Em entrevista ao Notícias ao Minuto, o embaixador da Turquia em Portugal analisa a situação do seu país.
A Turquia vive momentos conturbados. A guerra na vizinha Síria, a crise dos refugiados e a tentativa de Golpe de Estado do verão passado marcam um país que enfrenta, este domingo, um novo referendo para decidir se concede, ou não, mais poderes ao presidente Erdogan.
O Notícias ao Minuto esteve à conversa com o embaixador da Turquia em Portugal para analisar todas estas situações. Há apenas cinco meses em Portugal, Mehmet Hasan Göğüş é parco em palavras no que à análise política do seu país diz respeito, defendendo apenas que acredita que o povo turco está com o seu presidente. Atitude diferente tem quanto às relações com a Síria, a quem acusa de tentar impor um regime autocrático no país. Acusa, ainda, os seus líderes de terem "sangue nas mãos".
Defensor de que a Turquia é o único país com coragem para estar no terreno a lutar contra o terrorismo, o embaixador defende que transmitimos "uma mensagem errada" aos terroristas se deixarmos de fazer "a nossa vida normal" com medo de ataques.
Chegou a Portugal em novembro de 2016, como embaixador da Turquia em Portugal. Porque escolheu o nosso país para exercer este cargo?
É um pais amigável, com pessoas simpáticas, um ambiente acolhedor. Penso que são motivos suficientes para vir para aqui. Estou a acabar a minha carreira e pensei que seria positivo vir para Portugal e contribuir para o desenvolvimento das relações entre estes dois países.
Ao contrário do que sucede com outros países, Turquia e Portugal têm mantido relações bastante pacíficas. O que torna isso possível?
Historicamente nunca houve confrontos entre Portugal e a Turquia. Somos membros da aliança da NATO, Portugal apoia a nossa entrada na União Europeia, cooperamos com organizações internacionais… São razões suficientes.
Quais são os benefícios da relação entre Portugal e Turquia?
É uma situação de ganhos para os dois lados. Há 10/15 anos iniciámos a Aliança das Civilizações com a Espanha, da qual o presidente Jorge Sampaio foi alto representante da ONU. Ao nível económico, penso que o nosso volume de trocas é de cerca de 1 bilião de dólares, o que não representa todo o seu potencial, podemos cooperar mais nesta área. Nós temos uma vantagem na Ásia Central, Portugal tem uma vantagem nas relações com os países africanos onde se fala português. As nossas empresas podem cooperar nessas áreas. No turismo também estamos em competição mas há muitas áreas em que podemos colaborar.
Será possível escrever a história europeia sem recorrer aos arquivos turcos? Penso que a resposta é evidente
Relativamente à entrada da Turquia na União Europeia, o que está a dificultar o vosso ingresso?
A Turquia sempre fez parte da Europa, independentemente de estarmos na União Europeia ((UE) ou não. Isso é outra história. Mas mesmo que, nas instâncias finais, não sejamos aceites na UE, continuamos a ser um país europeu. Mas deixo uma questão: será possível escrever a história europeia sem recorrer aos arquivos turcos? Penso que a resposta é evidente. Esperamos pela nossa entrada há quase 55 anos, é um período muito longo e isso criou uma grande frustração na opinião pública turca.
Há alguns critérios para entrarmos na UE e em 2005 foi declarado que a Turquia correspondia aos requisitos do Copenhaga Criteria [documento que estabelece se os países reúnem as condições necessárias para serem aceites pela UE]. Nessa altura começámos o nosso processo de adesão mas infelizmente alguns países começaram a apresentar bloqueios, é por isso que ao longo dos últimos sete ou oito anos o processo tem-se prolongado. O que queremos é igualdade de tratamento em relação ao que tem sido pedido a outros países candidatos, até porque vejamos: quais são os maiores desafios que a Europa enfrenta agora? No campo da segurança, o terrorismo; no campo social, as migrações; no campo económico, o envelhecimento da população. Em todos os campos a Turquia é a solução.
Os nossos soldados estão na Síria e somos nós que estamos a lutar no terreno. Há 67 países na coligação internacional mas ninguém se atreve a entrar e a lutar no terreno
Porquê?
Porque temos uma população muito jovem. Metade da nossa população - somos 80 milhões - tem em média 29 anos. Muitos são jovens, dinâmicos, e produtores da economia. Quanto ao terrorismo, estamos a lutar contra quatro organizações terroristas ao mesmo tempo, os nossos soldados estão na Síria e somos nós que estamos a lutar no terreno. Há 67 países na coligação internacional mas ninguém se atreve a entrar e a lutar no terreno. E foi graças ao exército turco que conseguimos salvar 2 mil quilómetros quadrados da área da fronteira do Daesh.
E quanto às migrações, os países europeus têm sido incapazes de parar os fluxos migratórios. E a 18 de março de 2016 estabelecemos um acordo com a Europa e verificámos que os números caíram drasticamente, graças ao trabalho que realizámos juntos nas nossas fronteiras [para fechar as rotas que traziam à Europa milhares de migrantes e refugiados].
O facto de serem um país dividido internamente – metade asiático, metade europeu – é também um entrave à vossa entrada na UE?
Não acho que seja um problema. Acreditamos que a UE não é uma união geográfica, mas sim uma união de princípios e a prova disso é que há países que, por exemplo, não têm território na Europa e pertencem à União.
A Turquia e a Holanda entraram recentemente em conflito diplomático, depois deste último ter impedido a entrada do ministro dos Negócios Estrangeiros e da ministra dos Assuntos Familiares turcos. O que está na origem desta tensão política?
Temos uma grande comunidade na diáspora a viver em vários países da Europa. Na Alemanha temos aproximadamente três milhões, na Áustria temos 300 mil pessoas, e ainda outras tantas na Holanda e em França. Segundo a nossa constituição, é agora possível aos cidadãos turcos a viver lá fora votarem nas eleições e no referendo. É o seu direito democrático.
Estamos a promover estas eleições com o conhecimento dos países que acolhem os nossos habitantes e se lhe damos damos o direito de votar, temos também o direito de os informar. Não estamos a fazer nada em segredo. Haverá este referendo [no próximo domingo] e os partidos da oposição e o governo estão a tentar explicar em que consiste.
A nossa constituição foi feita em 1980 e após o golpe militar já foi alterada 12 vezes, se bem me recordo. Agora, apenas queremos mudar 18 artigos
O que é que este referendo significa para o país? O que pode mudar?
É um assunto sobre o qual não me quero desenvolver muito. O que posso dizer é que a nossa constituição foi feita em 1980 e após o golpe militar já foi alterada 12 vezes, se bem me recordo. Agora, apenas queremos mudar 18 artigos e há uma grande campanha a decorrer na Turquia. A alteração foi aprovada pelo parlamento mas de acordo com a nossa constituição se esta não receber um certo número de votos a mudança tem de ser decidido pelo povo, em referendo. E por isso é que no dia 16 de abril as pessoas vão votar. São precisos 50 +1 [%] votos para aprovação.
Se o 'sim' ganhar neste referendo isso significa que o presidente Erdogan acumula mais poder?
É um debate que decorre no país, não me quero alongar sobre isso.
Sendo diplomata e trabalhando de perto com a política turca, considera que é difícil ser-se político num país como a Turquia?
Política é política em qualquer parte do mundo.
Golpe de Estado falhou, felizmente, graças à coragem do povo turco, que correu para as ruas
A Turquia foi alvo de uma tentativa de Golpe de Estado no ano passado.
Sim, sabe que existe uma organização terrorista que se chama Fethullah Terrorist Organisation (FETO). Esta organização infiltrou-se em vários estratos sociais, incluindo no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Infiltrou-se no exército, no sistema judiciário e a 15 de julho tentou realizar um Golpe de Estado que falhou, felizmente, graças à coragem do povo turco, que correu para as ruas, ergueu-se contra os tanques de guerra e parte do exército que estava envolvida. Agora, o processo que está em curso é para limpar as estruturas do Estado destes elementos terroristas.
E após um golpe destes como é que um líder, neste caso o presidente Erdogan, consegue voltar a ganhar a confiança do seu povo?
O presidente foi um presidente eleito e chegou ao poder depois de receber mais de 50% dos votos há dois anos. Portanto, foi escolhido democraticamente.
Na cidade de onde sou natural, o número de refugiados é superior ao número de habitantes locais
Algum dia será possível a Turquia chegar a um entendimento para que possa manter uma relação pacífica com a Síria?
A Síria é nossa vizinha. Temos cerca de 910 quilómetros de fronteira com este país e existem famílias divididas do outro lado da fronteira e sempre fomos bastante amigáveis com a população da Síria, mas agora estamos a acolher três milhões de refugiados vindos deste país. Na cidade de onde sou natural, o número de refugiados é superior ao número de habitantes locais. É um grande esforço que fazemos. Gastamos 25 biliões de dólares do nosso orçamento nacional para ajudá-los. Claro que queremos uma relação saudável com todos os nossos vizinhos. Temos tentado persuadir os líderes sírios a executar reformas democráticas, mas o que vemos agora é um regime totalmente autocrático. Aliás, todos viram o que se passou nos últimos dias com aquele ataque químico...
Acredita que o ataque foi perpetrado pelo próprio governo sírio?
Quem mais poderia fazê-lo?
Porque faria algo assim ao seu próprio povo?
Chamam-lhes rebeldes e querem impor o seu regime autocrático sobre todo o país. É esse o seu principal problema.
As pessoas que não tenham sangue nas mãos deviam ter a oportunidade de serem eleitas
O que é necessário para que se consiga um clima de paz?
Deve haver eleições livres para que sejam eleitos líderes de forma democrática. E as pessoas que não tenham estado envolvidas [nos conflitos], que não tenham sangue nas mãos, deviam ter a oportunidade de serem eleitas. E deve ficar a cargo dos sírios escolherem o que querem para o seu futuro.
Em outubro passado, os líderes turcos afirmaram ter receio de que este conflito se tornasse numa guerra a nível mundial. Essa preocupação mantém-se?
Claro que há esse risco e é por isso que estamos a fazer o nosso melhor para estabelecer um cessar fogo permanente e foi por isso que começámos esta iniciativa com a Rússia e o Irão porque queremos a paz o mais rapidamente possível. Isso beneficiará a população síria e a de todos os países vizinhos, e será algo positivo para o bem do mundo inteiro.
Relativamente à Rússia, Erdogan e Vladimir Putin estabeleceram recentemente uma aliança para combater o terrorismo. A Rússia acaba de ser alvo de um ataque terrorista, em São Petersburgo. Como vê esta situação?
No que à Turquia diz respeito, nós somos contra qualquer forma de terrorismo, independentemente dos motivos. Condenamos todo o tipo de ataques porque a Turquia sofreu muito com o terrorismo nos últimos 35 a 40 anos. Estamos a lutar contra quatro forças terroristas ao mesmo tempo, combatemos todas as formas de terrorismo sem discriminação.
Mas não acha que esta aliança com Vladimir Putin pode aumentar a tensão?
A aliança contra o terrorismo não é só com a Rússia. Há uma luta internacional para combater o Daesh. Existem 67 membros nesta colisão e a Rússia também faz parte.
A Turquia procura igualmente, agora, o apoio dos Estados Unidos nesta luta. Acha que vai consegui-lo com Donald Trump?
Estamos em conversações com os nossos amigos norte-americanos mas a nossa opinião é de que não se pode combater organizações terroristas enquanto cooperamos com outra organização terrorista. O Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) está listado pelos europeus como uma organização de terroristas. As Unidades de Proteção Popular curdas (YPG) e o Partido da União Democrática (PYD) são o mesmo que o PKK. Não há diferenças.
Transmitimos uma mensagem errada aos terroristas se mostrarmos medo e se pararmos de ir a lugares turísticos com medo de ataques
A Turquia é um país muito turístico. Têm sentido o efeito destas guerras na vossa economia?
Houve uma grande quebra no turismo no nosso país no ano passado, sobretudo no número de pessoas que visitam o país, porque em 2015 estávamos no sexto lugar do ranking, altura em que recebemos mais de 40 milhões de turistas e 30 biliões de dólares de receitas. Mas acho que não deveria haver nenhum impedimento porque o terrorismo pode acontecer em qualquer lugar do mundo: aconteceu na Rússia, na semana anterior tinha sido em Londres, antes do ano novo foi em Berlim, no ano novo em Istambul.
Precisamos de mais cooperação internacional e transmitimos uma mensagem errada aos terroristas se mostrarmos medo e se pararmos de ir a estes lugares turísticos com medo de ataques. A vida normal deve continuar e o terrorismo deve ter menos destaque.
E Portugal está em perigo?
Portugal é quinto país mais seguro, de acordo com as estatísticas. Não vejo nenhum perigo eminente aqui.
Fonte: Noticiasaominuto
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