Valentin Katasonov
O Fundo Monetário Internacional estava encarapitado num galho precário que agora lhe foi cortado. O Executive Board do FMI reuniu-se em Washington na noite de 14 de Setembro. A questão mais importante na sua agenda era se aprovava um desembolso de mil milhões de dólares como empréstimo à Ucrânia. E eles assim o fizeram . Excepto o director representante da Rússia naquele organismo, que votou contra o desembolso.
Isto não foi um acontecimento habitual, mas sim algo que terá um impacto, em primeiro lugar e acima de tudo, sobre o destino do Fundo Monetário Internacional.
O dinheiro em causa é parte de um acordo do FMI no sentido de proporcionar à Ucrânia fundos de empréstimo no valor de US$17,5 mil milhões, sob um programa de quatro anos para impulsionar a economia ucraniana que foi criado com a contribuição activa do FMI. O financiamento estrangeiro àquele programa, incluindo o empréstimo do FMI, totaliza US$40 mil milhões. Sob este programa Kiev recebeu sua primeira prestação de US$5 mil milhões, seguida pela segunda (US$1,7 mil milhões) e estava à espera de novos desembolsos. Contudo, o terceiro desembolso, aguardado para o fim de 2015, nunca chegou. O processo acabou numa travagem.
A explicação oficial centrou-se em torno da afirmação de que a Ucrânia era incapaz de cumprir seus compromissos. Isto era especialmente verdadeiro quanto a várias reformas prometidas dos sistemas fiscal, de segurança social, taxa de serviços fornecidos pelos negócios do sector comercial e assim por diante. O FMI também mencionou a falta de progresso na privatização, no combate à corrupção, etc. Esta lista de reclamações tem sido actualizada e modificada quase a cada mês.
Para registo: a Ucrânia até à data conseguiu sacar um total de aproximadamente US$20 mil milhões do FMI (desde 1994). Uma olhadela à documentação daqueles anos mostra que a Ucrânia nunca cumpriu plenamente suas obrigações, mas o dinheiro do FMI continuou a ser despejado. Assim, alguma outra coisa deve estar em curso.
Quando a Ucrânia se tornou um assunto quente, no princípio de 2014, os EUA começaram a utilizar Kiev para pressionar a Rússia – e mudanças radicais começaram a acontecer na vida do FMI. O Tio Sam é o maior "accionista" do Fundo (ele controla uma maioria de bloqueio no capital e o poder de voto desta instituição financeira internacional) e com absoluta desvergonha começou a empregar o FMI como uma ferramenta para promover a sua própria política ucraniana. A decisão do FMI de emitir o seu empréstimo mais recente no princípio do ano passado foi tomada sob a pressão sem precedentes do seu maior "accionista". Mas aquela decisão era contra a lei e todos os membros do Executive Board do Fundo, incluindo a sua directora-gerente Christine Lagarde, sabiam isso.
Antes de mais nada, a oferta anterior do FMI em 2014 de estender crédito à Ucrânia já não estava em vigor. As razões para isso eram muito simples – o tomador do crédito não merecia confiança. Alguém poderia ter pensado que isso encerrava o capítulo sobre o relacionamento do FMI com o seu cliente. Esta fora a resposta do FMI a muitos países durante décadas. Mas algo sem precedente aconteceu: a este cliente insolvente foi oferecido um novo acordo de empréstimo na Primavera de 2015, em termos muito mais favoráveis do que os anteriores.
O segundo problema, o qual é ainda mais significativo, é o facto de que não é permitido ao Fundo emitir empréstimos por razões políticas. As regras para esta organização estão escritas claramente a branco e preto: não são concedidos empréstimos a países onde estão a ser travadas guerras. Mas seria preciso ser cego para negar que uma guerra sangrenta estava a devastar a Ucrânia na Primavera de 2014. Contudo, o maior "accionista" do Fundo ordenou à sra. Lagarde e a outros responsáveis do FMI que procedessem cegamente. E este foi o ambiente no qual foi tomada a decisão acerca de um acordo de empréstimo à Ucrânia.
O FMI sempre foi uma instituição politizada e uma ferramenta importante da política externa dos EUA. Contudo, tanto Washington como o Fundo observavam padrões mínimos de decoro, actuando dentro de regras que haviam sido aprovadas formalmente por todos os membros da organização. Por vezes tentavam mudar aquelas regras para se ajustarem melhor às suas necessidades, mas faziam-no dentro da estrutura dos procedimentos existentes.
Hoje, qualquer sentido de decoro foi deixado de lado. Um acordo de empréstimo assinado em Dezembro de 2013 entre a Rússia e a Ucrânia expirou no final do ano passado. Aquele empréstimo era de US$3 mil milhões. Nos termos daquele empréstimo, a Rússia utilizou activos do seu próprio Fundo de Riqueza Nacional para comprar Eurobonds emitidos pelo Tesouro do estado ucraniano. Muitos antes da sua data de maturidade, o governo ucraniano – incitado por Washington – começou a afirmar que não reembolsaria o empréstimo e a pedir que Moscovo reestruturasse aquela dívida do mesmo modo que Kiev havia conseguido reestruturar outras dívidas estrangeiras em Eurobonds durante o Verão de 2015.
Mas a referida reestruturação envolvia dívidas de títulos (securities) que haviam sido compradas por investidores privados. A Rússia está numa categoria diferente. A dívida de US$3 mil milhões de Kiev é um exemplo clássico de divida soberana. Kiev estava relutante em admitir isto, tentando equiparar aquela dívida com dívida para com detentores privados de Eurobonds. O FMI pretendia que a disputa entre Moscovo e Kiev não era da sua alçada.
Mas, ao mesmo tempo, Christine Lagarde outros responsáveis do Fundo estavam bem conscientes de que este problema da dívida tinha um impacto sério sobre o futuro daquela instituição financeira internacional. Afinal de contas, uma recusa sem rodeios de Kiev a reembolsar sua dívida a Moscovo significaria um incumprimento total (full-blown default) por parte da Ucrânia. Nessa altura todo o programa para ressuscitar a economia ucraniana, assim como o acordo de empréstimo mais recente, descarrilaria. E isso seria inaceitável, uma vez que o maior "accionista" insiste em que o FMI apoie incondicionalmente o regime em Kiev.
Mas no ano passado Fundo ainda foi forçado a admitir que 2 x 2 = 4 – reconhecendo que o que a Ucrânia deve à Rússia é dívida soberana. Sob pressão de Washington, o FMI tomou além disso um passo adicional. Ele efectuou mudanças revolucionárias nas suas regras de empréstimo, "apenas para a Ucrânia". As novas regras asseguram que ainda é possível continuar a estender crédito a um país mesmo que ele incumpra totalmente dívida soberana. Contudo, foi incluída uma condição de que o empréstimo poderia continuar só se a nação devedora demonstrasse um "esforço de boa fé" em alcançar um acordo com o seu país credor.
Depois isso, prosseguiu tudo sem qualquer tropeço. Em Dezembro de 2015, Kiev declarou oficialmente que não efectuaria pagamentos do seu empréstimo da Rússia. Isto significaria um incumprimento total da dívida soberana da Ucrânia. Mas ninguém no FMI percebeu que isto havia acontecido! Mesmo as principais agências de classificação do mundo – as quais habitualmente ajustam suas avaliações todas as vezes em que um país devedor espirra – "não notaram". [NR]
E Kiev começou a comportar-se com audácia sem precedentes uma vez que sentia estar segura sob a asa do Tio Sam. Assim, começou a afirmar que nunca reembolsaria quaisquer das suas dívidas à Rússia. Não houve sequer a tentativa de fabricar a aparência de que a nação devedora estava a tentar em "boa fé" resolver seus problemas de dívida com o país seu credor. Moscovo levou a questão da dívida da Ucrânia a um tribunal internacional, mas o tribunal dá a impressão de que está a adoptar o seu próprio prazo suave para decidir sobre o assunto.
Não seria exagero dizer que houve uma revolução nas finanças globais no fim de 2015. Ao longo do tempo, ela enviará uma poderosa onda de caos através de todo o sistema financeiro global. Este sistema foi privado das suas regras e linhas orientadoras mais rudimentares que anteriormente haviam salvaguardado os mercados globais evitando a entropia financeira.
No ano passado Christine Lagarde, a directora-gerente do Fundo, não teve vida fácil. Ela está bem consciente de que o niilismo actualmente a prosperar no FMI poderia acabar muito mal para aquela instituição. Ela resistiu à pressão do seu maior "accionista" tão bem quanto pode, mas o Tio Sam recorreu a um método consagrado de pressionar responsáveis públicos.
No ano passado um tribunal francês inesperadamente começou a investigar a sra. Lagarde por possíveis abusos de poder enquanto actuava como ministra das Finanças francesas. Contudo a poeira assentou rapidamente sobre este episódio legal, o qual avisava a directora-gerente do FMI a que concordasse com os "argumentos" apresentados pelo maior "accionista".
Durante alguns meses Lagarde arrastou os pés o melhor que pôde, tentando evitar o pesadelo que no entanto irrompeu em 14 de Setembro na reunião do board do FMI. A razão para a decisão acerca de providenciar à Ucrânia a sua prestação seguinte esteve a ser continuamente adiada não porque Kiev "não estivesse a cumprir plenamente" alguma condição – aquele país ainda não está em posição de cumprir qualquer coisa. Era apenas um bocado de teatro coreografado pela senhora Lagarde. Mas finalmente o director do teatro – Tio Sam – interveio e disse à burocrata para parar com a confusão. O Tio Sam pouco se importava com a "recuperação económica" da Ucrânia mas os EUA precisavam do país (sob o seu regime actual) como ferramenta para fazer pressão sobre a Rússia. Não só coação política e militar como também financeira. O FMI é essencial para tais fins.
O recente comportamento temerário de Washington para com o FMI recorda Heróstrato – o incendiário da lenda da antiga Grécia – a atear fogo ao Templo de Artemis. Durante sete décadas o Fundo foi uma ferramenta útil da política externa dos EUA, mas agora aqueles tempos felizes estão a chegar ao fim para Washington. A vasta maioria dos membros do FMI está farta do domínio total da América. E finalmente esse descontentamento leva ao começo do processo para a reforma do Fundo, especialmente quanto a uma revisão das quotas de capital e das acções com poder de voto assinaladas aos seus países membros. No futuro próximo isto podia resultar na perda pelos Estados Unidos da sua participação maioritária no capital do FMI e do seu poder de voto. Esta não é a espécie de FMI que o Tio Sam precisa.
Não foi a Rússia que levou a maior pancada na sessão de voto de 14 de Setembro do board do FMI. A pancada primária foi infligida sobre o próprio Fundo. Assim como sobre o sistema financeiro global que evoluiu durante sete décadas desde a II Guerra Mundial.
[NR] Sugestão para jornalistas de investigação: comparar a actuação das agências de classificação em relação à Ucrânia e a Portugal. Os media corporativos lusos têm estado omissos a respeito.
Do mesmo autor sobre o assunto:
O desempenho dos actores no teatro do FMIDo mesmo autor sobre o assunto:
O original encontra-se em www.strategic-culture.org/...
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