O urgente é afirmar a ilegitimidade de Temer e enfrentar seu programa de horrores. Mas o essencial é encarar o imenso trabalho de reconstruir um projeto de esquerda
Antonio Martins* – Outras Palavras
Lá dentro, havia terminado, poucos antes, o espetáculo deprimente oferecido pelos homens brancos, cínicos e toscos. Diante do Congresso Nacional, Guilherme Boulos empulhou o microfone e se dirigiu às milhares de pessoas que – tanto em Brasília, quanto em dezenas de cidades – acreditaram que poderiam, com seus corpos, frear o golpe urdido pela TV Globo, pelos maiores empresários e pela mídia.
Não foi possível, por enquanto. Mas Boulos acredita que ainda estão rolando os dados. “O Brasil todo sabe: o que acabamos de assistir foi uma farsa golpista, conduzida por um sindicato de ladrões”, frisou ele. E tirou as consequências: “Os golpistas não têm condições de governar este país. Nós não reconhecemos sua legitimidade. Este recado tem que ecoar país afora. Perdemos a batalha do carpete, mas vamos ganhar a batalha do asfalto. Não tem um minuto de trégua. Vai ter ocupação. Vai ter luta. Tomaremos este país, incendiaremos as ruas até derrotar os golpistas.”
É possível que o coordenador do MTST tenha razão. Agora, só uma surpresa muito improvável impedirá que Temer vista a faixa presidencial em cerca de quinze dias. Mas governar é outra história. Como dissera horas antes o jornalista e professor Igor Fuser, num debate organizado pelo jornal Brasil de Fato, o vice-presidente que conspirou contra sua companheira de chapa assumirá o palácio do Planalto em situação de fragilidade incomum. Entre a população, sequer os mais conservadores, que foram à Avenida Paulista ontem, o apoiam, como mostra o próprio Datafolha. No grupo, 54% querem também o impeachment de Temer, e 68% creem que um eventual governo liderado por ele será regular, ruim ou péssimo, (no Anhangabaú, onde se reuniram, em São Paulo, os que lutam contra o golpe, os números são, é claro, muito mais altos: 79% e 88%).
A mídia, é claro, dará uma mãozinha ao vice. Ainda que muito impopular, ele tem um trabalho a fazer em pouco tempo. Nos últimos dias, apareceu com clareza a agenda de concessões ao poder econômico, ataques aos direitos sociais e normatização moral conservadora que pretende cumprir, nos 32 meses que faltam para o final do mandato. Por isso, haverá certamente, nas TVs e jornais, muito foguetório quando Temer anunciar medidas demagógicas – como a redução do número de ministérios –, quando atribuir a seus antecessores a responsabilidade pela crise e também quando a Lava jato deflagrar, eventualmente, novas operações.
Mas haverá muitas pedras no caminho. O Orçamento do Estado é limitado, ainda mais para os defensores da ortodoxia econômica. Fazer grandes concessões ao capital implicará cortar direitos e programas sociais. As maiorias – inclusive os que se deixam hoje seduzir pelo impeachment – aceitarão? Um presidente não referendado por eleições, e a quem as pesquisas de intenção de voto atribuem 1% das preferências do eleitorado, terá força para impor medidas antipopulares? Mais: a oposição a Dilma é uma rinha de egos. A pouco tempo das eleições presidenciais, para governadores e o Congresso, haverá unidade entre ministros e parlamentares?
É nesta brecha que Boulos acredita. A Frente Brasil Popular (formada basicamente por centrais sindicais e partidos de esquerda) e a Frente Povo sem Medo (bem mais à esquerda, articulada em torno do MTST) lançaram, já no domingo, um apelo conjunto que esboça uma tática e uma agenda de lutas. Haverá ainda pressão sobre o Senado (que deverá se pronunciar sobre o impeachment por volta de 10 de maio). Para organizá-la, prepara-se um 1º de Maio expressivo, convertido em Assembleia Nacional da Classe Trabalhadora. Preveem-se em “paralisações, atos, ocupações, já nas próximas semanas”.
Caso Temer ao final assuma, propõe-se “não reconhecer tal governo ilegítimo”, “combater cada uma das medidas que dele vier a adotar” e lutar por “uma profunda reforma do sistema político atual, verdadeira forma de combater efetivamente a corrupção”. A aposta é clara e ousada: reverter o golpe de ontem com mobilização popular e astúcia. Tirar proveito da impopularidade evidente de Temer e do desprestígio crescente do Congresso, onde 299 de 513 deputados foram condenados ou acusados de atos de corrupção.
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Suponha agora que o golpe tivesse sido derrotado, domingo à noite. Que, pressionados pela mobilização popular, 25 dos 367 homens brancos, cínicos e toscos deixassem de usurpar o voto de 54 milhões de eleitores e de escolher Michel Temer para a Presidência. Que Dilma despertasse ontem segura dos dois anos e meio restantes de mandato. Estaríamos bem? Prossiga um pouco, nas especulações. Relembre que, por treze anos, Lula e Dilma tiveram como parceira central de sua governabilidade, a mesma escória que ontem terminou por derrotá-los. O anonimato a escondia em gabinetes sempre frequentados por lobistas, em comissões de trabalho cujas pautas a velha mídia nunca revela, num plenário onde se aprovam sem qualquer debate público, leis, medidas provisórias e emendas à Constituição. Convocada, a escória deixou os corredores e expôs aos holofotes sua boçalidade orgulhosa.
O choque que as imagens provocaram está reavivando um questionamento distinto do de Boulos, e talvez complementar a este. A que beco nos conduziu o projeto de esquerda que evitou chocar-se com a institucionalidade conservadora; que recorreu à mobilização popular só em casos de emergência; que não ousou falar em reformas estruturais; que se acomodou, em seus momentos mais infelizes, a medidas que devastavam sua própria base – como o “ajuste fiscal” implementado por Dilma?
Este questionamento não é, em si, inédito – mas algumas reflexões recentes sugerem que está se refinando e difundindo. Não se trata de repetir a antiga crítica de partidos e correntes mais à esquerda, segundo as quais o PT “endireitou”, ou “adaptou-se à ordem burguesa” (uma versão recente deste argumento pode ser encontrada numa postagemrecente do historiador Henrique Carneiro). Também não é apenas uma observação sobre como certa esquerda governista aceitou os limites da institucionalidade e respeitou tanto seus métodos e costumes que acabou reproduzindo-os ela mesma (vide a promiscuidade com as empreiteiras, ou o desvio de recursos da Petrobras para financiar campanhas eleitorais).
O que há, além disso, em alguns textos muito recentes, são duas novidades. Primeiro, seus autores não se limitam a criticar o PT e seus aliados – parecem dispostos a assumir responsabilidades na construção de novos projetos e práticas. Evita-se o simplismo das disputas autofágicas. “O jogo de acusações é divisionista e pueril. Do mais realista ao mais idealista, do mais institucional ao mais anárquico, apesar das intenções, o fato é que ninguém conseguiu chegar lá. E a tarefa agora é (pro)positiva, aprender com os erros (já que por ora estamos vivos), ter frieza e criar incessantemente”, afirma o advogado Hugo Albuquerque, ligado à sensibilidade negriana. Além disso, não se fazem observações apenas conceituais. Propõe-se ir além das formas convencionais de ação política (sem, contudo, negá-las); compreender a dimensão possivelmente transformadora da cultura e das ações cotidianas; dialogar com grupos às vezes estigmatizados, como os evangélicos.
Ao comentar a votação de domingo, na Câmara, o cientista político Henrique Costa consegue, por exemplo, ver bem mais que um show grotesco. “Poderíamos aprender algo com essa bizarrice e reconhecer que não conhecemos o Brasil, ao invés de continuar achando que esse horror caiu do céu”, adverte ele. Em seguida, indaga, provocativamente: “Como fazer proposta de mudança sem saber do que tratamos, os desafios que a realidade impõe?” E emenda: “O discurso do ‘analfabetismo político’ é, pois, nada mais que elitismo mal disfarçado. É estar comodamente acima da barbárie pedindo ‘mais amor’, enquanto lá embaixo tem milícia, seita evangélica, chacina e linchamento”.
Presidente recém-eleita da Associação dos Docentes da UFRJ (Aduferj), a matemática Tatiana Roque também se debruça sobre espetáculo dos deputados. Ela indaga-se: “Minha família, meus filhos, meu deus, minha pátria. Como isso ganhou tais proporções”? Responde com uma hipótese sofisticada. Para Tatiana, o crescimento do discurso conservador tem a ver tanto com as virtudes quanto com os limites do projeto lulista. “Um mínimo de diminuição da desigualdade, em um país construído sobre o privilégio, com relações sociais calcadas na desigualdade e na exploração, já faz muita coisa explodir. (…) O inconsciente que explodiu o macho-adulto-branco-sempre-no-comando é sim produto das políticas de redução da desigualdade, de inclusão, da radical transformação na universidade. Foi pouco? Foi, mas precisava de pouco pra explodir.”
Tatiana observa, a seguir: transformações libertárias do cotidiano são sempre bem-vindas, mas não bastam. Diz ela: “Organizar essas forças é um passo adiante. E aqui o PT falhou feio, assim como toda a esquerda. Os arcaísmos funcionam tão bem, hoje em dia, porque não há perspectiva de transformação na ordem das relações de forças, no plano de uma nova institucionalidade”. Por fim, a professora provoca novamente. Se “a inclusão da vida no fazer político aparece nas lutas das mulheres, nas causas LGBT e trans, na força dos movimentos de negras e negros”, “então como criar espaços de pertencimento transversais para que tais lutas possam ser mais do que reconhecimento e identidade? Elas não podem ser somente iniciativas por fora do sistema político. Se não encontrarmos um jeito de incluir a subjetividade na política, de criar esses espaços de conexão e de subjetivação coletiva, correremos o risco de entregar para a igreja e para a família todo esse plano pulsante dos afetos, da espiritualidade e dos modos de vida”.
Num comentário ao que Tatiana escreveu, o artista visual e fotógrafo Amílcar Packer mostra que é possível encontrar sentido político transformador em muitas práticas relacionadas ao que sua interlocutora chama de “novos modos de existência, novos corpos e novas sexualidades”. Diz Amílcar: “Há muito a fazer e os processos são mais lentos e complexos do que talvez alguns chegaram/chegamos a pensar. O trabalho das neopentecostais, por exemplo, vem sendo feito há décadas e de maneira molecularizada e presencial (…) Se tem skinhead na Paulista em frente à Fiesp, no dia seguinte pode haver capoeira na esquina com a Augusta, Democracia Corintiana e Periferias contra o golpe” (…) É pouco? Talvez só nisso discorde [de Tatiana], porque é nos detalhes e no “pequeno” que se produz a diferença e que se pode contribuir para a criação desses espaços transversais, pois são espaços do dia-a-dia”.
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Na luta contra o golpe, a surpresa mais inesperada foi o surgimento de um campo comum, reunindo setores de esquerda que se encontravam, havia muitos anos, divididos. Os protestos, que vão se multiplicando e adquirindo enorme capilaridade, reúnem uma galáxia de sensibilidades políticas, movimentos sociais, ativistas anônimos. Mas a quebra de barreiras culturais vai além. Nas últimas semanas, não foi raro ver, por exemplo, militantes sindicais promovendo ações de que estavam afastados há muito. Ocupam espaços públicos, acampam em tendas (em São Paulo, na Praça do Patriarca), organizam cozinhas coletivas. Ativistas de origens distintas, que se encontram nas manifestações, continuam a dialogar em enormes grupos que se formam nas redes sociais, no Whatsapp ou Telegram.
Um novo período vai se abrir, em breve, caso avance o golpe iniciado domingo na Câmara dos Deputados. Não se deve desprezar os riscos de retrocesso, em muitos terrenos. Mas a combinação das tendências apontadas acima parece promissora. Oxalá seja possível organizar, com perspicácia, uma resistência capaz de reduzir o espaço dos golpistas, desmascarar sua hipocrisia, acirrar suas divisões internas, levá-los a impasses – e ao fim inviabilizá-los. Oxalá sejamos, ao mesmo tempo, capazes de organizar o debate coletivo necessário para construir um novo projeto de pós-capitalismo.
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