Manuel Carvalho da Silva* - Jornal de Notícias, opinião
Poupa quem pode. E, nesta sociedade, para que haja um grande poupador é necessário apertar o cinto a muita gente. Entretanto, o dinheiro destes grandes poupadores modernos não se encaminha para o investimento, segue "limpinho" para o entesouramento.
Esta semana, ficámos a saber que, entre 2011 e 2014, mais de 10 mil milhões de euros foram transferidos para paraísos fiscais sem investigação e intervenção da Autoridade Tributária, embora esta tenha sido informada desses movimentos. A perda de receita fiscal associada a estas transferências é particularmente escandalosa, pois foi durante aquele período que se abateu sobre os trabalhadores e pensionistas portugueses um brutal aumento de impostos. O Estado, pela mão de quem tinha a responsabilidade de o representar e gerir - o Governo -, converteu-se numa poderosa máquina de redistribuição regressiva de rendimento, cobrando aos mais vulneráveis e deixando escapar os mais poderosos.
Este recente escândalo deu origem a observações sobre números ainda mais preocupantes. De 2010 a 2015, saíram de Portugal um total de 29 mil milhões de euros para paraísos fiscais como as Bahamas, Hong Kong e o já famoso Panamá. Num tempo de crise, saiu riqueza do nosso país o equivalente a mais de 15% do nosso PIB de um ano. Trata-se de um valor superior ao volume total de fundos comunitários (cerca de 26 mil milhões) que Portugal receberá no período 2014-2020.
Muitas vezes, lemos, ouvimos e vemos fortes lamúrias na comunicação social, sobre a falta de poupança nacional e sobre a descapitalização das nossas empresas, fatores apresentados como motivos para o baixo investimento e para a necessidade de venda de ativos estratégicos nacionais a estrangeiros. Afinal, não foi a falta de poupança nacional, normalmente atribuída à generalidade das famílias, o nosso problema, mas sim a fuga do país de rendimentos dos mais ricos e poderosos, que usam as suas empresas para transferir recursos para destinos onde não há qualquer interesse em promover investimento. São indispensável sistemas fiscais eficazes, combate ao secretismo e ao "desleixo" da máquina do Estado, perante os muito ricos.
O uso de paraísos fiscais é reflexo de uma economia global sob domínio da finança e dos seus fluxos, onde o capital circula especulativamente sem limites, escapando ao fisco, amputando o investimento e tolhendo o futuro dos países de onde retira a sua rentabilidade, quantas vezes feita à custa do sacrifício e da pobreza de milhões e milhões de seres humanos.
A montante destas transferências está um sistema financeiro que favorece acumulações desmedidas de riqueza a poderosos, está um poder político que lhes facilita descaradamente o jogo e uma estrutura económica onde os grandes podem esmagar os pequenos à vontade. No fundamental, é a partir de grandes empresas que se fazem aquelas enormes transferências financeiras. Os seus lucros, em muitos casos, são obtidos a partir da imposição de preços abusivos e da manipulação de poderes que detêm no mercado. O dinheiro sai das empresas, entra no sistema financeiro e aí vai passando por uma sucessão de cortinas até que estacione em contas pessoais.
A jusante, observamos a destruição de pequenas e médias empresas e de atividades económicas diversas, observamos a não entrada de milhões e milhões de euros nos cofres do Estado e toda uma sucessão de pressões sobre a maioria dos cidadãos, sempre tratados como suspeitos. No fundo da escala, a pressão sobre o trabalho, tido como a mágica variável de ajustamento. E sempre o discurso das inevitabilidades da precariedade, dos baixos salários e da impossibilidade de não se poder proteger e reforçar o Estado social.
Rechacemos as discussões em torno da legalidade ou ilegalidade destes autênticos roubos. Exijamos exercício da política: uma economia desfinanceirizada; uma refundação da banca e do poder sobre ela; uma afetação do capital que promova o investimento produtivo; e políticas que criem e qualifiquem o emprego e valorizem o trabalho. Exijamos cumprimento da lei, ética e valores morais para todos e uma mais justa distribuição e redistribuição da riqueza. Assim, teremos poupança e investimento em Portugal.
*Investigador e professor universitário