Modelos teóricos defendem que a punição pode ser um mecanismo para promover a cooperação na sociedade, mas um estudo demonstrou que a ameaça de castigo nem sempre será a melhor solução.
Um grupo de 225 estudantes na China participou numa espécie de jogo que acabou por colocar em causa uma teoria que apresentava a punição como um mecanismo de promoção da cooperação. Os resultados da experiência apoiada numa adaptação de um conhecido exercício chamado “dilema do prisioneiro” mostram que, afinal, a ameaça de castigo pode ser pouco eficaz como incentivo à cooperação. O estudo foi publicado na última edição da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
A cooperação tem um papel essencial nas sociedades e na evolução (e sobrevivência) da espécie. Foi (e é) preciso que em determinadas situações as pessoas abdiquem do inato egoísmo para que a sociedade funcione. Pode parecer estranho para muitos e óbvio para outros tantos, mas, segundo Darwin, os seres humanos serão inerentemente egoístas para aumentar as hipóteses de sobrevivência.
No entanto, em vez disso, muitas vezes cooperam para alcançar um objectivo comum. Esta cooperação, que mantém as sociedades, desperta há muito tempo o interesse dos cientistas. Porque e como decidem as pessoas cooperar? Em vários estudos realizados até agora, concluiu-se que o castigo é uma forma de levar as pessoas a ser cooperantes na sociedade. Esse é um dos mecanismos. Outro será a relação de reciprocidade social.
Uma equipa internacional de investigadores liderada por Marko Jusup, da Universidade de Hokkaido, no Japão, e por Zhen Wang, da Universidade Politécnica do Noroeste, na China, estudou estes dois mecanismos no contexto social. Fez mais do que isso, explorou estes dois mecanismos num jogo com 225 estudantes divididos em três grupos.
Marko Jusup, especialista em Matemática Aplicada, resumiu ao PÚBLICO dois dos principais resultados da experiência que “revelou duas características-chave do comportamento humano”. Assim, por um lado, os investigadores perceberam que as “redes sociais – de amizades, conhecimentos, contactos profissionais, entre outras – têm o potencial de estabilizar a cooperação numa situação em que, numa perspectiva puramente racional, não deviam e efectivamente não apoiam um comportamento de cooperação”. Por outro lado, acrescenta o investigador, o estudo mostra também que “o poder destas redes sociais para promover a cooperação e, afinal, limitado”. E explica: “Pensávamos que, ao acrescentar o elemento do castigo, isso iria reforçar a cooperação, mas, afinal, isso não se verificou. Em vez disso, o castigo parece interferir com os benefícios fornecidos pelas redes sociais.”
No artigo, os investigadores arriscam uma explicação para este efeito prejudicial de uma ameaça de punição. Será, dizem, porque em vez de ouvir nesse “aviso” a mensagem “eu quero que cooperes” interpretam-no como “eu quero fazer-te mal”. Marko Jusup confirma que esta terá sido uma das conclusões mais surpreendentes do estudo. “De uma maneira geral, as pessoas (no nosso caso, eram estudantes) parecem deixar de se preocupar com o sucesso do jogo para conseguirem vingar-se de alguém que lhes quer fazer mal. É por isso que, frequentemente, a reacção ao castigo é o castigo. Ou, perante a punição, as pessoas revoltam-se talvez para mostrar ‘desprezo’ em vez de ‘submissão’.”
O jogo com o dilema
Mas, afinal, que jogo foi esse que os investigadores usaram para explorar a relação do castigo com a cooperação? O exercício chama-se “dilema do prisioneiro” e é uma “ferramenta” muito usada em estudos sociais (e não só). Na versão clássica deste jogo, existem dois suspeitos que são presos pela polícia, que os separa e oferece a ambos o mesmo acordo. Os suspeitos podem optar entre confessar e trair o parceiro do crime ou remeter-se ao silêncio. E aqui surgem três cenários possíveis, um dos suspeitos denuncia e o outro não; os dois denunciam; os dois remetem-se ao silêncio. As penas a que serão sujeitos vão ser diferentes, dependendo da decisão tomada de forma isolada, sem o conhecimento do outro. Eis o dilema. Remetemo-nos ao silêncio? E se o outro nos trai? A pena seria muito pesada e só para nós. Traímos o parceiro na esperança de que ele não nos traia, o que nos safaria de qualquer castigo. Denunciamos o parceiro desconfiando que ele também fará o mesmo tendo no horizonte algo que não será a mais dura nem a mais leve das penas. Se os dois se remeterem ao silêncio, a pena será reduzida, mas não sabemos o que o outro vai decidir. Experiências sobre este dilema mostram que uma grande percentagem das pessoas escolhe cooperar com o outro suspeito, o que, neste caso, significa remeter-se ao silêncio.
No cenário desta investigação, os estudantes foram divididos em três grupos (apenas um incluía o recurso ao castigo, ou outros dois diferenciavam-se entre si pelo facto de irem mudando os jogadores ou mantendo sempre os mesmos) e jogaram 50 rondas de um jogo em que ganhavam pontos que, mais tarde, seriam convertidos numa recompensa financeira. Cada estudante jogou com dois opositores e a escolha era feita entre cooperar (que valia mais pontos) ou desistir. Porém, o valor mais alto (oito pontos) era conseguido quando um estudante desistia mas conseguia que os outros dois cooperassem. A cooperação de todos valia quatro pontos e a desistência zero pontos. No terceiro grupo, existia também a opção do castigo que se traduzia num pequena redução dos pontos para o “castigador” e uma redução maior para os castigados.
Esperava-se que os indivíduos percebessem que cooperar lhes traria mais pontos. A opção do castigo pretendia forçar esta cooperação com a mensagem: se não cooperares, vou castigar-te. Em teoria, a ameaça levaria a mais cooperação.
“Desconfie da raiva e do castigo. Estes são susceptíveis de arruinar os relacionamentos (presumivelmente já danificados)"Marko Jusup
No entanto, os cientistas perceberam que no grupo em que os jogadores estavam sempre a mudar, a cooperação foi de (4%) enquanto nos que mantiveram os mesmos participantes atingiu os 38%. Surpreendentemente, no grupo em que existia a opção do castigo o nível de cooperação (que se previa bem superior) ficou-se pelos 37%. O castigo revelava assim um efeito desmoralizador que os fazia perder pontos e revoltar-se, retaliando com a escolha de castigos em vez de optar pela cooperação.
Os resultados abanam o modelo teórico apoiado na eficácia da ameaça de castigo na sociedade, como forma de aumentar a cooperação. Os autores notam, no entanto, que não devem ser extrapolados para leituras que ultrapassassem o cenário desta experiência. Ainda assim, Marko Jusup acredita que devemos testar algumas hipóteses que expliquem estas conclusões. “Por exemplo, se o castigo entre pares, como parece ser o caso no nosso estudo, não resultou, em que situação vai resultar? O castigo existe há tanto tempo, é um dos principais temas da Bíblia, e temos instituições sociais dedicadas exclusivamente a punir os infractores. Deve haver uma situação em que a punição funcione. Levantamos a hipótese de que, a um nível mais básico, para que a punição seja eficaz, deve existir uma assimetria em que o ‘castigador’ seja mais ou menos intocável perante o castigado. Esta hipótese é testável, e pode ser uma parte de nossas experiências futuras.”
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Por falar em futuro, Marko Jusup adianta ao PÚBLICO que está agora a investigar o comportamento perante dilemas de risco colectivo, como as mudanças climáticas. E admite que a sua equipa tem um plano mais ambicioso: “Estamos a tentar derrubar os fundamentos da teoria evolutiva dos jogos, mas a teoria está aguentar-se bem, apesar de todos os nossos melhores esforços. Será emocionante apresentar provas empíricas firmes de que essa teoria é verdadeiramente útil para prever e entender o comportamento humano.”
As conclusões deste estudo publicado agora na PNAS referem-se a um contexto mais geral, da sociedade. E será que também valem para as relações pessoais, profissionais, ou mesmo para as crianças para quem as noções de castigo e cooperação podem ter um papel importante? Sobre as crianças Marko Jusup diz que não se atreve a responder, justificando que não tem filhos nem se sente qualificado para discutir psicologia infantil. Sobre as outras relações deixa um conselho: “Desconfie da raiva e do castigo. Estes são susceptíveis de arruinar os relacionamentos (presumivelmente já danificados). Para que as pessoas trabalhem consigo de forma produtiva, tente abordá-las quando sua raiva diminuir.”
Fonte: Público
ANDREA CUNHA FREITAS
30 de Dezembro de 2017, 7:55