Plinio Corrêa de Oliveira
Dom Duarte Leopoldo e Silva que apoiou o apostolado de Plinio Corrêa de Oliveira (à esq. do Arcebispo). Os demais, na foto, são colaboradores do jornal “Legionário”.
Neste mês celebra-se o sesquicentenário do nascimento de Dom Duarte Leopoldo e Silva,¹ em cuja memória seguem alguns trechos de um antológico artigo de Plinio Corrêa de Oliveira, publicado no jornal “Legionário” em 8 de novembro de 1942.²
Edifica a toda a população da Arquidiocese de São Paulo a piedade filial com que o Ex.mo e Rev.mo Sr. D. José Gaspar de Afonseca e Silva, Arcebispo Metropolitano, faz comemorar oficialmente, todos os anos, a data do falecimento do grande e saudoso Dom Duarte. As celebrações efetuadas habitualmente no dia 13 de Novembro excedem de muito as exigências do protocolo e as conveniências do decoro eclesiástico e significam muito mais do que uma praxe a que se obedece ou um dever que se cumpre apenas no limite estrito de sua obrigatoriedade.
O Sr. Arcebispo Metropolitano sufragando a alma de Dom Duarte de forma tão solene e incitando todo o povo, tão vivamente, a que o siga neste piedoso gesto, além de prestar à santa alma de seu antecessor o único serviço que hoje lhe possamos fazer, denuncia o propósito de conservar vivaz, em nossa recordação, a figura majestosa e veneranda daquele Prelado que governou por trinta anos o rebanho paulopolitano. É um preito de admiração e gratidão pessoal, que se liga ao desejo de conservar para a edificação dos fiéis a memória de um Arcebispo sob todos os títulos verdadeiramente excepcional.
Tracemos algumas linhas sobre o grande Dom Duarte. Não custa fazê-lo: basta abrir o coração e deixar falar as saudades…
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Contou-me nosso atual Arcebispo certa vez que, conversando com um visitador da Santa Sé no Brasil, este lhe dissera que Dom Duarte era uma figura capaz de ocupar com garbo os mais conspícuos sólios da Terra, pois que era um dos maiores bispos que a Santa Igreja possuiu em nossos dias. Era essa a opinião abalizada de um observador imparcial, que o Santo Padre honrava com sua confiança pessoal, e que viajara por vários países da Terra, no exercício de suas árduas funções. E, nessa apreciação, não havia exagero.
Quem de nós não se lembra daquela figura esguia e solene, sempre aprumada, de gestos sempre fidalgos, de acolhida sempre nobre e majestosa, que em toda a sua pessoa deixava transparecer ao mesmo tempo uma extraordinária consciência da dignidade de seu cargo, uma resolução inabalável de cumprir os espinhosos deveres jusque ad effusionem sanguinis, uma firmeza indomável, e uma piedade sólida e comovedora?
Quem de nós, aproximando-se de Dom Duarte, não sentiu aquele misto de respeito e de confiança seguríssima que sua pessoa inspirava, e que nos levava a agir, a falar e até a sentir em sua presença como se estivéssemos em uma igreja? Quem de nós não lhe sentiu a fortaleza paternal? A majestade de Dom Duarte era como a do sol ao meio dia: completa, indiscutível, invencível, esplêndida. Ao calor de seus raios, sentia-se a convicção de que os adversários da Santa Igreja estavam inevitavelmente circunscritos em sua ação maléfica e que por isto mesmo seriam inúteis todas as suas investidas.[...]
Os que costumam freqüentar a Cúria Metropolitana conhecem o decoro que reina invariavelmente, como é natural, naquela repartição eclesiástica. O Bispo de Jacarezinho, D. Ernesto de Paula, contou-me que, apesar disto, a simples presença de Dom Duarte tinha uma tal ação que lhe bastava entrar na Cúria para ver desde logo se Dom Duarte estava ou não, em seu gabinete de trabalho do primeiro andar. Presente o Arcebispo, um ambiente indefinido se alargava por todo o vasto prédio, onde tudo parecia dizer “o Arcebispo aí está”.
A pessoa de Dom Duarte tinha um particular que é a nota típica da figura autenticamente grande. Admirado por gregos e troianos, sabia conservar também a admiração de seus íntimos. Simplesmente ao ver-se uma pessoa falar sobre Dom Duarte, sabe-se se ela teve ou não a inestimável graça de viver em sua intimidade, tal é a unção com que falam dele os que mais de perto o conheceram. Seus íntimos foram os que mais o admiraram. Diz-se que ninguém é grande homem para seu secretário particular. Quem quiser ver desmentir esta regra poderá conversar alguns minutos sobre Dom Duarte com algum de seus antigos secretários, o Bispo Auxiliar de Ribeirão Preto, Dom Manuel D’Elboux, ou o mordomo do Palácio São Luiz, Cônego Silvio de Moraes Mattos, por exemplo. Verá, certamente os ex-secretários mais admirativos, mais piedosa, comovida e filialmente admirativos que alguém possa ver.
Não posso dizer que tenha tido a fortuna de entrar propriamente na intimidade de Dom Duarte. Seus íntimos eram, além de alguns membros de sua família, apenas aqueles que o dever de ofício introduzia em seu convívio particular. Mas tive inúmeras ocasiões de tratar com ele questões reservadíssimas, em que um homem se mostra todo inteiro. Conheci-o muitíssimo de perto. E pude verificar que, em se tratando de Dom Duarte, a palavra intimidade tinha um sentido especial. Os íntimos não eram aqueles junto aos quais ele se permitisse de abrandar um tanto as regras do decoro e da conveniência, a que tão meticulosa e mortificadamente se sujeitava. Os íntimos não eram aqueles em cuja presença se permitisse uma retenue menos estrita do que em público. Íntimos eram aqueles que, observando-o mesmo em seus momentos mais comuns, podiam ver que aquele homem de Deus era verdadeiramente e plenamente tudo quanto parecia ser, conservando-se idêntico a si mesmo, sempre majestoso, sempre grande, sempre piedoso, até nos menores e mais insignificantes atos de sua vida.
Um exemplo falará pelo resto. Contam seus íntimos que Dom Duarte jamais deixava o uso correto e pleno do traje eclesiástico, ainda mesmo na intimidade. Nunca aparecia, por exemplo, sem colarinho, ou de batina desabotoada nem mesmo nos primeiros botões da parte alta. Ele era sempre ele. E, no dia tristíssimo para nós em que Deus o chamou à glória do Céu, quando o piedoso Arcebispo, deitado a altas horas da noite começou a sentir a crise cardíaca que o matou, tocou a campainha chamando seu dedicadíssimo secretário, Cônego Silvio de Moraes Mattos. Pode-se imaginar com que celeridade este acudiu. Porém, quando entrou no quarto, encontrou Dom Duarte sentado e já de batina, se bem que arfando de dor e falta de ar. Arranjara meios de se vestir em alguns minutos, se bem que às voltas com uma crise cardíaca mortal… era assim a intimidade desse santo homem…
Inauguração das máquinas do “Legionário”, estando presente o Arcebispo de São Paulo, D. Duarte Leopoldo e Silva. À direita do Arcebispo, Da. Lucilia Ribeiro Corrêa de Oliveira e Plinio Corrêa de Oliveira. À sua esquerda, o Bispo de Sorocaba, D. José Carlos de Aguirre, o Bispo-auxiliar de São Paulo, D. José Gaspar de Affonseca e Silva, e Da. Olga de Paiva Meira, Presidente da Liga das Senhoras Católicas.
Uma nota curiosa de sua personalidade era a vivacidade de sua inteligência. Contam-se dele inúmeros ditos espirituosos, mas dum espírito vivo, penetrante, ágil, nobre, que nada tem de comum com a chocarrice plebéia em voga nos círculos profanos, em nossos dias. E apreciava tanto o verdadeiro espírito que o tolerava de boa mente, mesmo quando feito um pouco… a suas próprias expensas. Conta-se, por exemplo, que ele conversava certa vez com um inteligente e piedoso sacerdote, hoje prelado doméstico do Santo Padre e uma das primeiras figuras da Igreja no Brasil, que além do mais era seu velho e estimado amigo. A certa altura, Dom Duarte, que era fumante, lhe ofereceu um cigarro. O interlocutor recusou. Um tanto ironicamente, com aquela ironia incomparável e deliciosa que era só dele, Dom Duarte lhe perguntou: “o Sr. não tem este vício?” Disse-lhe o interlocutor: “Se fosse vício, V. Ex.a não o teria”. Ao que Dom Duarte agudamente respondeu: “Mas se fosse virtude, o Sr. certamente teria”. Creio que este pequeno episódio, pelo que tem de típico, é uma das boas recordações da vida tão cheia de méritos do ilustre prelado que conversava com Dom Duarte.
Muito sensível às manifestações de amizade, gostava que fossem sóbrias. Estimava vê-las traduzidas em atos, muito mais que em palavras. Como ele próprio muito mais traduzia em atos do que em palavras seu próprio afeto. Julgaram-no, por isto, duro. É um erro. O coração de Dom Duarte não era vazio de afeto. Pelo contrário, era ele de uma rara capacidade de se afeiçoar às pessoas. Mas seu coração era como aqueles santuários da Igreja primitiva, no qual não havia acesso senão dificilmente. Na sua afetividade, havia catecúmenos e neófitos que só tinham direito à plenitude da amizade e da confiança depois de uma longa observação, de uma aguda experiência, de uma atenção meticulosa. O coração de Dom Duarte era como um santuário onde não pode entrar qualquer um, mas só quem é digno de tal. Era um coração governado pela Fé e pela razão, e por isto mesmo posto em constante atalaia contra as traições da sensibilidade humana, sempre disposta a se contentar com aparências, sempre inclinada a se iludir com palavras e a tomar os elogios como provas de amizade sincera. E, por isto mesmo, era realmente pequeno o número dos que foram bastante felizes para lograr ali acesso no rol dos que ele efetivamente apreciava. Mas, em compensação, poucas honras um homem pode ter tido tão autênticas em sua vida do que podendo dizer: tive o afeto e a confiança de Dom Duarte.
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Escrevi este artigo como uma célebre escritora francesa que escrevia suas cartas en faisant trotter la plume. E escrevi demais. Demais e de menos. Demais, porque todos nos lembramos de Dom Duarte e as saudades que dele sentimos continuam a nos acompanhar durante a vida inteira. De menos, porque nunca se escreverá bastante sobre ele.
Aqui ficam, como homenagem saudosíssima à sua imperecível memória, estas linhas que, se não têm o mérito do talento nem sequer o da ordem na exposição da matéria, exprimem ao menos uma admiração profunda, um afeto filial, uma gratidão profunda de quem, incapaz de se alçar à altura dele, procurou ao menos, na modéstia de suas forças, edificar-se e instruir-se na incomparável escola de sua heróica fortaleza apostólica.
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1. Dom Duarte Leopoldo e Silva nasceu em Taubaté (SP) em 4 de abril de 1867. Fez seus estudos de humanidades na capital paulista, matriculando-se aos 18 anos na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Não prosseguiu o seu curso médico, voltando para São Paulo, onde ingressou no Seminário Episcopal. Em junho de 1893, foi nomeado coadjutor na cidade de Jaú (SP); em 1894, vigário da nova paróquia de Santa Cecília, em São Paulo. Em 9 de novembro de 1903 foi eleito bispo de Curitiba, sagrado em Roma no dia 22 de maio de 1904. Em 18 de dezembro de 1906, em virtude de decreto de São Pio X, foi transferido para São Paulo e eleito Arcebispo metropolitano, cargo que exerceu de 1907 até seu falecimento em 1939.