O ambiente é de desconfiança em relação aos jornalistas, reconhece a presidente do Index on Censorship. Uma série de escândalos, com factos reportados erradamente, levaram a este cenário.
A cortina de ferro já vai longe, mas a censura encontrou novas formas de se manifestar, mesmo em países que temos por democráticos. Aliás, “nos últimos anos, países democráticos estão, cada vez mais, a adotar práticas autoritárias”. A visão é de Jodie Ginsberg, presidente do
Index on Censorship, o órgão que mede a liberdade dos meios de comunicação por todo o mundo.
A antiga jornalista da
Reuters passou por Portugal para participar no Web Summit e o ECO aproveitou o momento para conversar sobre censura, discurso de ódio, o estado do jornalismo e a liberdade de expressão no mundo
online. O panorama é marcado por
um ambiente de desconfiança em relação aos jornalistas, também por culpa dos próprios, e de hostilidade por parte de poderosos como Donald Trump. Mas Jodie Ginsberg está otimista. “Há um futuro para jornalismo de investigação forte e independente”, acredita.
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Jodie Ginsberg, presidente do Index on Censorship, fala numa cada vez maior repressão em países livres.Diarmuid Greene / Web Summit |
O Index on Censorship foi criado há 45 anos. O que mudou desde então no campo da liberdade de expressão?
Vimos uma grande liberalização nos últimos 45 anos, mas, ao mesmo tempo, nos tempos recentes, vimos uma certa perda de alguns dos progressos que foram alcançados, particularmente nos anos que se sucederam à queda do Muro de Berlim. Quando o Index on Censorship começou, foi porque os dissidentes soviéticos, por trás da sua própria cortina, queriam encontrar formas de fazer ouvir as suas vozes. Infelizmente, ainda hoje, em sítios como a Rússia e também na Hungria ou Polónia, dissidentes, escritores e meios de comunicação independentes lutam contra opressão muito grave. O que notámos nos últimos anos é que países democráticos estão, cada vez mais, a adotar práticas autoritárias. A Turquia também é um bom exemplo disso. Ainda que vejamos, sobretudo na Internet, muito mais gente capaz de falar — as pessoas têm “avenidas” para falar que nunca tiveram antes –, também estamos a ver cada vez mais repressão, em países livres, onde pensávamos que tínhamos alcançado a liberdade de expressão.
A censura de hoje é a mesma que existia nos anos 70?
Assume formas diferentes. Há países onde ainda são praticadas formas tradicionais de censura. Sítios como o Irão ou a China, onde há entidades responsáveis por olhar para filmes e cortar ou proibir alguns tipos de conteúdos, por exemplo. Mas a censura também mudou. Temos novas formas de comunicação, que não tínhamos na década de 70. Os governos e outras entidades estão a usar a Internet para controlar a liberdade de expressão, através da vigilância. Vemos também notícias de que se recorre à máfia para silenciar outros.
Como é que a censura se manifesta em países onde não esperamos que ainda exista?
Há um impulso crescente da censura nas democracias, bem como uma intolerância crescente para com opiniões diferentes das nossas. A grande maravilha da liberdade de expressão é que permite que toda a gente se exprima livremente, mas temos de estar abertos a viver com a visão de pessoas com quem discordamos e que consideramos ofensiva. Uma das coisas que se nota nos movimentos de populismo é que são altamente intolerantes em relação aos pontos de vista de outras pessoas e usam “máfias” para as calar. Estamos a ver estes movimentos em países onde achávamos que tínhamos liberdade de expressão, como o Reino Unido ou os Estados Unidos. Também há governos a fazerem esta pressão. Se pensarmos em alguém como Donald Trump, ele fala como um clássico autoritário. Donald Trump fala como um ditador quando diz que os meios de comunicação independentes dão fake news. Está a usar exatamente a mesma linguagem que um ditador usa.
Também atua como um?
As palavras, quando são usadas por pessoas em cargos de autoridade, têm um impacto adicional. Não está a atuar como um ditador no sentido tradicional, uma vez que não que não fechou jornais, que é uma coisa que acontece em sítios como o Azerbaijão ou a Eritreia, onde não há meios de comunicação independentes. Isso é um regime autoritário clássico. Ele não fechou o New York Times ou o Washington Post. Mas a sua narrativa contínua e repetida, que diz que “qualquer meio de comunicação de que eu não gosto é falso”, cria um ambiente em que as pessoas desconfiam dos jornalistas e, quando se começa a desconfiar de jornalistas, também se abrem “avenidas” para que estes sejam atacados, seja verbalmente ou fisicamente.
Há governantes à imagem de Trump na Europa?
Estamos a ver esse tipo de linguagem, sobretudo, em países como a Hungria e as Polónia, mas também já se vê essa linguagem no Reino Unido. Os políticos britânicos já usaram termos como “fake news” para descrever meios de comunicação com os quais não concordam. O país mais preocupante na nossa região é a Turquia, porque parece conseguir atacar os jornalistas com absoluta impunidade. Pense no número de jornalistas que estão presos, sem que ninguém faça qualquer tipo de pressão sobre a Turquia. Isso também é preocupante: que os outros países não sejam capazes de exercer esse tipo de pressão moral, que até estávamos habituados a ver há algumas décadas.
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Usar o discurso de ódio contra quem o profere é a forma mais eficaz de combatê-lo, argumenta Jodie Ginsberg.Diarmuid Greene / Web Summit |
Defende que não devemos banir qualquer tipo de discurso, incluindo discurso de ódio, que tem vindo a crescer com a ascensão de grupos extremistas e populistas. Já vimos isto acontecer antes, por exemplo, com o Holocausto. Não devíamos já ter aprendido a lição e impor algum tipo de limite?
A comparação com o Holocausto é muito interessante. Havia leis relativas ao discurso de ódio na Alemanha pré-nazi. Isso não parou os nazis. Banir o discurso de ódio não impede que as ideias se tornem em ações, infelizmente. Acredito que é muito melhor combatermos esses pontos de vista com abertura. Silenciar as pessoas e impedi-las de expressar essas visões não faz com que essas visões se vão embora. Aliás, muito frequentemente, só as torna mais populares. O facto de, na Europa, por exemplo, estarmos a tentar alargar leis contra o discurso de ódio não vai fazer com que a misoginia desapareça. Trata-se de mudar mentalidades e atitudes, o que exige um debate aberto. Não significa que não devam existir leis contra a discriminação, mas as leis de discurso são sempre a coisa mais fácil a que se recorre quando procuramos atacar um problema muito difícil e complexo. Não é assim que devem ser abordados esses problemas.
Banir as pessoas de falar, de se expressar, não impediu o neo-nazismo na Alemanha. Denunciar esses indivíduos e usar os seus discursos e ações contra eles são os mecanismos mais eficazes. Há uma excelente iniciativa na Alemanha, por exemplo, que angaria dinheiro de cada vez que há uma marcha neo-nazi, encorajando as pessoas a patrocinar a marcha; por cada quilómetro que a marcha avança, o dinheiro vai para organizações que combatem o neo-nazismo. É um combate brilhante ao discurso de ódio.
Em 2017, o Index on Censorship identificou 570 ameaças ao jornalismo por todo o mundo, desde censura a ameaças físicas. O público tem noção dos limites que se impõem a esta atividade e do quão difícil é fazer passar algum tipo de informação?
O público está mais consciente disto. Há cada vez mais incidentes deste tipo. O número de jornalistas que foram feridos em protestos, por exemplo, ou o facto de um correspondente sénior do Reino Unido ter de ter um guarda-costas. As pessoas estão mais conscientes. Mas, ao mesmo tempo, a confiança nos jornalistas está em mínimos históricos. Estamos a atuar num ambiente muito desafiante. Por um lado, os ataques aos jornalistas aumentam e, por outro, a confiança neles diminui. Essas duas coisas estão ligadas. As pessoas não sentem que os jornalistas devam ter proteção extra, não sentem que a profissão de jornalista deva ser respeitada e protegida.
Porque é que o público já não respeita os jornalistas?
Numa série de casos, houve escândalos a envolver jornalistas, que reportaram os factos inadequadamente, ou houve notícias que as pessoas consideram demasiado intrusivas, ou não baseadas em factos, ou os jornalistas ou os meios de comunicação não foram rápidos o suficiente a corrigir os erros de forma aberta. As pessoas não sentem, por causa desses diferentes escândalos, que os jornalistas tenham sempre agido de forma ética. Essa é parte do problema. Outra parte é uma perda geral de confiança em várias entidades, como políticos. Há muitas instituições que perderam autoridade nos anos recentes, e o jornalismo faz parte dessa tendência.
As empresas de media não têm de dinheiro e veem-se obrigadas a recorrer a grupos privados, o que compromete a independência e a liberdade. Como se dá a volta a isso?
A pluralidade dos media é um grande desafio. Uma das razões pelas quais as pessoas desconfiam dos meios de comunicação é que veem-nos como sendo controlados por grandes barões com agendas políticas específicas. Mas até estou bastante confiante. Uma área em que estão a fazer-se desenvolvimentos muito interessantes é que
há cada vez mais investimento em jornalismo de investigação. Tivemos os
Paradise Papers e os
Panama Papers. Há excelente jornalismo de investigação a acontecer e a receber investimento. Tenho esperança de que isso, combinado com o aparecimento de organizações de verificação de factos, signifique que há um futuro para jornalismo de investigação forte e independente.
O jornalismo influenciou acontecimentos como a eleição de Trump ou o Brexit? Se a cobertura tivesse sido diferente, os resultados teriam sido outros?
É muito fácil, e até preguiçoso, culpar os meios de comunicação por estes resultados. Os Estados Unidos têm um cenário de media muito pluralista. As pessoas tinham acesso a diferentes pontos de vista. O facto de não os procurarem não é muito diferente do que acontecia há 30 anos. Se olharmos para trás, as pessoas liam apenas um jornal, com um ponto de vista. Agora retiram os pontos de vista do Facebook, não é muito diferente. Mas acredito que os meios de comunicação nem sempre são corajosos o suficiente para desafiar a falta de verdade. Há, frequentemente, um esforço pelo equilíbrio. Temos de ser equilibrados, de dar o mesmo peso a todas as opiniões. Se uma for factualmente incorreta, não fazemos nada em relação a isso. Como jornalistas, essa é uma das nossas responsabilidades, ser corajosos e desafiar as pessoas que estão a dizer mentiras, e nem sempre fizemos isso. Mas isso está a mudar.
Falou, nesta edição do Web Summit, sobre a relação entre a liberdade e a segurança na Internet. Como maximizamos uma sem comprometer a outra?
Estou cada vez mais preocupada com a nossa capacidade de nos expressarmos livremente na Internet. Os governos perceberam que não podem controlar as narrativas online e gostariam de conseguir fazê-lo. Por isso, estão a pressionar as empresas ligadas à Internet para fazerem o trabalho de governos, policiando o que fazemos online. Há riscos para a nossa liberdade de expressão, particularmente em países onde os governos não são particularmente tolerantes. Também temos de saber muito mais sobre o que as empresas estão a fazer com a nossa informação, e ser muito mais conscientes sobre o que estamos a partilhar e como é que isso pode ser usado. Há responsabilidade da nossa parte em estar mais conscientes disso, uma responsabilidade das empresas e uma responsabilidade dos governos em não delegar toda a segurança nacional em empresas privadas não eleitas.
Fonte: ECO
https://eco.pt/entrevista/e-muito-facil-culpar-o-jornalismo-por-eventos-como-o-brexit-ou-a-eleicao-de-trump/