quarta-feira, 1 de março de 2017

Eu, Psicóloga | Drogas e doces

Exames de neuroimagem revelam semelhanças entre a compulsão por alimentos calóricos, obesidade e uso de substâncias que causam dependência química



Inúmeras evidências científicas demonstram que o comer compulsivo e o consumo de drogas envolvem circuitos cerebrais com funcionamento semelhante. Essa constatação tem oferecido nova compreensão da obesidade e aberto caminhos para possibilidades de tratamento. Mas, afinal, que circuitos do cérebro são ativados pela adicção – seja de comida ou de substâncias tóxicas?

O sistema neural ativado tanto pela ingestão compulsiva de alimentos quanto pelo consumo de drogas é basicamente o circuito que evoluiu para recompensar comportamentos essenciais à sobrevivência. Em geral, as pessoas são atraídas pelos alimentos porque isso é recompensador e produz prazer. Quando experimentamos prazer, nosso cérebro aprende a associar essa sensação com as condições que o predispõem a isso. Essa memória fica mais forte à medida que, nesse ciclo, a predição, a busca e a obtenção do prazer são repetidas e tornam-se, aos poucos, mais frequentes, criando condicionamento. E as drogas são eficientes nesse processo.

Estímulos naturais como comida ou sexo levam mais tempo para ativar o circuito da recompensa. O condicionamento, porém, estabelece um elo entre a memória, o estímulo e o ambiente. É exatamente isso que a natureza “pretende”: se a ação necessária para atingir uma experiência prazerosa for disparada exclusivamente pelo estímulo em questão, a resposta condicionada será muito ineficiente. Uma vez criada a memória condicionada, a resposta torna-se um reflexo – presente no uso abusivo de drogas e na ingestão compulsiva de alimentos.

Por essa razão, alimentos altamente calóricos são mais propícios a desencadear um desejo compulsivo por comida. Como os caçadores, nem sempre conseguimos uma presa, e alimentos calóricos, com grandes quantidades de energia, contêm um apelo maior: a suposta garantia de sobrevivência. Ao longo do processo evolutivo, fomos compelidos a consumir a maior quantidade de comida que pudéssemos encontrar. E esses estímulos serviam de reforço. Mas, agora, quando abrimos a geladeira, temos 100% de certeza de que vamos encontrar alguma coisa para comer. Nossos genes mudaram pouco, mas em nosso entorno estamos sempre cercados de alimentos com altos teores de açúcar e gordura, que contribuem para o aumento da obesidade.

Crises de desejo

Se Pavlov pudesse analisar o funcionamento do cérebro dos cães que utilizava em seus experimentos, provavelmente teria notado um aumento na dopamina sempre que os animais viam a luz que tinham associado à oferta de carne. A dopamina nos informa sobre o que é importante: pequenos indícios de informação inesperada a que precisamos estar atentos para poder sobreviver – alertas sobre sexo, alimento, prazer, perigo e sofrimento. Ao mostrar certos alimentos a voluntários de uma pesquisa, previamente condicionados, é possível observar um aumento de dopamina no striatum, região do cérebro envolvida nos processos de recompensa e motivação comportamental.

Mas é preciso observar que esse aumento de dopamina só ocorre quando os participantes do estudo, já avisados de que não poderiam comer o alimento, apenas o olham e o cheiram. E esta é exatamente a mesma resposta neuroquímica que surge quando dependentes químicos assistem a um vídeo de pessoas consumindo drogas ou qualquer outra imagem relacionada. A mensagem recebida quando a dopamina é liberada no striatum é a de que é preciso agir para alcançar certa meta, no caso, obter o objeto de desejo.

No cérebro de dependentes de drogas e de pessoas obesas também encontramos um número reduzido dos receptores dopamina D2 no striatum. Talvez essas descobertas revelem que o sistema nervoso está tentando compensar ondas de dopamina liberadas por estímulos contínuos de drogas ou de alimentos. Outra possibilidade é que, de início, essas pessoas talvez disponham naturalmente de poucos receptores, o que pode predispô-las a aumentos crescentes de doenças causadas pela dependência. É interessante notar que encontramos uma correlação negativa entre a disponibilidade de receptores D2 em indivíduos obesos e seu índice de massa corpórea (IMC); ou seja, quanto mais obesa for a pessoa, menos receptores ela tem.
Predisposição a excessos

Parece haver, portanto, indivíduos mais predispostos ao uso de drogas ou a comer demais. Estudos realizados com gêmeos mostram que aproximadamente 50% do risco para as duas tendências é genético. Mas os genes envolvidos começam a atuar em níveis muito diferentes – há variações em relação à eficiência com que metabolizamos certas drogas ou alimentos, à inclinação para nos arriscarmos ou nos engajarmos em comportamentos exploratórios que oferecem riscos mais específicos e no que diz respeito à sensibilidade que sustenta o sistema de recompensas de cada um.

Nos casos de obesidade, algumas pessoas podem se arriscar mais ao comer compulsivamente porque podem ser excessivamente sensíveis à recompensa por alimentos. Um estudo mostrou que a atividade cerebral de alguns obesos aumentava em resposta a sensações nos lábios, boca e língua. Já outros respondem com muito menos eficiência ao registrar sinais internos de saciedade, ou ao responder a eles, sendo assim muito mais vulneráveis aos desejos desencadeados pelas ofertas de alimento do ambiente.

A sobreposição entre dependência e obesidade pode revelar novos alvos para tratamento. Há intervenções farmacológicas ainda não exploradas, como a medicação que aumenta a resposta da dopamina no cérebro. Um desenvolvimento animador é a síntese recente de uma droga administrada oralmente que bloqueia a orexina, um peptídeo que reforça o nível “alto” associado ao consumo de bebidas alcoólicas, e acredita-se que regule sua ingestão. Essa droga poderia ser extremamente útil no tratamento de pessoas que utilizam drogas e comem de forma abusiva. Além disso, devido ao estigma social, tanto a obesidade quanto a drogadicção podem levar o indivíduo a um estado de isolamento, que é muito estressante e desencadeia um círculo vicioso de solidão e autodestruição. Nesses casos, a terapia de grupo pode ser extremamente benéfica.

Injeções de morfina

Quando se fala na associação entre uso de substâncias tóxicas e obesidade, outra área muito promissora de estudo é o uso de imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) em tempo real para ensinar as pessoas a exercitar partes específicas do cérebro. Por esse método, o anestesiologista Sean Mackey, professor do Laboratório de Dor da Universidade de Stanford, e o neurocientista Christopher De Charms, do centro de tecnologia e pesquisas em neuroimagem Omneuron, em São Francisco, treinaram pessoas saudáveis e pacientes com dores crônicas para controlar sua atividade cerebral e modular suas experiências de desconforto. Dessa forma estamos explorando a possibilidade de que se possa usar esse tipo de técnica para ajudar homens e mulheres a controlar a região do cérebro chamada de ínsula, associada ao desejo compulsivo por alimentos e drogas. Os fumantes que tiveram uma lesão nessa área depois de um derrame cerebral parecem perder a vontade de fumar.

Um obstáculo para recuperar comilões compulsivos esbarra numa questão social. Enquanto o usuário de drogas está de certa forma protegido, já que o consumo da droga é ilícito e a substância nem sempre está disponível de forma óbvia, a comida é anunciada e encontrada em qualquer lugar do planeta, nas mais diferentes formas. Uma das intervenções terapêuticas para usuários de drogas, inclusive, é ensiná-los a evitar locais onde seus hábitos são praticados livremente. Mas como fazer isso com comida? É praticamente impossível, o que causa um sofrimento adicional aos obesos, fazendo com que muitas vezes se sintam socialmente excluídos.

Em ratos, verificou-se que se lhes for oferecida uma dieta rica em açúcar e depois for administrado um antagonista opióide chamado de naloxone, pode haver o desencadeamento de carência alimentar semelhante à que ocorre com animais que receberam naloxone depois de repetidas injeções de morfina. Esse resultado indica que a exposição crônica de ratos a dietas com altos níveis de açúcar produz neles dependência física. Nos humanos, ocorre um processo análogo. Dessa forma, verifica-se que intervenções com o objetivo de mitigar os sintomas da retração podem ser benéficas para aqueles submetidos a dietas rigorosas.

Debora Oliveira


Nenhum comentário:

Postar um comentário