terça-feira, 20 de junho de 2017

ANGOLA | A “libertação nacional” frequenta Wall Street


Petróleo, principal riqueza nacional. No período de 1985 a 2010, a fuga de capital total de Angola é estimada em US$ 84 bilhões, aproximadamente 12% do PIB registrado no período.

As elites angolanas são corruptas. Mas é nas democracias ocidentais, sob a supervisão dos operadores do cassino financeiro global, que se mantêm e crescem as oportunidades para o roubo

David Sogge | Outras Palavras | Tradução: Isabella Alves Lamas

Angola é um país da África Subsaariana que vive uma situação paradoxal devido ao descompasso existente entre seu grande potencial econômico, proveniente principalmente da alta concentração de recursos minerais, e a miséria humana de ser um dos países mais desiguais do mundo. A sua história recente é marcada pela luta de libertação nacional, que teve fim em 1975 quando o país conquistou a independência de Portugal, seguida por muitos anos de uma sangrenta guerra civil. Ela opôs o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), guerrilha que se converteu em partido e está no governo desde então, e a Unita, outro movimento guerrilheiro, de tendência pró-ocidental e agora principal partido de oposição. Durante o período de guerra civil, a exploração de diamantes foi usada como mecanismo de financiamento dos esforços de guerra da UNITA, enquanto a exploração de petróleo offshore foi usada para financiar o lado do governo. O período pós-colonial, longe de romper com esse lógica de apropriação, apresenta importantes elementos de continuidade do saque dos recursos naturais angolanos, que agora se expressa através de uma “nova” roupagem. Neste artigo, o investigador David Sogge estabelece com muita clareza a ligação existente entre o enriquecimento das elites angolanas, o dinheiro proveniente principalmente do petróleo e a conivência de um sistema de privilégios das elites ocidentais. Uma peça fundamental para entender os paradoxos tanto da Angola contemporânea quanto do modus operandi da economia política internacional. (Isabella Alves Lamas, tradutora)
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“A ocasião faz o ladrão” é um velho ditado. Mas no caso de Angola, enredada no capitalismo globalizado, são os fabricantes das oportunidades offshore que saem impunes com a maior parte do saque.

A situação: Enriquecidos pelas receitas de exportação e sob o patrocínio e proteção de um grande homem há muito no poder, membros da camada de elite angolana asseguram para si privilégios através de autonegociações. Eles se apropriam da terra e de imóveis dentro e fora da lei e organizam monopólios comerciais para si mesmos e seus amigos íntimos. O Estado subsidia seus estilos de vida, fornecendo a eles prioridade no acesso à assistência médica, escolaridade e outros serviços. Eles saqueiam as riquezas do país e as canalizam para o exterior e não hesitam em usar a repressão explicita e oculta para manter o status quo.

Angola hoje? Sim, mas isso também descreve a Angola de ontem, particularmente a dos anos 1950 e 1960, as últimas décadas do período colonial. É claro que a situação em 2017 é diferente sob diversos aspectos. Por exemplo, a economia angolana colonial era muito mais diversa, uma vez que o país produzia grande parte da sua própria comida e até muitos bens de consumo. Se a compararmos com outras economias subsaarianas do período, esta tinha um enorme contingente de proletários assalariados e um grande número de agricultores africanos que usavam métodos avançados. No período de uma Angola pós-colonial, essas categoriais sociais em grande parte colapsaram, enquanto novos fenômenos – urbanização maciça, alfabetização generalizada, sistemas de comunicação – surgiram. Não obstante, instituições, práticas e atitudes que correspondem às da era colonial permanecem vivas na atual Angola, já há 42 anos uma nação soberana.

O ponto é que a má governança e a corrupção não são novidades. No entanto, como em muitos outros países, elas têm assolado Angola há gerações. Se não são nem novos e nem únicos, esses problemas requerem uma perspectiva ampla e de fora para dentro – sem perder de vista a atuação dos próprios angolanos, onshore, em busca de uma gratificação mútua com os atores, offshore.

A Vila de Potemkin

Externamente, Angola atende a muitos critérios normalizados de boa governança. A sua Constituição confere “direitos e liberdades fundamentais” a todos os cidadãos e estabelece ainda duas supremas cortes. Há um tribunal de contas e outros organismos de controle e equilíbrio (check-and-balance) como um ombudsman nacional. O governo autoriza, na verdade subsidia, uma série de partidos políticos de oposição cujo lugar no parlamento foi conquistado através de processos eleitorais competitivos, apesar de tendenciosos. Assim, Angola parece se qualificar em termos formais como uma democracia constitucional moderna. Porém, na realidade muitas dessas instituições são simulacros[1], palcos nos quais os rituais são executados “para inglês ver”, como diz o ditado da era colonial. É claro que nem tudo é confuso assim – por exemplo, camponeses venceram em tribunal contra poderosos fazendeiros – mas, a maior parte dos processos serve para firmar e legitimar um sistema oculto que beneficia os poderosos tanto dentro como, especialmente, fora do país.

Histórias de práticas desonestas e extrativistas executadas por figuras importantes, suas famílias e empresas privadas são reportadas regularmente em narrativas jornalísticas e acadêmicas sobre a Angola pós-colonial. Sendo tão abundantes, elas deixam de ser chocantes. No entanto, muitos têm trabalhado duro e assumido grandes riscos para trazer à luz estas histórias e buscar justiça. Figuras políticas da Angola independente como Filomeno Vieira Lopes, jornalistas intrépidos como Raphael Marques, acadêmicos experientes como Ricardo Soares de Oliveira, além de ativistas em casa ou na diáspora angolana contribuíram para a consciência pública. A consciência da desonestidade se acumula, apesar de um esforço vigoroso. Pense: leis criminalizando a divulgação de informações, processos judiciais, ameaças de acusação – para manter as evidências fora do alcance do olhar público. Membros da liderança e seus associados no exterior também as abafam sob o manto de uma produção de imagens embelezadas que envolvem empresas de relações públicas muito bem pagas e as principais empresas de mídia internacional. A repressão e a gestão da imagem podem influenciar alguns, mas é pouco provável que convençam muitos dos regularmente expostos a avaliações comparativas de desempenho político. Todos os anos, a Bertelsmann Foundation, o Electoral Integrity Project  e a Transparency International classificam Angola em termos de uma governança eficaz e efetiva. Exercícios vistos como menos eurocêntricos como os da Mo Ibrahim Index of African Governance usam métodos semelhantes. Em tais medidas, Angola nunca é o país mais delinquente do mundo, mas suas pontuações são rotineiramente ruins.

Avaliações

A maior parte dos fabricantes de indicadores e outros observadores focam no nível territorial, principalmente em Luanda. Eles veem corrupção, falta de transparência e autocracia e, normalmente, ainda contrastam o estilo de vida opulento das elites angolanas onshore com a miséria e a indiferença que são impostas aos pobres. O fracasso em proporcionar uma ampla base de prosperidade não é característica única de Angola, mas se sobressai em contraste com países como Etiópia e Ruanda onde, apesar de serem escassos em recursos naturais, governos autocráticos ofereceram benefícios para um número crescente de cidadãos.

No cenário mundial, o desempenho de Angola é exposto ao deboche. Porém não por todos. De fato, Angola não está mal classificada nas tabelas de desempenho elaboradas para os defensores dos “livres mercados” e investidores transnacionais. Ela pontua bem em termos de “Liberdade Comercial”, um conceito promovido por meio do Índice de Liberdade Econômica da Heritage Foundation Index of Economic Freedom  e do Wall Street Journal. Nestes termos amigáveis às corporações, o desempenho de Angola melhorou desde 2005 e, a partir de 2017, está acima da média para a África Subsaariana. As suas políticas fiscais obtêm uma classificação melhor (isto é, mais favorável a pessoas e empresas de alta renda) que a maior parte dos outros países da África Subsaariana, enquanto o seu histórico de não ingerência do governo no setor financeiro e o respeito do governo pelos direitos de propriedade têm uma pontuação próxima à média subsaariana.

Em meio a essas opiniões que são tanto positivas quanto negativas, as elites ocidentais inclinam-se às positivas. Elas minimizam as críticas e enfatizam o progresso angolano em direção à práticas democráticas, ao respeito pelos direitos humanos e à transparência. Algumas pessoas que ocupam posições chaves são persuadidas. Uma pesquisa do Banco Mundial de 2012 com as partes interessadas nacionais e estrangeiras indicaram que 40% dos informantes de agências bilaterais e multilaterais observavam que Angola estava sendo “conduzida na direção certa”; 20% deles achavam que o país estava indo na “direção errada” e 40% declararam não saber. Os endossos implícitos ao regime angolano são por vezes misturados a observações críticas ou condescendentes em relação a ONGs e críticos dos meios de comunicação do regime. Os diplomatas ocidentais têm ouvido dizer que as percepções de fora sobre a corrupção não correspondem à realidade angolana. A equipe das instituições de Bretton Woods julgou como irrelevante a ideia de que a transparência dos recursos do petróleo poderia ser aprimorada caso Angola aderisse à Extractive Industry Transparency Initiative.

Lágrimas de crocodilo

Em resumo, a elite política e comercial pode publicamente demonstrar preocupação sobre a corrupção angolana e o fracasso em proporcionar uma base ampla de prosperidade, mas eles geralmente deixam por isso mesmo . Um reflexo padrão é a atenuação de lacunas ou abrigá-las sob um “manto de amor”. Figuras proeminentes da academia ocidental, homens de negócios e banqueiros fizeram acordos mutuamente benéficos com Luanda. São ouvidos cânticos de louvor toda vez que visitantes ocidentais de alto nível chegam em Luanda como, por exemplo, a então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, em 2009, e a chanceler Merkel, em 2011, quando ocorrem encontros sobre assuntos militares (rotineiramente ofuscados por transações corruptas de armamentos, aeronaves e embarcações) e quando são organizados encontros especiais para líderes angolanos em Washington, Berlim, Davos e outros lugares onde as elites comerciais e políticas se reúnem.

O tom otimista é em grande parte uma função do interesse existente em como as elites angolanas “reciclam” os seus petrodólares. Fornecedores estrangeiros de bens e serviços trabalharam duro para explorar esta abundância de dinheiro proveniente de vendas presentes e futuras de petróleo e gás. Eles podem concordar que a economia angolana deve algum dia ser diversificada, mas preferem que esta continue desempenhando o seu papel habitual de exportadora de hidrocarbonetos e superávits financeiros e importadora de bens de consumo (incluindo comida) e bens de investimento. Para serviços, as autoridades, nas palavras de Ricardo Soares de Oliveira, “ostentam todos os consultores e empreiteiros que o dinheiro do petróleo pode comprar”, o que resulta em uma “cultura de consultoria” – um negócio altamente lucrativo que é mantido pelo subinvestimento no povo angolano. Para uma participação no mercado angolano anual de 15-20 bilhões de euros [entre 55 e 74 bilhões de reais], os fornecedores usam meios justos e sujos para influenciar aqueles que tomam as decisões sobre o que importar e de quem. Adicionalmente, os provedores de créditos e empréstimos reivindicam futuros petrodólares através de dívidas.

O corte dos 10%

São escassas as informações confiáveis sobre os fluxos de saída de Angola. Isso não é uma surpresa, uma vez que a maior parte das verbas, lícitas ou ilícitas, flui para jurisdições offshore: Ilhas Cayman, Antilhas Holandesas, Londres, Suíça – cujo principal argumento de venda é o segredo. Entretanto, por meio de formas de medição indireta, é claro que Angola sangra regularmente dinheiro proveniente da renda do petróleo. As rendas são benefícios financeiros acima dos lucros normais que seriam alcançados em um mercado “livre” ou perfeitamente competitivo. Em países do Atlântico Norte, uma legião de advogados, contadores e, é claro, oficiais públicos trabalharam por décadas na elaboração de leis nacionais e internacionais, sistemas legais e subsídios públicos favoráveis e que criassem oportunidades e incentivos poderosos para canalizar as rendas em mãos privadas – e, portanto, para longe de fins publicamente benéficos.

Pesquisas sobre fluxos que estão a entrar em jurisdições secretas offshore mostram que aproximadamente 8% das rendas habituais de petróleo, e algo como 15% das rendas de petróleo decorrentes de lucros inesperados e não planejados (crescimento repentino do preço do petróleo), distancia-se normalmente da média dos países exportadores de petróleo. Por isso, é plausível dizer que aproximadamente 10% da riqueza de petróleo angolana é rotineiramente saqueada e perdida para o país.

No período de 1985 a 2010, a fuga de capital total de Angola é estimada em US$ 84 bilhões, o que equivale a aproximadamente 12% do PIB médio registrado no período. Apenas a Nigéria, cuja fuga de capital foi de aproximadamente 313 bilhões de dólares [mais de um trilhão de reais], perdeu mais em termos absolutos embora, por representar 5% do PIB, sua perda tenha sido relativamente inferior à de Angola. Um economista sênior levantou a hipótese de que se Angola não tivesse registrado fuga de capital nesse período os rendimentos registrados teriam crescido a uma taxa de 8,3%, mas ao invés disso estes cresceram a uma taxa de 4,6%. Os custos para os angolanos – a perda de perspectiva para vidas mais plenas, saudáveis e produtivas – são praticamente incalculáveis mas, sem dúvida nenhuma, colossais.

Para onde vai o dinheiro?

As destinações das rendas evasivas do petróleo são segredos muito bem guardados. As classes políticas no exterior, particularmente nas democracias do Atlântico Norte, têm promovido controles frouxos sobre o movimento de capitais durante décadas, além de terem criado meios legais para ocultar sua propriedade. Isso é o que constitui a arquitetura de oportunidade para as elites angolanas. E quem foram esses arquitetos? Entre eles, estão lideres políticos da Europa de hoje. Frans Timmermans, o vice-presidente da Comissão Europeia, enquanto Ministro das Relações Exteriores da Holanda defendia vigorosamente a oferta de serviços financeiros holandeses para empresários (como os oligarcas ucranianos) em busca de esconder o seu saque offshore. O atual presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, enquanto alto politico em Luxemburgo remodelou a economia política desse país e o transformou em um dos principais paraísos fiscais e jurisdições secretas do mundo. Outros altos dirigentes europeus, particularmente do setor financeiro, também fizeram a sua parte – algumas vezes em colaboração direta com as elites angolanas.

Apesar de segredos protegidos aos mais altos níveis, as informações vazam. Por exemplo, quando Isabel dos Santos, que dizem ser a empresária mais rica da África, adquire negócios em Portugal ou em outros lugares, ela rotineiramente faz uso dos intermediários financeiros holandeses, empresas conhecidas como “caixa-postal”, que são encorajados e protegidos sob a lei holandesa. Baseado em muitos anos de pesquisa sobre Angola, o repórter investigativo britânico Nicholas Shaxson escreve: “Muitos bilhões desapareceram offshore através de empréstimos opacos sustentados pelo petróleo que foram canalizados para fora dos orçamentos normais do estado, muitos deles encaminhados por dois fundos especiais que operam fora de Londres”. Não é à toa que Roberto Saviano, especialista sobre a máfia italiana de Camorra, chamou o Reino Unido do “país mais corrupto do mundo”, ainda que no esquálido mercado de serviços sob segredo financeiro, este enfrente uma competição dura dos Estados Unidos, de Luxemburgo e da Alemanha.

Oportunidades legais e técnicas de desviar, armazenar e gastar montantes públicos oferecem incentivos poderosos para as elites angolanas – mas também para elites no estrangeiro. Desta e de outras maneiras – do mercado imobiliário à compra de armas – a riqueza angolana acaba nas mãos dos interesses dos ricos no exterior, onde esta pouco ou nada serve a qualquer finalidade pública. Os resultados do desenvolvimento dependem fundamentalmente dos incentivos voltados para as elites. Os incentivos provenientes do offshore pressionam o desenvolvimento angolano em direção a resultados que não são mais sustentáveis do que os da ordem colonial.

O que pode ser feito?

No início do período pós-colonial, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) prometeu “servir aos interesses das massas”. Os ecos dessa ambição foram ouvidos 37 anos depois, quando o mesmo partido prometeu “distribuir melhor para crescer mais”. Esses slogans se referem a objetivos válidos, razoáveis e atingíveis. A realização destes objetivos claramente enfrentou obstáculos a nível nacional. Mas a má governança e a corrupção existentes nesses níveis não são as únicas e, sem dúvida, não são as principais arenas que precisam de uma reforma radical. A ordem capitalista de hoje, que opera em colaboração com as classes politicas ocidentais, é crescentemente manipulada, de maneira a que ocorra a redistribuição da riqueza para cima. Atualmente, assim como na era colonial, são colocadas questões de quem obtém o quê, quando e como, não só dentro da classe política nacional em Luanda, mas também nas capitais financeiras e políticas das democracias ocidentais. É principalmente lá, sob a supervisão permissiva de líderes europeus, bancos centrais alemães e operadores seniores em Wall Street, que nós vemos a manutenção e o crescimento das oportunidades para o roubo.

Se os angolanos quiserem ter chance de limpar a sua política e criar uma economia política responsável e inclusiva, os sistemas de oportunidades e incentivos daí decorrentes deverão mudar. Dado o poder do setor do capitalismo financeiro ocidental sob a maior parte da classe política na Europa e na América do Norte, realizar estas mudanças não sera fácil. Apesar disso, jornalistas investigativos, militantes por justiça fiscal, grupos de pressão contra a captura corporativa, acadêmicos e outros têm se voltado contra mecanismos de manipulação que redistribuem o poder e a riqueza para cima. Estes, acompanhados pelos esforços de movimentos sociais emancipatórios e pelo distanciamento acelerado dos combustíveis fósseis e de seus enormes subsídios públicos, estão dando luz a uma nova estrutura de incentivos e a um novo contexto para todos aqueles que possuem alguma participação em Angola e no seu futuro.

[1] Representações que existem para fins imagéticos (nota da tradutora).

BOLSONARO, A DIMENSÃO COLONIAL


Apoio dos mais ricos ao deputado fascista revela como estão presentes, entre as elites, ideias de opressão dos pobres, submissão ao estrangeiro branco e predação da natureza

Joaquim Alves da Silva Jr | Outras Palavras | Imagem: Jean-Baptiste Debret

“… só temos o testemunho de um dos protagonistas, o invasor.

Ele é quem nos fala de suas façanhas.

É ele também, quem relata o que decidiu aos índios e negros, raramente lhes dando a palavra de registro de suas próprias falas.
O que a documentação copiosíssima nos conta
é a versão do dominador.”

Darcy Ribeiro

A ideia desta breve reflexão é remontar pontos históricos da formação do Brasil enquanto Estado e relacioná-los ao recente contexto de intensificação, por um lado, da violência direcionada às diferentes comunidades marginalizadas, e, por outro, ao paradigma de desenvolvimento extrativo e destruidor da biodiversidade. Esses componentes são pilares estruturais de um sistema de dominação que se consolidou durante período colonial, sendo galvanizado institucional e culturalmente por meio da constante reestruturação motivada ideologicamente pelos discursos que lhe correspondem ao longo do tempo. São três os casos recentes a serem comentados: a condenação a 11 anos de prisão imputada ao Rafael Braga, a palestra do deputado federal Jair Bolsonaro na Hebraica do Rio de Janeiro e a intensificação do desmatamento em paralelo ao aumento do genocídio na Amazônia. Em primeiro lugar, retornarei ao quadro histórico do século XIX para entender a inserção do Brasil nas relações comerciais e políticas do Atlântico, bem como a moldagem das influências externas no desenvolvimento do contexto interno do país.

A hegemonia inglesa no Atlântico, o tráfico de escravos e a escravidão

Ao final do século XVIII, há uma intensa remodelação nas regras do jogo imperialista concentrando a disputa entre a Inglaterra e a França, confrontando duas perspectivas: a livre cambista e a colonial expansionistai. Em paralelo, o continente americano seria palco de um dos fatos mais extraordinários da história ao lado da independência das Treze Colônias inglesas e do movimento bolivarianista de independência das colônias espanholas: a revolta escrava da então colônia caribenha francesa de Saint-Domingues, a mais importante produtora de café e açúcar da época, resultando na Revolução do Haiti em 1791ii.

Esse momento catalisou inúmeros movimentos abolicionistas na América Latina, em paralelo à reação virulenta das elites coloniais coagindo revoltas de forma violenta. Ademais, surgiu um novo cenário de dominação política e econômica do Novo Mundo, concentrando-se na recém-independente República dos Estados Unidos da América e no Império britânico. Enquanto o Caribe seria continuadamente dominado no âmbito comercial pelos norte-americanos, os britânicos fortaleceriam seus laços com as Américas espanhola e portuguesa, abrindo também um lento caminho para a colonização da África e da Ásia. Na América Latina, os processos de independência foram marcados por três características principais: o controle das elites regionais sobre os novos Estados; a reorientação à expansão dos sistemas de monoculturas tropicais em proveito à crise de oferta do Haiti e; o aumento do tráfico escravista com base no plantation e outras matérias primas fundamentais ao impulso da Revolução Industrialiii.

O Brasil, a era da liberdade e o imperialismo escravista

A problemática da escravidão e do tráfico de povos africanos no início do século XIX era algo teoricamente contrário aos preceitos liberais, o que levou ao surgimento de movimentos abolicionistas e acordos internacionais nas metrópoles sob a liderança britânica. No entanto, a distinção entre tráfico de escravos e o sistema escravocrata nos esclarece os reais caminhos da “era da liberdade”. A pesar de os britânicos verem o fim do tráfico com bons olhos, tomar uma atitude mais enérgica em relação ao escravismo não era um consenso entre as elites, divididas entre a detentora das colônias e a pequena, mas crescente, elite industrialiv.

Mesmo a linear divisão entre os abolicionistas do norte e escravocratas do sul pode ser demarcada com menor linearidade com a entrada dos Estados Unidos como potencia imperialista: a dependência de escravos para o avanço ao oeste, o que levou a um acordo entre abolicionistas e escravagistas no início do século XIXv. Neste mesmo período, a república americana se transformaria na segunda potência marítima no mundo. Tecendo laços com Cuba, daria continuidade ao “ótimo negócio” tráfico de humanos, tanto para os escravistas do sul como os abolicionistas do norte. Os últimos, produtores de navios, controlariam o comércio atlântico do continente americanovi.

A colônia brasileira da época depara-se com a crise da cana-de-açúcar em vista da crescente competição com outras colônias, além da necessidade de garantir de suas fronteiras territoriais. Com o apoio britânico, ocorre transferência da Coroa portuguesa em 1808, abandonando a metrópole a Napoleão. Já o processo de independência em 1822 marca o início da história institucional brasileiravii. No período subsequente, até metade do século XIX, o alinhamento Brasil-Inglaterra foi continuamente enfraquecido, em muito pelo crescente combate ao tráfico escravista por parte dos ingleses, a exemplo da Convenção Antitráfico de 1826, assinada entre britânicos e portugueses, ou na influência na promulgação da Lei Feijó Barbacena de 1831, que proibia a escravidão de pretos aportados no império a partir daquela dataviii.

Por sua vez, o crescente império norteamericano não sofria até então a fiscalização britânica. Já o Brasil fortaleceria o comércio escravista centrado no baronato. Somente na primeira metade do século XIX, o Brasil recebeu aproximadamente 40% de todo o contingente de cerca de cinco milhões de escravos vindos da África durante toda a Históriaix. Há uma crescente insatisfação das elites regionais com a ingerência britânica nas tomadas de decisões relativas à restrição do tráfico escravista. A tensão diplomática se materializou com o aumento de impostos de importação e medidas protecionistas pelo lado do império (Tarifa Alves Branco, de 1844) e a Inglaterra outorgando, de forma unilateral e em caráter internacional, o comércio escravista como ato de pirataria (Lei Bill Aberdeen, de 1845)x.

Esse momento refletiu nas disputas entre a elite escravagista e o império, defensoras de perspectivas teoricamente díspares: a manutenção do sistema escravocrata e o liberalismo. Contudo, o controle cada vez maior dos canais parlamentares garantiu a promulgação de inúmeras legislações favoráveis às elites senhoriais e direcionadas à manutenção da escravidão. Destaca-se a Lei de Terras de 1850, fundamental para instituir a propriedade privada sem qualquer tipo de alteração na estrutura fundiária ou o fomento aos pequenos lavradores, posseiros ou escravos libertosxi. Mesmo a Lei Eusébio de Queirós que proibiu o comércio escravista (curiosamente publicada doze dias antes da promulgação da Lei de Terras), foi elaborada cuidadosamente para tirar as responsabilidades da elite rural em relação aos escravosxii.

Um dos casos de apoio mútuo entre a monarquia e a elite escravocrata ocorreu no episódio da tentativa dos EUA importarem seus escravos para a Amazôniaxiii. A ideia girava em torno de “uma necessidade absoluta de que os negros libertos [fossem] transportados para fora da jurisdição dos Estados Unidos, onde jamais poderão desfrutar de igualdade política ou socialxiv”. A proposta lastreava a pretensão de dominação territorial norteamericana que, contudo, acabou sendo vetada por Dom Pedro II. Havia a necessidade de proteger o ciclo econômico da borracha, em franca expansãoxv. Ainda assim, os EUA realizariam uma contínua campanha a favor do livre comércio na maior bacia hidrográfica do mundo.

Uma das questões mais importante da época girava em torno da ideia de “raças” e as implicações nacionalistas inspiradas pelas abordagens norteamericanas e europeias de eugenia. Em paralelo à preocupação da elite rural com as crescentes revoltas escravistasxvi, a questão racial foi o pano de fundo ao então embrionário meio intelectual brasileiro. As nascentes instituições educacionais da época eram palco privilegiado deste debate, cujo objetivo principal era o estabelecimento de critérios diferenciados de cidadaniaxvii. Isso se traduz na abordagem da incapacidade dos negros e mestiços ao trabalho livre, o que serviu como uma das justificativas à imigração europeia.

Enquanto a abolição era de fato promulgada em 13 de maio de 1888, o golpe senhorial-militar que marcaria o início da República Velha seria dado um ano depois. O caminho do modo de produção capitalista e de uma legislação formalmente liberal, instituídas via políticas de colonização e distribuição de terras às famílias europeias, conviveu com o trabalho escravo ou no máximo livre, especialmente nas zonas cafeeirasxviii.

A dupla face predatória do sistema escravista de plantation

A exploração da força de trabalho escravista está intrinsecamente relacionada com a forma de manejo dos recursos naturais. Entre o início da colonização até final do século XVIII, o Brasil participava do sistema mercantil extraindo recursos florestais e minerais. Havia uma agropecuária de caráter diversificado, visando o atendimento do mercado interno com as crescentes incursões para as Minas Gerais, bem como a cana-de-açúcar no nordeste e sudeste para exportação. Contudo, o sistema agrícola empreendido foi rapidamente sobrepujado pelas colônias inglesas, francesas e holandesas, que desenvolviam técnicas de melhorias partindo das experiências e aprendizados na África e Ásiaxix.

Com uma lógica arcaica baseada na abertura de áreas de plantio por meio do fogo, da usurpação das terras de indígenas e de pequenos posseiros, o sistema(?) agropecuário era improdutivo e predatório. A extração madeireira completava o ciclo exploratório, pois esta não somente fornecia lenha doméstica e para a mineração, como também para o avanço da grande lavoura por meio das suas cinzas. Nenhuma importância era dada à pesquisa da biodiversidade, ao conhecimento ecológico local, ou mesmo à utilização potencial desses recursos.

A vinda da Coroa ao Brasil no início do século XIX traz renovações liberais e científicas. Ligada a império britânico, a metrópole tentava superar o paradigma mercantil de exploração irracional da biodiversidade. Há o exemplo do surgimento de naturalistas brasileiros tais como José Bonifácio de Andrada e Silva, assim como a construção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, também fundado em 1808, que abriu caminho para ações de conservação da Mata Atlântica. Entretanto, como argumenta o historiador Warren Deanxx, as elites rurais do centro sul, especialmente as fluminenses, instigadas pelo ciclo cafeeiro, estabeleceriam uma estratégia calcada em quatro movimentos.

Em primeiro lugar, a elite forçaria manutenção da escravidão até as últimas possibilidades: a Coroa portuguesa tinha a intenção de extinguir o tráfico de escravos, fato este que já ocorria em outras colônias conjuntamente à crescente pressão britânica. Por outro lado, a expansão do café e a intensificação do tráfico escravista seguiram. Havia resistência ao uso de técnicas para melhorias produtivas, causando não somente a sobre-exploração do trabalho escravo como a expansão da grande lavoura sobre os ecossistemasxxi. Adicionando o fato de que foi a escravidão, e não o café, a “atividade econômica” mais rentável da época para baronato rural;

Em segundo lugar, as elites acabariam com os obstáculos ao monopólio privado sobre terras públicas: ao final do século XVIII houve uma tentativa de maior controle sobre as terras da Coroa em relação ao regime de sesmarias, nada mais que um sistema de doação de terras públicas às elites rurais. Neste período surgiu uma corrente de pensadores reformistas que defendiam a necessidade de fixação dos limites das propriedades, parcelamento para pequenos posseiros e escravos libertos, reivindicação de terras abandonadas e a promulgação de políticas de conservação mais sólidas. Seria hoje o que chamamos de reforma agrária e, obviamente, nunca passaria do campo das ideias da época, enquanto a realidade mostrava um aumento sem precedentes de aberturas de terras e intensificação do tráfico escravista para nutrir o ciclo cafeeiro;

Em terceiro, temos a remoção de indígenas das terras e recrutamento forçado para o trabalho: aqui não há conflitos entre elites rurais, Coroa ou mesmo as correntes liberais da época. A escravidão de povos africanos não significava alívio algum aos indígenas, forçados às constantes fugas pelo avanço do plantation. A lógica da assimilação ou extinção seguia: capturados para trabalhos forçados, crianças vendidas, mulheres prostituídas, fixação das ‘aldeias’, algo semelhante ao processo de genocídio indígena durante a conquista do oeste nos EUAxxii. A elite rural organizava milícias caçadoras de indígenas, comumente chamados de bugreiros, com atuação em São Pauloxxiii e em Santa Catarinaxxiv. Como se apreende de uma frase dita na época: “A terra encharcada de sangue é terra boaxxv”.

O quarto ponto foi enfraquecer a legislação florestal: no período colonial, a Coroa proibia o corte de pau-brasil e de madeira de lei, bem como tinha o monopólio sobre a extração e venda dos mesmosxxvi. Ao início do século XIX, a extração madeireira, seja pela sua retirada em propriedades privadas, seja na interlocução com comunidades locais e indígenas, alimentava a indústria naval e as crescentes serrarias. Paradoxalmente, a dependência em relação à Europa era espantosa a ponto de o Rio de Janeiro importar mogno da Jamaica mais barato que os preços praticados das madeiras de leis locais, estas amplamente subsidiadas aos europeus. Outro interesse de exportação eram os animais e flores raras. A caça, tanto para alimentação dos posseiros como atividade de lazer das classes médias da época, extinguia rapidamente a fauna local, especialmente em áreas próximas às periferias urbanas.

O período em questão iniciaria a consolidação da unidade nacional marcada pela desigualdade estrutural do regime de acesso a terra, em adição à pratica predatória que destruiu boa parte da Mata Atlântica, não sendo nada além de um prelúdio ao que ocorreria com outros ecossistemas brasileiros. Após a proibição do tráfico de escravos, houve a migração de trabalhadores livres para o sudeste e para a região amazônica, esta última incentivada pelo ciclo da borracha. Já a região sul estabeleceria um regime diferenciado, em vistas da colonização de povoamento e da sua crescente importância regional como produtor de alimentos e de madeira para a nascente indústria paulista. A política de distribuição de terras em lotes familiares para os colonos europeus foi o pilar desta diferenciação estrutural no sul. Não que a região em questão não tenha se aproveitado do trabalho escravoxxvii, ou mesmo que não tenha destruído suas florestas de araucáriasxxviii, pelo contrário.

A questão atual é a mesma de sempre…

A evolução dos dois últimos séculos para os dias atuais evidencia um flagrante continuísmo do sistema desigual e predatório desenvolvido no Brasil, tanto na sua dimensão social como ecológica. Não faltam fatos históricos desta continuidade, tanto na repressão às periferias urbanas como no meio rural. Ao exemplo do avanço das commodities para o centro-oeste e Amazônia sob o mesmo modelo predatório e violento ocorrido na Mata Atlântica no século retrasado. O crime ambiental de Mariana completa um ano e meio sem qualquer solução. Acompanhamos a entrega dos recursos naturais e minerais, especialmente após a crise do sistema capitalista ocorrida em 2008, a exemplo da Petrobrásxxix. A tragédia farsesca vira piada geopolítica, uma das empresas mais importantes do mundo desmantelada e entregue aos mesmos imperialistas de sempr – estes sim, plenamente “aptos” a explorar recursos encontrados por pesquisa e tecnologia brasileirasxxx.

Por sua vez, a questão racial nunca foi enfrentada com o devido vigor;0, ao contrário, piorou ao longo do tempo. A condenação ao Rafael Braga por tráfico de drogas com provas que expõem duvida não é nada diferente do que já ocorria em finais do século XIX como método de controle das comunidades marginalizadasxxxi, ou mesmo com o aumento da violência nas periferias urbanas, em Terras Indígenas ou em comunidades camponesas durante a ditadura civil-militar. As “provas” da condenação — 0,6 g de maconha e 9,3 g de cocaína – estão sendo usadas neste momento por qualquer pessoa das classes médias e altas no Brasil. É uma amostra do racismo institucional instalado na era Vargas e mantido até os dias atuais sob o mito da democracia racial. Quando não reproduzido, esse mito é simplesmente enterrado do amplo debate intelectual e social crítico, com raríssimas exceçõesxxxii. Desta forma, compreende-se o porquê de boa porção da sociedade brasileira não se chocar com Claudias sendo arrastadas por camburões, torturas aos Amarildos, assassinatos de Marias Eduardas em escolas, jovens indo comprar lanche e sendo alvejados por 111 tiros, cento e onze tiros, CENTO E ONZE TIROS. Todos sob o jugo da força estatal de segurança. O círculo vicioso da violência institucional segue instrumentalizada pela lógica do soldado e do apartheid socialxxxiii.

A fala do deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC) e capitão da Reserva do Exército no Clube Hebraica do Rio foi chocante, o que não é novidade. O fato a ressaltar é como a divulgação dessa palestra foi tratada como banalidade pela maior parte das instituições e organizações, públicas ou privadas, civis ou militares. Muitas dessas comportam pessoas pretas como quadros e não foram capazes de emitir qualquer nota oficial em condenação. Nada de diferente da ideia de sociedade que se moldou historicamente. Numa das pesquisas eleitorais elaboradas pelo Datafolha, o deputado tem os melhores percentuais de intenções de votos entre as camadas mais ricas e com maior escolaridadexxxiv. Outro ponto a ser ressaltado é o local onde a palestra ocorreu, demonstrando que as contradições geradoras da exclusão e da desigualdade ocorrem em todos os meios políticos e instituições, incluindo as representantes dos povos que já sofreram com o preconceito e o fascismo.

A atenção dada pelo deputado à possibilidade de “uso econômico” de Terras Indígenas ocorre em paralelo ao recente aumento da violência no campo, como observado no Maranhão com a comunidade indígena Gamelaxxxv. Há o avanço contra a legislação voltada ao licenciamento ambiental e à estrutura estatal de proteção à biodiversidade, a exemplo das propostas de redução de unidades de conservação, além da criminalização de antropólogos, indígenas e procuradores dos Ministérios públicos com o relatório da CPI da Fundação Nacional do Índio elaborada pela bancada ruralistaxxxvi. Recentemente, um edital foi liberado pelo Ministério do Meio Ambiente para a contratação de empresas privadas com o objetivo de gerar informações espaciais da Amazônia, trabalho este já realizado pelo competente Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) há cinco décadasxxxvii. Em adição, discute-se a aprovação do Projeto de Lei n0 6442/2016, com o objetivo de reduzir a legislação trabalhista do meio ruralxxxviii para um modelo típico de relações pré-capitalistas, com o pagamento parcial do trabalho via alimentação, a possibilidade de venda das férias e dias descanso ao empregador, o aumento das horas trabalhadas, a participação no prejuízo em ano de colheita ruim, etc. Tal sistema se traduziria em termos concretos na volta ao regime de escravidãoxxxix.

Mesmo a finda fase progressista não passou de uma ilusão com enorme urgência de ser superadaxl. A estruturação das políticas sociais e de um Estado mais funcional foram pontos muito positivos, especialmente às comunidades pretas que se viram pela primeira vez como parte da agenda governamental no âmbito do governo federal. A implantação da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e das cotas raciais para concursos públicos são alguns exemplos virtuosos. Contudo, nada justifica um governo pretensamente progressista aprovar a Lei Antiterrorismo. Sem falar na miopia direcionada à dimensão ambiental. Relembremos da aprovação de um “Código Florestal Ruralista” e da pouca atenção dada às reivindicações de movimentos ambientalistas e de comunidades afetadas por grandes obras. Junte tal contexto à ausência da formação política de base e temos a janela de oportunidade à reação elitista, operacionalizada pela porção fascista da classe média, esta acompanhada de elevada carga de ódio às minorias majoritárias, movimentos de esquerda e comunidade LGBT. O resultado foi (mais um) golpe com relevantes perdas das poucas conquistas populares e da insuficiente estrutura estatal que se formara.

Porém, o sistema político brasileiro é cindido na origem. Ora é puxado pelo populismo no executivo, ora pelo parlamentarismo conservador elitista, este último com apoio do judiciário e das forças armadas quando necessário. Mestre Celso Furtado já nos alertava sobre a característica inata de um legislativo que, controlado pelas oligarquias rurais desde a época colonial, impediria quaisquer tipos de reformas de basexli. Aliás, todas as mudanças institucionais importantes no país se deram por meios elitistas, sejam eles políticos ou econômicos, incluindo a Constituição Federal de 1988xlii. Do outro lado do abismo, os “mestiços” que batalham diuturnamente, os verdadeiros construtores desta nação incompleta, são feitos de tolos pelas “meritocráticas” classes médias e altas que os exploram sistematicamente. Ainda assim, esses batalhadores tentam vencer todos os tipos de obstáculos, preconceitos, violências e assimetrias de acesso às condições básicas de uma vida dignaxliii. Como bem afirma Jessé Souza, no Brasil poucos são os heróis que superam esse enorme quadro de adversidades.

Já o racismo é parte de um sistema maior de dominação e, seja nas antigas metrópoles ou nas antigas colônias, todo país com tal herança é um país racistaxliv. Entretanto, no Brasil a questão racial é uma construção social que permeia a sociedade em sua totalidade. Dificilmente surgirão quaisquer perspectivas de mudança sem o amplo reconhecimento desse problema. Só resta saber quando os campos ditos progressistas conseguirão alcançar tal nível de autocrítica e humildade para reconhecerem suas falhas históricas em relação ao tema. Em paralelo, a destruição ambiental e o círculo vicioso do desenvolvimento-subdesenvolvimento mostra que a sobre-exploração humana não está dissociada da sobre-exploração da biodiversidade. Assim como não há separação entre o potencial controle social com o controle territorial dos recursos naturais. Essa é a base para a lógica de manutenção da complexidade ecológica ao mesmo tempo em que esta sirva às necessidades humanas básicas. A questão ambiental perpassa as dimensões socioculturais, ecológicas, político-institucionais e econômicas. Ou seja, a questão ambiental é fundamentalmente uma problemática humana.

Não há evidência de mudança estrutural positiva neste quadro, mas o caminho parece ser o trabalho no cotidianoxlv direcionado aos excluídos deste debate, conjuntamente à construção crítica da política alçada ao plano regional e internacional, visando à superação dos sistemas coloniais de sempre, bem como suas variações pós-modernas. Talvez, a busca por um verdadeiro universalismo passe pela relação recíproca em respeito às diversas expressões culturaisxlvi e pelos princípios ecossocialistasxlvii.

Notas
i# Camille Ramondeau, Laura V. Lammerhit, Natasha P. Silva e Renata Postal. O tráfico de escravos e a hegemonia sistêmica no século XIX. FRoNteiRA, Belo Horizonte, v. 10, n. 19, p. 7-23, 10 sem, 2011.
ii# Eric Williams. Capitalismo y Esclavitud. Madrid: Traficantes de Sueños. 2011.
iii# Tâmis P. Parron. A política da escravidão na era da liberdade: Estados Unidos, Brasil e Cuba, 1787-1846. 2015. 502p. Tese (Doutorado em História Social). FFLCH. USP. 2015.
iv# João D. A. C. L Carvalho. “Para britânico se lamentar”? As relações entre Brasil e Inglaterra e a lei de 1831. Sociais e Humanas, Santa Maria, v. 27, n. 3, set./dez. p. 9-17, 2014.
v# Camile Ramondeau et al., 2011, op. cit.
vi# Tâmis Parron, 2015 op. cit.
vii# Lilia M. Schwarcz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
viii# João D. A. C. L. Carvalho, 2014, op. cit.
ix# Maria Cristina C. Wissenbach. A Escravidão na África e o Tráfico Atlântico de Escravos (Parte 2). 2015. Disponível em: <https://goo.gl/cxcwMB>. Acesso em: 21 abr. 2017.
x# João D. A. C. L. Carvalho, 2014, op. cit.
xi# Maicon C. Silva e Lauro F. Mattei. A transição do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil: um processo de acumulação primitiva em uma economia dependente. REBELA, v. 5, n. 2, mai./ago. 2015.
xii# João D. A. C. L. Carvalho, 2014, op. cit.
xiii# Carlos Haag. O dia em que o Brasil disse NÃO aos Estados Unidos. Revista Pesquisa FAPESP, São Paulo, n. 156, p. 80-85, fev. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/IxAp9i>. Acesso em: 23 abr. 2017.
xiv# Camille Ramondeau et al., 2011, p. 19
xv# Celso Furtado. A Operação Nordeste. In: Rosa F. de D’Aguiar, Celso Furtado: Essencial. São Paulo: Companhia das Letras. 2013.
xvi# Alberto Costa e Silva. O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX. Estudo Avançados, São Paulo. v. 8, n. 24, p. 21-42, 1994.
xvii# Lilia M Schwarcz, 1993, op. cit.
xviii# Maicon C. Silva e Lauro F. Mattei, 2015, op. cit.
xix# Tâmis Parron, 2015, op. cit.
xx# Warren Dean. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo: Companhia das Letras. 1996.
xxi# Rafael Marquese. Paisaje, esclavitud y médio ambiente en la economia cafetalera brasileña: Vale do Paraíba, siglo XIX. Asclepio, v. 67, n. 1, 2015.
xxii# Dee Brown. Enterrem meu coração na curva do rio: a dramática história dos índios norte-americanos. L&PM. 2003.
xxiii# Warren Dean, 1996, op. cit.
xxiv# Caroline Macário. Caçadores de índios. 2016. Diário Catarinense. Disponível em:
<https://goo.gl/SpHy9v>. Acesso em: 20 abr. 2017.
xxv# Warren Dean, 1996, p. 255.
xxvi# Rodrigo Medeiros. Evolução das tipologias e categorias de áreas protegidas no Brasil. Ambiente e Sociedade, São Paulo, v. 9, n. 1, jan./jun. 2006.
xxvii# Rosane A. Rubert e Paulo S. Silva. O acamponesamento como sinônimo de aquilombamento: o amálgama entre resistência racial e resistência camponesa em comunidades rurais negras no Rio Grande do Sul. In: Emília P. Godoi, Marilda A. Menezes e Rosa A. Marin. Diversidade do campesinato: expressões e categorias. V. 1. São Paulo: Editora UNESP. 2009.
xxviii# Miguel Mundstock Xavier de Carvalho. Os fatores do desmatamento da floresta com araucária: agropecuária, lenha e indústria madeireira. Revista Esboços, Florianópolis, v. 18, n. 25, p. 32-52, ago. 2011.
xxix# Andrey Cordeiro Ferreira. Crise do capitalismo e a nova ofensiva global pelos recursos naturais pós-2008. Le Monde Diplomatique-Brasil, São Paulo, mar. 2016. Disponível em: <https://goo.gl/wJREe2>. Acesso em: 4 abr. 2016.
xxx# Ildo Sauer. Nas Entranhas do Pré-Sal (Parte 1). Nocaute TV. 11 out. 2016. Disponível em: <https://goo.gl/3RI7m4>. Acesso em: 25 abr. 2017.
xxxi# Célia M. M. Azevedo. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Paz e Terra: Oficinas da História: Rio de Janeiro. 1987. 267p
xxxii# José J. Carvalho. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. REVISTA USP, São Paulo, n. 68, p. 88-103, dez./fev. 2006.
xxxiii# Frantz Fanon. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira. 1968.
xxxiv# Ricardo Borges. Bolsonaro tem melhor resultado no Datafolha entre ricos e escolarizados. Folha de São Paulo, 30 abr. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/ZfJBK0>. Acesso em: 1 mai. 2017.
xxxv# Congresso em Foco. Ataque a grupo de índios deixa vítimas com mãos decepadas no Maranhão. Disponível em <https://goo.gl/5JJc2Q>. Acesso em: 02 mai. 2017.
xxxvi# Alceu Castilho. Relatório da CPI da Funai criminaliza antropólogos, procuradores, CIMI CTI e ex-ministro. Outras Palavras, 3 mai. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/UYkgBS>. Acesso em: 3 mai. 2017.
xxxvii# Herton Escobar. Governo Federal quer observação privada da Amazônia. Estadão, 3 mai. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/UzhPNN>. Acesso em: 3 mai. 2017.
xxxviii# Carta Capital. Trabalhador rural poderá receber casa e comida no lugar de trabalho. Disponível em: <https://goo.gl/az6yu7>. Acesso em: 3 mai. 2017.
xxxix# Jacob Gorender. A burguesia brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense. 1998.
xl# Patrícia Fachin. A esquerda pós-PT: “Chega uma hora em que a realidade precisa vencer o medo”. Entrevista especial com Rodrigo Nunes. Instituto Humanitas Unisinos. 17 abr. 2017; Disponível em: <https://goo.gl/M8gvMp>. Acesso em: 30 abr. 2017.
xli# Celso Furtado. Obstáculos políticos ao crescimento brasileiro. In: D’AGUIAR, Rosa F. Celso Furtado: Essencial. São Paulo: Companhia das Letras. 2013.
xlii# Luis Felipe Miguel. Resgatar a participação: democracia participativa e representação política no debate contemporâneo. Lua Nova, São Paulo, n. 100, p. 83-118, 2017.
xliii# Jessé Souza e William Nozaki. O Brasil não conhece o Brasil: ou, porque as camadas populares não são como as elites e as classes médias gostariam que elas fossem. Fundação Perseu Ábramo (online), São Paulo. 20 abr. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/1xf6jH>. Acesso em: 25 abr. 2017.
xliv# Frantz Fanon, 1968, op. cit.
xlv# Luis Felipe Miguel, 2017, op. cit.
xlvi# Frantz Fanon. Racismo e Cultura. In: Frantz Fanon. Em Defesa da Revolução Africana. Lisboa: Augusto de Sá. 1980.
xlvii# Miguel Fuentes. El peligro de um eco-suicidio planetário como problema estratégico central de la Izquierda. Entrevista a Michael Löwy. Viento Sur, Bilbao, 06 mai. 2017. Disponível em <https://goo.gl/fYycFp>. Acesso em: 8 mai. 2017.

MAIS “TRUMPALHADAS” NEOCOLONIAIS!


TOTAL SOLIDARIEDADE A CUBA REVOLUCIONÁRIA E À VENEZUELA BOLIVARIANA! 

Martinho Júnior | Luanda
  
O Presidente Donald Trump volta aos tempos da ilimitada guerra psicológica contra Cuba Revolucionária e a Venezuela Bolivariana, como se a América Latina devesse continuar a ser reduzida ao “quintal preferencial” das neocolónias do âmbito da hegemonia unipolar exercida pelos Estados Unidos.

É evidente que este deve se encarado como um sério aviso que deve colocar em alerta todos os Não-Alinhados, pois com esta administração republicana só se pode esperar a radicalização das linhas de domínio sobre os países do sul, em particular aqueles que são produtores de petróleo, ou têm seus territórios em posições físico-geográficas consideradas de geoestratégicas.

As nações, os estados e os povos amantes da paz, do aprofundamento da democracia, do respeito mútuo e do progresso, só podem condenar esta “trumpalhada” neocolonial e o carácter do exercício persistente do domínio nos termos da hegemonia unipolar.

Esse alerta é extensivo aos vassalos tradicionais do âmbito da “civilização judaico-cristã ocidental”e aos vassalos que se propõem à disseminação do caos e do terrorismo do âmbito da Al Qaeda e do Estado Islâmico, com todo o cortejo de manipulações, ambiguidades e “jogos operativos” que as vassalagens implicam.

Em relação a Cuba Revolucionária espera-se, quando as questões do bloqueio e de Guantánamo forem levantadas na Assembleia Geral da ONU deste ano, mais uma veemente condenação aos Estados Unidos, por todas as nações, estados e povos da Terra!

Quanto à Venezuela Bolivariana, apela-se ao desmascaramento contínuo das campanhas internacionais de difamação em curso, na tentativa de vulnerabilizar cada vez mais a Venezuela Bolivariana e os seus amplos compromissos em busca da paz, do socialismo e do progresso de toda a América Latina!

Imagens:
Bandeiras venezuelana e cubana; Os Comandantes Fidel de Castro e Hugo Chavez, dois vanguardistas em prol da abertura em direcção aos difíceis caminhos em busca de liberdade, de independência, de soberania, de justiça, de socialismo e de paz entre todas as nações, estados e povos da Terra!

Em anexo

INFERNO AO CENTRO | (Ainda) não é altura para politiquices


Ana Alexandra Gonçalves*
A tragédia que assolou o país tem uma dimensão que não permite que se perca tempo com politiquices, acusações, dedos em riste. Nem tão-pouco será tempo para a política, a genuína e não vulgar, entrar em campo, através de uma qualquer deriva legislativa em cima do acontecimento. O que não quer dizer que se entre num período obscurantista, muito pelo contrário, hoje e no futuro, como deveria ter sido feito no passado, é imperativo de ouvir quem sabe destas matérias. Tendo sempre em vista as alterações climáticas e o seu expectável agravamento.

Este será o tempo de acudir a quem necessita e nem seria preciso fazer uma afirmação tão óbvia não fosse um ou outro responsável político vir a terreiro apontar o dedo. E por falar em vulgaridades, Hélder Amaral, deputado do CDS, aponta o dedo ao Presidente, afirmando que "não basta um Presidente dar beijinhos no dói-dói e dizer que não há nada a fazer". Sim, Hélder Amaral tem feito muito para a resolução deste e de outros problemas. Não se lembram? Eu também não.

Vamos por partes: Marcelo Rebelo de Sousa não afirmou taxativamente que não há nada a fazer, procurando antes dar aquilo que num momento de aflição é, amiúde, a única coisa que se pode proporcionar: conforto e solidariedade. De resto, o apelo à união não se faz apenas em momentos de felicidade que antecedem um jogo de futebol; os momentos de união devem ser fortalecidos precisamente em situações de calamidade, como o Presidente muito bem lembrou.

Por outro lado, tratou-se, segundo a Polícia Judiciária, de um fenómeno da natureza. No entanto, compreende-se a necessidade de ter um ou mais culpados físicos e não abstractos, é mais fácil apontar o dedo. Quanto aos meios no terreno se foram suficientes ou não, haverá sempre essa discussão e o mais certo é não serem os suficientes, nunca o serão. E também parece evidente que não se ouve quem tecnicamente tem competências para dar contributos profícuos e eventualmente decisivos.

Hélder Amaral, por exemplo, poderia dar um contributo mais saudável para a discussão, designadamente abordando os tempos em que a líder do seu partido foi ministra da Agricultura (entre outras coisas de que ninguém se lembra) e as políticas desta quanto à proliferação de eucaliptos. E se queremos recuar no tempo, oiçamos Miguel Sousa Tavares lembrar o papel do Governo de Cavaco Silva.

Seja como for, anda não é o tempo para politiquices, elas acabarão por vir, inevitavelmente.

Quanto ao deputado do CDS e outros que chegam a pugnar pela demissão da ministra da Administração Interna, procurem dar tempo ao tempo. Bem sei que existe algum desespero em certas hostes, mas o aproveitamento político de uma desgraça como aquela que assolou o país no passado sábado é simplesmente obsceno. A título de exemplo, atente-se à forma como o ministro da Agricultura foi entrevistado na SIC por Clara de Sousa.

Todos queremos respostas, todos queremos saber como evitar outra situação semelhante, mas deixe-se passar os três dias de luto nacional. É que para nós serão três dias, para muitos é toda uma vida. E três dias não é muito tempo.

Ana Alexandra Gonçalves | Triunfo da Razão