile was thrown from the protest.”Em Baton Rouge acabaria depois por ser detido um dirigente do movimento
Black Lives Matter o que, associado aos acontecimentos de Dallas, levou a que surgissem críticas à agenda daquela organização. Por exemplo:
The Violent Tone of Black Lives Matter Has Alienated Even Liberals Like Me, escreve em HeatStreet Asra Q. Nomani, jornalista que estava entre os manifestantes de Dallas (“liberals” é a forma como as pessoas de esquerda se definem nos Estados Unidos). E explica porquê: “
We must face the wounds of social injustice with a nonviolent spirit of reconciliation and healing. When I expressed these sentiments on Twitter, not long after bullets flew blocks from where we had stood, some supporters of Black Lives Matter attacked me, particularly co=religionists from my Muslim community, using shaming techniques, like calling me “coon,” “racist,” “mental midget,” propagandist for Islamaphobia and now anti-Black racism,” to attempt to silence me and bully me to “f–k off.”
A New Yorker, percebendo este tipo de reacções, interrogou-se sobre
After Dallas, the future of Black Lives Matter. Para isso foi falar com uma das fundadoras do movimento, Alicia Garza, que reagiu energicamente: “
people are more energized than ever because they see the ways in which Black Lives Matter, in this case in particular, was unfairly demonized and blamed for the murders of five officers and the injuring and wounding of six others. They see the ways in which that kind of rhetoric really serves a particular political agenda.” E acrescenta: “
It’s clear to me that this person who committed these acts was not well. And also was experiencing a level of emotional trauma, like the rest of this country, in particular like the rest of black people in this country, who watched two executions on television, so his stated motive was, “I’m really upset by what I’m seeing where police are killing black people.”
Mas se esta é a perspectiva (e as justificações) de quem está do lado do movimento, no outro lado do espectro político critica-se duramente a forma como, ao mais alto nível, se têm tratado estes casos. Em
The Road to Dallas, na revista conservadora The American Spectator, defende-se que a forma como o presidente Obama se tem sempre referido a estes casos desde o início do seu mandato contribuiu para a actual situação: “
At each instance since, Obama has continued to widen the racial divide between black Americans and police.” Para o articulista há uma tendência para culpar sempre os polícias e encontrar sempre uma justificação para a violência dos protestos ou mesmo dos extremistas: “
Yes, there is racism in this country. And there are bad cops. But to say what Obama says consistently — that cops are racist and pick on innocent people routinely — is false. It’s also a belief that is a cornerstone of liberal dogma. Liberal dogma requires that no matter what terrorist act or crime is committed the motivation of the perpetrator — if it is a black person, a Muslim, or any other protected minority — cannot be stated truthfully. That rule is obeyed even when it is obvious that the motivation is religion, race hatred, or politics. When Nidal Hasan massacred thirteen of his fellow soldiers at Fort Hood it was, in the words of Obama’s Army Chief of Staff, Gen. George Casey, “workplace violence,” not an Islamic terrorist act.”
Jason L. Riley, um autor afro-americano que escreveu livros como “
Please Stop Helping Us: How Liberals Make It Harder for Blacks to Succeed” (Encounter Books, 2014), tem uma perspectiva semelhante no Wall Street Journal em
Healing After Dallas, Without Obama, pois para ele “
When the president repeatedly assumes the worst about police, he sends a dangerous message.” E acrescenta: “
More than 95% of black shooting deaths don’t involve the police, which would seem to undercut the notion that trigger-happy cops are hunting black men. Sadly, rates of murder, rape, robbery, assault and other violent crimes are 7 to 10 times higher among blacks than among whites, but liberals who don’t want to alienate black voters go to great lengths to explain away this behavior and focus instead on police conduct.”
Neste quadro são muitos os pesadelos que tomem forma, algo que é abordado frontalmente no Washington Post, num texto que contrasta bastante com o anterior:
White America’s biggest nightmare: Black men who violently sow disillusionment. Depois de recordar outros antecedentes históricos e recuar até ao tempo do esclavagismo, Kevin B. Blackistone nota, dando a perspectiva de quem se sente uma minoria: “
They haven’t thought about what it is like to witness the deaths of black men so normalized by media — from 18th century lynching photographs, to the 1967 “Life” cover of a 12-year-old black boy in a pool of blood from a policeman’s bullet, to cellphone video of Castile and Sterling mortally wounded. It has become so common that everyone views it with all the empathy of witnessing a fender bender.”
No mesmo Washington Post defendia-se hoje que a América necessita de lideranças – e de palavras – capazes de ajudar a sarar as feridas e estabelecer pontes.
In our moment of division, who will lead?, interrogava-se Michael Gerson num texto onde recordava as palavras inspiradas de Robert Kennedy na sequência do assassinato de Martin Luther King em 1968: “
On April 5, 1968, Kennedy spoke in Cleveland, giving a brief speech, undeservedly neglected. “No wrongs have ever been righted by riots and civil disorders,” he said. “A sniper is only a coward, not a hero; and an uncontrolled, uncontrollable mob is only the voice of madness, not the voice of the people.” Só que, hoje, não parece haver quem possa fazer o mesmo, Nem Obama: “
President Obama, as he demonstrated in a fine speech on the 50th anniversary of Selma, can sometimes find the words. But he has become symbolic of the limits of symbolism. Many thought his election was a fundamental turning point on issues of race. But just 15 percent of Americans now believe his presidency has brought blacks and whites together. It is a failure not entirely his fault, but it contributes to an atmosphere of cynicism.”
O que nos leva (quase) até ao fim deste Macroscópio escrito do lado esquerdo do Atlântico, num quarto situado numa zona de Washington de maioria negra. E nos conduz aos efeitos que estes acontecimentos podem vir a ter na campanha eleitoral, tema abordado pelo Real Clear Politics em
Hot Week in July Changes U.S. Debate on Security. Onde se sublinha: “
When it comes to their New York-influenced reverence for law enforcement, Clinton and Trump are not far apart. But more broadly, among their many disagreements are whether America is in tatters or is strong, whether the most serious threats are external or within, whether society is more divided or united, and whether government at every level is working for or against the people. Nothing about this hot week in July helped elected leaders or voters settle those questions.”
A campanha, interrompida por causa destes acontecimentos, voltou entretanto à estrada. E eu ao trabalho, pelo que me despeço por hoje partilhando convosco uma imagem de como, no entardecer de Washington mas já bem depois da vitória da nossa selecção, eu fiz por comemorar.
Tenham bom descanso e boas leituras, o Macroscópio ainda deverá regressar ao vosso convívio a partir de Washington, onde o Observador está em reportagem com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.