Transcrevemos a seguir a introdução da obra “Tribalismo Indígena – Ideal comuno-missionário para o Brasil no século XXI” (1977), na qual Plinio Corrêa de Oliveira denuncia profeticamente o que se está pretendendo aprovar no Sínodo Pan-Amazônico que se transcorre nestes dias no Vaticano.
- Plinio Corrêa de Oliveira
Aproveitando o mês de férias, um turista recostado em cômoda poltrona de hotel cerra os olhos para uma sesta, no esparramado far-niente de uma estação de repouso. Suavemente, deixa ele rolar a memória à procura de recordações que distendam e convidem ao sono.
Mas a imaginação é quase sempre caprichosa. E todo capricho, por natureza, é teimoso. As imagens que se lhe apresentam — lá sabe o turista por quê, talvez em razão da bela mata que se vê ao longe — são fotos, audiovisuais, filmes que viu em diversas ocasiões, sobre os índios, seus costumes, suas moradias, seus ritos de festa, de luto e de guerra.
O candidato à sesta consegue escapar, por fim, à perseguição indígena, pouco propícia à distensão. E de pálpebras baixadas, na insistente procura do sono, vai fazendo emergir da memória, mansa e suavemente, a lembrança de alguma grande cidade do Ocidente: Paris, Veneza, Roma, Londres ou Nova York. Se não, São Paulo, Rio ou Buenos Aires.
Nosso turista se distende, sente que o sono se vai acercando. Mas, por seus ouvidos a dentro penetra o que dizem pessoas próximas, instaladas em um grupo de cadeiras no mesmo salão do hotel. São duas as vozes que conversam.
Por rara coincidência — telepatia? — o tema da prosa parece um comentário aos primeiros quadros selváticos que haviam importunado o infeliz caça-sesta. Uma voz indaga:
— Qual é, então, o tipo de conglomerado que deve servir de modelo para o habitat humano: a taba ou a grande cidade?
Entre surpreso e indolente, o turista se pergunta, ainda de olhos cerrados, qual a pessoa que levanta uma questão cuja inevitável resposta é banal, à força de tão óbvia.
Com isto não perde ele a esperança da sesta. A banalidade é soporífera por natureza, quem sabe se o ajudará a adormecer…
Mas, logo em seguida, ouve outra voz, que responde enfática à primeira:
— A tribo é o modelo do futuro! Ela representa para o homem um estilo de ser, pensar, querer e agir, que deve modelar as sociedades em fase de esboroamento do século XX, e sobretudo as sociedades que se formarão ao longo de muitos outros séculos vindouros.
As grandes aglomerações urbanas da civilização de consumo, que ainda hoje encantam ou empolgam tanta gente, representam, pelo contrário, o passado, a decrepitude e a morte. Enfim, tudo quanto deve desaparecer.
O turista desta vez não aguentou. Abriu os olhos à procura do “louco”, e não conseguiu mais dormir.
Entrementes, a voz enfática continuava:
— Não sou só eu que penso assim. No Brasil, o que há de mais moderno na atividade missionária pensa precisamente do mesmo modo. Já ouviu falar nos missionários aggiornati?
— Não. O que vem a ser isso?
— Pois é bom que vá sabendo. Aggiornato vem de giorno, que em italiano quer dizer dia. Aggiornato é, portanto, o missionário que se proclama em dia, atualizado com a Igreja-Nova pós-conciliar.
— E então?
— Os missionários aggiornati querem proteger as populações indígenas, que ainda vivem felizes nas suas tabas disseminadas aqui e acolá no fundo das selvas, contra o risco de serem anexadas pela “civilização” atual. Restos de um imemorial passado, é certo. Mas sobretudo lições vivas para um sapientíssimo futuro…
Na tribo dita selvagem não há mandões nem chefões. O cacique é só um líder-conselheiro. Tudo se resolve com o consenso de todos. Não há, entre os índios, fazendeiros nem colonos, patrões nem empregados, proprietários nem marginalizados, ricos nem pobres. Não há leis, regulamentos, repartições, taxas, impostos, toda essa inferneira que você conhece. Em suma, nada há do que divide, hierarquiza e jugula. A espontânea nudez de ambos os sexos é completa, ou quase tanto. Todos andam inteiramente à vontade pela selva, procurando petiscos para comer: peixe, ave, besouro ou fruta. De volta, repartem com as famílias tudo que pegaram. Ninguém quer ser mais do que ninguém, nem pensa muito no dia de amanhã. É, enfim, o paraíso na terra.
Sem estranhar o inesperado ditirambo, o interlocutor pergunta:
— E nós? Continuaremos atados a esta vida que levamos?
— Você não percebeu? Também no mundo dos brancos é preciso acabar com esta mania de dinheiro, capital, lucro, luxo, status e desigualdades. O futuro está em dividir tudo por igual, acabar com as competições, as “carreiras”, liquidar as imensas estruturas econômicas, políticas, administrativas e sociais. Dissolver as megalópoles e os países, de modo que venham a formar galáxias de pequenos grupos autônomos, espontâneos, livres, iguais e irmãos. Resumindo, o índio é muito mais um modelo para nós, do que o somos nós para ele.
— É então um desmantelamento geral que você prega?
— Sim. Mas um desmantelamento construtivo, porque dele nascerá um mundo novo.
— E como fazer esse desmantelamento?
— Sei que muita gente já quer isto. E gente grossa. Sábios, pensadores e escritores de renome internacional. Você já ouviu falar em Lévi-Strauss, por exemplo? É um etnólogo famoso, atualmente catedrático da cadeira de antropologia no Collège de France, de Paris. É o líder do pensamento estruturalista em nossos dias. Para ele a sociedade indígena, por ter “resistido à História” e haver fixado a forma de viver do período pré-neolítico, é a que mais se aproxima do ideal humano. E é para esse tipo de sociedade que devemos retornar.
Quando for majoritário o número dos que quiserem isso, será irreversível que vençam. Aliás, nem é preciso tanto. Bastará que, em determinado momento, fique moda querer isto. Quantas revoluções atingiram o topo da vitória porque se fizeram carregar pelos ventos da moda!…
— Mas, afinal, além da sumidade de que você falou, quem o apoia desde já?
— Olhe, eu conheço mais especialmente o que se passa na Igreja, porque sou Padre missionário.
Cruzando as pernas metidas em bermudas, tão curtas que fazem pensar em tanga, o jovem enfático puxa do cigarro uma longa baforada, e continua em tom mais baixo:
— São Padres e Freiras, alguns leigos também, que a gente vai convencendo. São Bispos, muito notadamente. Mas não me pergunte seus nomes.
— Sim, percebo. Vocês são comunistas e não querem encrenca com a polícia.
— Que bobagem! Comunismo é velheira! Ditadura do proletariado, capitalismo de Estado, redes administrativas de dimensões elefantisíacas, tudo isso também tem que acabar. Em certo sentido, somos comunistas, é claro. Mas não paramos aí. Veja, por exemplo, o capitalismo de Estado: coisa ultrapassada, já que não queremos capitalismo nem Estado. Vamos além dessas velheiras.
Definitivamente, o pobre caça-sesta não consegue mais dormir. Quer fugir do pesado noticiário que já lhe dói nos ouvidos, mas a curiosidade o acorrenta. Muitas perguntas lhe assaltam o espírito. É fácil imaginar quais sejam…
Projeto promovido pelo Vaticano da primeira catedral indigenista da Amazônia brasileira [Imagem: Creatos Arquitetura/Divulgação]. |
Para responder a tais perguntas, nada melhor do que ouvir vozes eclesiásticas, e especialmente vozes missionárias, das mais às menos graduadas.
A fim de facilitar ao leitor o trabalho, ao mesmo tempo atraente e complexo, de analisar o que dizem essas vozes, apresenta-se a seguir primeiramente a concepção tradicional da Missão católica; e depois a condensação do que pensam os missionários “atualizados”.
Detenha-se o leitor diante de cada item, e meça com precisão os abismos para os quais convidam. Ouça-os, que pregam o desmantelamento da família e da sociedade contemporânea, a extinção do pudor e a morte de toda a tradição cristã. Ouça-os, que acusam de tirano, opressor, sanguinário e ladrão o branco que aqui veio ter. Que destratam os bandeirantes e missionários dos séculos idos. Que nem sequer poupam com suas críticas a obra sagrada do grande Anchieta, cujo perfil moral quase sobre-humano alcançou junto aos indígenas tão magnífico êxito missionário. Ouça-os, conclamando a juventude dos seminários, dos conventos, do País inteiro, para esse “neocomunismo” tribal, que se ufana de mais comunista do que o próprio comunismo.
Considere essa coorte de demolidores utopistas, e em sua linha de vanguarda dois Bispos: D. Pedro Casaldáliga e D. Tomás Balduíno.
E compreenda, por fim, que este é um perigo real para os índios, mas menos para eles do que para os civilizados. É, em última análise, uma investida de eclesiásticos contra a Igreja. E de civilizados contra a civilização.
O que é o pobre índio em tudo isso? Mais uma vez, um pomo de discórdia, de lutas entre civilizados. Civilizados que querem conservar a civilização, alguns recristianizando-a, outros afundando-a nos erros que a agitam. E outros, ainda, tentando arrasá-la.
* * *
Lido isto, o que fazer?
Resista, brasileiro, a menos que tenha morrido em sua alma a fibra do cristão e do desbravador dos outros tempos.
Se essa fibra tiver morrido, não há mesmo remédio: os demolidores brancos chegarão, num ato de suicídio, a arrasar a obra de seus maiores. Com vantagem, bem entendido, de novas formas de propaganda do imperialismo vermelho.
Será esta uma consequência inevitável de tal situação, uma vez que, mesmo os melhores, não tenham tido mais nem a Fé nem a fibra de antigamente.
Cumpre esperar que até este ponto não hajam caído as coisas. Pois muitas e alentadoras razões há de esperança.
Leitor, interesse-se. Divulgue de todos os modos, em torno de si, o conhecimento da investida “neocomunista”. E lhe caberá a glória de ter contribuído, com sua voz, para o grande brado de alerta que pode salvar o Brasil.
ABIM
ABIM
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