Jeana Laura da Cunha Santos
Pós-doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
O sistema de credibilidade do jornalismo sempre esteve sob a mira de críticos que, ao longo dos últimos três séculos, não se conformaram com a angulação, abordagem e escolhas temáticas, verbais, de fontes e de enquadramento proposto e implementado pela grande mídia, considerando inicialmente os jornais e revistas e, depois, o rádio, a televisão e a internet.
A crítica que se fazia ao tratamento de fatos, à cobertura de eventos, à narrativa que articula o dia-a-dia com as pessoas a uma vasta e variada maneira de ganhar dinheiro considerava que, apesar de tudo, ainda havia relevância social e veracidade, aspectos fundamentais para que a informação tivesse utilidade e legitimidade.
Talvez nunca, como agora, o jornalismo esteja tão desacreditado, particularmente no Brasil, como uma forma de fazer as pessoas se informarem imediatamente sobre o que se passa a seu redor e o que passa remotamente, mas que impacta a vida cotidiana do cidadão distante. O tratamento diferenciado entre o que o jornalismo brasileiro e o jornalismo de referência de outros países, como The Guardian, El País e The New York Times dão aos eventos políticos e econômicos no Brasil mostra a mediocridade em que se encontra a mídia daqui.
Não é apenas o surgimento das novas plataformas nem o novo cenário ciberespacial, das redes sociais e do também chamado império do efêmero que contribuíram para isso.
A crise não é apenas dos negócios, mas também de uma falta de credibilidade que se dá pelo surgimento de notícias falsas, versões adulteradas, ausência de dados e documentos para comprovar fatos na mesma grande mídia que questiona a notícia falsa… Só que dos outros.
Quando se questiona a avalanche de notícias falsas, critica-se pequenos grupos, mídias chamadas alternativas, redes sociais, pela distribuição, com cunho ideológico e político, de notícias que visam defender interesses aqui e ali como se fossem interesses de todos. E, para isso, forjam-se fatos, alteram-se declarações de fontes, publicam-se entrevistas que não houve, disseminam-se erros de informação de outras mídias com bastante amplificação.
O problema maior das notícias falsas, pelo impacto que causam, seja talvez hoje o da própria grande mídia, ao criar narrativas sem fatos, com fatos hipotéticos, com fontes que não existem, com alteração de dados e com angulação, em alguns casos, quase criminosa, se criminosa não for. A isso não é mais possível chamar de Jornalismo e em nome disso não dá mais para defender a ideia de que ela, mídia, é intocável e não pode responder por seus atos, em alguns casos efetivamente criminosos.
Publijornalismo
A capa e matéria de capa da revista IstoÉ desta semana atestam mais uma vez uma trajetória, nos últimos anos, já tantas vezes discutida e condenada por profissionais sérios e que ainda acreditam na profissão. “O esquema do PT no Ministério Público”, livre criação da revista na edição de 23 de agosto de 2017, só passou a existir quando o MPF voltou seus olhos e apurações para o governo Temer. A revista acusa o Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, de estar a serviço do PT. Certamente a implicância da revista com Janot já ocorre há algum tempo, como atestam outras matérias da IstoÉ. Porém, tal abordagem intensiva da revista coincide com o momento em que o procurador segue com novas investigações, as quais, deduz-se, a revista quer impedir. Mesmo que Janot possa ser questionado, como qualquer integrante do Ministério Público Federal ou de qualquer poder da República, chama a atenção o fato do uso descartável e de acordo com as conveniências de medidas e decisões tomadas pelo Poder Judiciário, criticado quando está “contra nossos interesses” e elogiado quando está “a favor de nós”. Tal aspecto mostra o jornalismo de conveniência, o jornalismo cão de guarda do poder político e econômico, que nada tem a ver com o interesse social, com um projeto qualificado e inclusivo de Nação, com o jornalismo de princípios históricos. Tem a ver com o bolso de poucos, com o interesse de muito poucos e com a defesa estratégica de setores econômicos e políticos antipopulares.
Embora não esteja sozinha, a revista IstoÉ tornou-se paradigmática do pior que há no jornalismo brasileiro, sobretudo na cobertura política e econômica.
Na capa, a revista sintetiza que “Contrariando a força-tarefa de Curitiba, o ainda procurador-geral da República, Rodrigo Janot, monta uma ação paralela à Lava Jato para inviabilizar delações que atingem Lula e favorecer aquelas que podem implodir o PMDB de Temer”. Seria desnecessário dizer que foram ouvidas delações à exaustão – e estimuladas – contra Lula, embora as provas não aparecessem ou aparecessem precariamente, sem profundidade. No caso de Temer, a revista não quer delações contra ele, preocupando-se com a implosão do governo – ou seja, temendo mesmo a veracidade. E mais, sem considerar que não houve nenhuma preocupação da revista quando da possibilidade, que se concretizou, da implosão do governo Dilma, que tinha outra proposta, outros programas sociais e outros ocupantes no primeiro escalão.
A matéria “As manobras petistas na PGR”, assinada por Mário Simas Filho, Diretor de Núcleo da revista – e de absoluta confiança do Diretor Editorial Carlos José Marques –, com a colaboração de Tábata Viapiana, prima por um jornalismo de compadrio entre IstoÉ e o governo Temer, acusando Janot de persegui-lo e a sua equipe e de proteger Lula, Dilma e correligionários. E acusa o MPF de montar uma operação paralela para sufocar a Lava Jato. A revista não leva em conta as finalidades institucionais próprias do Ministério Público Federal e suas atribuições. Ou seja, ao invés de primar pela informação precisa, promove desinformação. E, claro, torce claramente para que a nova Procuradora, Raquel Dodge – que irá substituir Janot em breve – confirme, no novo cargo, o que se viu até agora, ou seja, torne-se alguém que irá aderir ao governo e sepultar as investigações propostas por seu antecessor.
Não é de hoje
É bastante oportuno relembrar o que há mais de 11 anos o renomado jornalista Luiz Cláudio Cunha publicou no Observatório da Imprensa, em texto destinado ao diretor-editorial da IstoÉ, Carlos José Marques, com o título Carta ao Chefe: como a IstoÉ tornou-se IstoEra.
Na carta, enviada em março de 2006, o jornalista, então na revista, relembra as coberturas fakes, os dados falsos, as perguntas inventadas e as respostas de fontes que não existiram, responsabilizando diretamente o Diretor da IstoÉ. No império das notícias falsas, a carta de Luiz Cláudio Cunha – premiado jornalista brasileiro, reconhecido por inúmeras matérias em profundidade como um grande repórter que é – tornou-se uma referência para entender o mundo das notícias falsas produzido nesta nova etapa do jornalismo. Luiz Cláudio lamenta que “vivemos tempos muito estranhos, em que as coisas que precisam ser ditas ficam escamoteadas, camufladas, sussurradas, caladas. Nada se reclama, nada se critica, para preservar amigos, cargos, salários, posições, espaços de poder, enquanto o jornalismo vai se diluindo e dissolvendo na sua incapacidade de autocrítica”. Lembra, na carta, que o editor Carlos José Marques – que continua como Diretor Editorial – propunha alteração de respostas de entrevistados para atender os interesses da revista; publicava fatos que sabidamente não haviam ocorrido; inventava declarações, e por aí vai… Vale a pena ler de novo! E ver a atualidade da carta!
O jornalismo, cujos negócios sempre competiram com a tentativa de obter respeito público geral, submerge num oceano de interesses aos quais se adéquam, a cada instante, os fatos e as versões. A matéria de capa da IstoÉ é mais um tenebroso capítulo de uma história que se afirma: a grande mídia como produtora de enquadramentos fantasiosos, de eventos falsos, de notícias pela metade, especialmente em Política e Economia, para atender os próprios interesses e os de seus sócios, acionistas e anunciantes. Dane-se o povo e a Nação!
Estivesse o Ministério Público Federal no esquema PT não haveria a quantidade de denúncias e apurações que, em muitos casos, beira à perseguição ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E sob o aplauso da grande mídia, e, no caso, muito enfaticamente por revistas como IstoÉ. Quando o olhar do MPF avança em operações e denúncias que atingem o setor que hoje ocupa o Palácio do Planalto, espraiando-se por ministérios e cargos de confiança, parte da grande mídia passa a recuar a acusar o MPF de investigar demais e estar dentro de um esquema favorável ao PT. Nunca na história da republicana houve tanta investigação como nas eras Lula e Dilma, com apoio dos governos dos dois mandatários do PT. Nunca, como nos governos Lula e Dilma, apoiou-se tanto institucionalmente, inclusive com concursos e verbas especiais, investigações a partir de denúncias. Um dever institucional.
Agora, no governo Temer, o esvaziamento de verbas para tais setores coincide com o aumento de verbas e perdão de dívidas que vão do setor ruralista até a grande mídia, entre elas televisões e revistas que se tornaram porta-vozes do golpe, e em nome de seus interesses particulares defendem políticas de exclusão social, de esvaziamento do setor público e do Estado, o qual, na prática, é quem mantém parte significativa das empresas de pé. E depois, quando o Estado não consegue responder em áreas como Educação, Saúde e Segurança, cobram dele uma efetividade que ajudaram a derrubar pelo enxugamento dos serviços, pelo estímulo ao abandono de trabalhadores do setor público, pelos serviços precários oferecidos.
Para a revista, “as delações ainda sem provas concretas que possam comprometer o presidente Temer e seus aliados são aceleradas” por Janot. No entender da IstoÉ, há até mesmo perseguição a Rocha Loures – o homem da mala – e a Aécio Neves. Para o semanário, isto é perseguição. A matéria é, quase toda ela, uma homenagem à Propaganda, praticamente uma peça publicitária disfarçada de jornalismo.
Tal “jornalismo” se assemelha às piores assessorias de imprensa, e assume o papel simples, mas também sem escrúpulos, de trocar informação relevante e útil às pessoas e ao país por algo às vezes claro, às vezes difuso, como verbas publicitárias, apoio a projetos de interesse no Congresso, avanço nos negócios particulares.
O jornalismo de IstoÉ, se é que pode ser chamado assim, traz consequências nefastas ao entorno social; traz clara contribuição e estímulo ao ódio; semeia a ideia, para quem vive os fatos e os produz, de que “é dando que se recebe”, contribuindo para a perpetuação do sistema de corrupção que atravessa a história republicana.