Há discriminações que não precisam de decreto para existir. Instalam-se no quotidiano, repetem-se em silêncio administrativo e tornam-se hábito. Uma delas é a forma como o Ministério da Educação trata os professores que vêm do ensino privado e cooperativo quando chega a hora de contar o tempo de serviço.
Desde logo, parte-se de uma desconfiança de princípio. Ao professor do privado exige-se aquilo que não se exige a outros: que prove, papel a papel, ano a ano, que trabalhou. Declarações, carimbos, assinaturas, escolas que já fecharam, secretarias que mudaram de mãos, processos que se arrastam durante anos. O mesmo tempo de serviço que foi suficiente para descontar para a Segurança Social e para as Finanças parece, subitamente, insuficiente para o Ministério da Educação.
É difícil não ver aqui uma discriminação clara. Quem trabalhou, descontou. Quem descontou, exerceu funções. O Estado sabe perfeitamente onde cada cidadão trabalhou, quanto ganhou e quanto descontou. Bastaria cruzar dados. Bastaria vontade. Mas prefere-se empurrar o problema para cima dos professores, como se fossem suspeitos à partida, obrigando-os a uma romaria burocrática que mais parece digna de um país de terceiro mundo do que de um Estado que se diz moderno e digital.
E quando, finalmente, depois de anos, esse tempo é reconhecido, quando é, já perdeu impacto. Perdeu concursos, perdeu colocações, perdeu oportunidades. O prejuízo não é apenas profissional, é pessoal e familiar. Anos de trabalho tratados como um favor que o Estado concede e não como um direito adquirido.
Como se isto não bastasse, houve ainda quem quisesse acabar com a possibilidade de colocar dúvidas através do SIGRHE. Retirar ao professor o direito de questionar, de pedir esclarecimentos, de corrigir erros. Um sistema que erra e erra muitas vezes, mas que pretendia tornar-se imune à contestação. Não é preciso grande imaginação para perceber que isto não revela desorganização. Revela desinteresse.
Desinteresse pelos professores e, mais grave ainda, desinteresse pelos alunos. Porque um sistema que afasta quem tem experiência, quem conhece a escola por dentro, quem já deu provas no terreno, é um sistema que se sabota a si próprio. Coloca-se muitas vezes quem não é apto, ignora-se a experiência acumulada, fica à porta quem merece e entra quem não merece. Não por mérito, mas por acaso administrativo.
Depois admiram-se da falta de professores. Depois surgem campanhas de emergência, medidas avulsas, discursos inflamados sobre a importância da Educação. Mas continua-se a tratar mal quem nela trabalhou uma vida inteira. Continua-se a confundir rigor com burocracia cega e justiça com papelada inútil.
Contar o tempo de serviço não é um favor. É um dever. E quando esse dever é mal cumprido, o prejuízo não se mede apenas em dias ou anos não reconhecidos. Mede-se na degradação da confiança no Estado, na desmotivação dos profissionais e, em última análise, na qualidade da escola pública.
Mas esta crise não termina no Ministério da Educação. Há uma responsabilidade que raramente é assumida e que importa dizer claramente. As universidades exigiram mestrados como condição quase absoluta para a docência, transformando a formação numa lógica de negócio, cobrando propinas elevadas e empurrando milhares de professores para um investimento pesado, muitas vezes sem retorno. Em vez de garantir qualidade, criou-se uma barreira que afastou candidatos, desmotivou profissionais e contribuiu decisivamente para a falta de professores.
E os políticos aceitaram isto com uma docilidade inquietante. Subservientes às universidades, que tantas vezes são o seu local de acolhimento quando saem dos governos, nunca quiseram afrontar esse poder. Preferiram sacrificar o sistema educativo, fingir que não viam o problema e deixar que a escola pagasse a factura.
O resultado está à vista. Um ministério que não sabe contar o tempo de serviço, universidades que fizeram da formação um negócio e políticos que olharam para o lado. No meio disto tudo, quem perde são sempre os mesmos. Os professores e os alunos.
*Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor
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