sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Macroscópio - Uma despedida (não tão pessimista assim) de 2016

Macroscópio

Por José Manuel Fernandes, Publisher
Boa noite!
 
Nesta época de balanços, este Macroscópio não pretende – nem podia pretender – proceder ao balanço deste tão surpreendente ano de 2016. Ainda é demasiado cedo para percebermos se alguns dos acontecimentos deste ano são apenas fenómenos pontuais ou se assinalam um começo de um outro tempo. De resto isso mesmo referi hoje em mais um Conversas à Quinta com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto – 1917. Há um século, o mundo mudou para sempre – pois é pouco provável que no final desse ano que foi o da Revolução Russa já se tivesse uma ideia de como os acontecimentos em Petrogrado e Moscovo condicionariam toda a história do século XX. Agora que estamos quase a entrar em 2017 também ainda é cedo para dizer até que ponto o que se passou em 2016 influenciará o future das nossas sociedades democráticas e liberais, mas não deixa de ser uma boa oportunidade para reflectirmos. E é isso que se faz no conjunto de textos que sugiro hoje, com perspectivas naturalmente diferentes, mas que julguei, por regra, desafiantes.
 
Uma das tentações mais recorrentes em alturas destas é encontrar paralelos no passado. Nunca são rigorosos – a História verdadeiramente nunca se repete – mas podem ser educativos. E com que anos se tem comparado 2016? Com 1848, por exemplo, o ano em que um conjunto de revoluções democráticas abalou a Europa. Em 2016's parallels with the revolutions of 1848 o historiador Andrew Roberts faz para a BBC algumas analogias que são curiosas, mas julgo que não muito mais do que isso. Na sua opinião, “The nearest historical equivalent for the year 2016 is 1848, when a series of revolutions broke out one after the other, many of which were similar to each other but each of which was also subtly different, according to local circumstances.” O que uniu essas revoluções e fez com que se sucedessem umas às outras, foi que criaram a percepção de que “establishments could be overthrown”. Aqui também se poderiam assemelhar a alguns dos fenómenos a que assistimos, se pensarmos que foram, antes de tudo o mais, desafios ao status quo, mas as semelhanças ficam-se, para já, por aqui.
 
Já em Was 2016 just 1938 all over again?, a historiadora Julie Gottlieb analisa, no site The Conversation, as semelhanças com esse ano marcante dessa década terrível que a foi a dps anos 30 do século passado. Porém depois de notar que “It is too simplistic to say that history repeats itself”, acrescenta: “And yet, throughout this past year I could not escape the feeling that we have been here before. We share with those who lived through 1938 overwhelming sensibility of bewilderment, suspense, desperation and fear of the unknown. I can’t help but wonder what future historians will make of 2016.”
 

Entrar em terrenos desconhecidos, lidar com um mundo que compreendemos menos. Não há dúvida que, pelo menos neste ponto, muitos estarão de acordo, muitos partilharão a mesma sensação de insegurança. A partir daí as análises podem divergir muito. Nomeadamente sobre o tipo de desafios que a democracia liberal enfrenta. Tomemos por exemplo Fareed Zakaria, que em 2003 escreveu um livro muito influente, O Futuro da Liberdade, e que hoje pensa que America’s democracy has become illiberal, como escreve no Washington Post. O seu argumento é que “The Founding Fathers were skeptical of democracy and conceived of America as a republic to mitigate some of the dangers of illiberal democracy. The Bill of Rights, the Supreme Court, state governments and the Senate are all bulwarks against majoritarianism. But the United States also developed a democratic culture, formed in large part by a series of informal buffers that worked in similar ways. Alexis de Tocqueville called them “associations” — meaning nongovernmental groups such as choir societies, rotary clubs and professional groups — and argued that they acted to “weaken the moral empire of the majority.” Ora, na sua perspectiva, o que está a acontecer é que “we are now getting to see what American democracy looks like without any real buffers in the way of sheer populism and demagoguery. The parties have collapsed, Congress has caved, professional groups are largely toothless, the media have been rendered irrelevant.”
 
John O'Sullivan defende uma perspectiva quase oposta em Populism vs post-democracy, um interessante artigo que publicou na Spectator. O que ele vê é mais o povo a reivindicar o seu direito a exprimir-se por oposição aos “informal buffers”, mas não só, referidos por Zakaria: “The great undiscussed problem of modern democracy is that liberalism without democracy is the system of government towards which the West has been moving for a generation or more. There has been an increasing shift of power from elected and accountable bodies, such as Parliament, to semi-independent bureaucratic agencies that make their own laws (called regulations), to the courts, and in more recent years to European and other transnational bodies. Liberal progressive elites at the top of mainstream political parties went along with this shift of power. It helped them to ignore the apparent wishes of the voters.” Mais adiante, já em forma de conclusão, acrescenta: “‘In short,’ as the Dutch political scientist, Cas Mudde, pointed out some years ago, ‘populism is an illiberal democratic response to undemocratic liberalism. It criticises the exclusion of important issues from the political agenda by the elites and calls for their repoliticisation.’ The populist upsurges in Europe are such a response. The answer is to discuss the issues at their heart.”
 
Continuando a contrastar pontos de vista, vale a pena ler visões quase catastrofistas do que aconteceu quando o povo foi às urnas em 2016 comparadas com outras em que há uma tentativa de entender melhor as motivações dos eleitores. Um texto que talvez possa colocar na primeira categoria é o de Lionel Barber no Financial Times, The year of the demagogue: how 2016 changed democracy. Por um lado, o que o preocupa: “It was a good year for strongmen: Vladimir Putin in Russia; Recep Tayyip Erdogan in Turkey; Xi Jinping, now promoted to “core” leader in China. It was an even better year for demagogues, the crowd-pleasers and rabble-rousers who feed on emotions and prejudice. In the year of the demagogue, several vied for the lead role: Nigel Farage, then Ukip leader, godfather of Brexit and Trump acolyte; Rodrigo Duterte, a brutal newcomer to power, who pledged to slaughter millions of drug addicts to clean up the Philippines; and Trump himself, who constantly marvelled at the size of his crowds.” Por outro lado, a chamada de atenção para os movimentos tectónicos que determinam estes sobressaltos eleitorais: “Something more profound is happening in advanced democracies. The forces at work are cultural, economic, social and political, driven in part by rapid technological change. Artificial intelligence, gene editing, self-driving cars — progress on all these groundbreaking technologies accelerated in 2016. Each is massively empowering (the smartphone has given everyone a voice) but also massively disruptive (the impact of artificial intelligence on jobs has barely begun to be felt). In political terms, Brexit and the Trump triumph highlight the decline of the party system and the end of the old left/right divide.”
 
Já Charles Moore, escrevendo na Spectator, mostra mais simpatia – compreensão? – pelas motivações dos eleitores. Fá-lo num texto com um título que é tão provocador como desafiante: I’m a part of the elite. So why am I cheering for the populist right? Nele escreve, por exemplo, que “The response of elites to their failures is too often to stigmatise the people who complain. Those who protest at immigration levels ten times higher than 30 years ago are treated as racists. Even the ballot box itself is seen as ‘populist’. Remainers argue that the referendum issues were ‘too complicated’ for voters. They seem actively to dislike the idea that our nation should once more be governed by its elected representatives. Having failed electorally, they turn to ‘lawfare’ — preferring a case before the Supreme Court to the direct implementation of what Parliament handed to the people to decide. Voters now believe that their rulers really do not like them very much, so the feeling becomes mutual.”

 
Este choque entre os eleitores e as elites que forma o chamado “establishment” tem vindo a ocorrer sob diferentes formas, como nota Kieron O'Hara na The Conversation, em 2016: the year the establishment met its match, um texto útil por ajudar a distinguir os diferentes tipos de insurgência, um que habitualmente “arrumamos” à esquerda, outro à direita: “Broadly speaking, there are two separate attacks on an apparently settled order – one from within, one from without. Neither has a clear agenda, and each is more oppositional than constructive. It is therefore all the more important to understand what they oppose.”
 
Já em ¿Qué es el populismo? Bernard-Henri Lévy ajuda-nos a pensar, no El Pais, sobre a natureza do fenómeno, concluindo que “Decimos “populismo”. Y es el nombre, finalmente único, de la reacción de las democracias al pánico que les gana y a la desbandada que las amenaza.”
 
Como pano de fundo de muitas destas “insurreições eleitorais” podemos localizar um descontentamento crescente com o rumo da União Europeia. O que me levou a juntar aqui três textos publicados na imprensa portuguesa nos últimos dias onde isso ressalta muito evidente:
  • “Marine Le Pen vai vencer e a França vai sair do euro” é uma entrevista, saída no Público, ao economista italiano Claudio Borghi, que se senta no Parlamento Europeu no mesmo grupo da líder da Frente Nacional francesa e que é reveladora por mostra até que ponto esta sector político acredita que esta União Europeia está condenada, ao mesmo tempo que acredita que, por exemplo, uma saída da Itália do euro acabaria por correr bem: “No fim as pessoas serão inteligentes. Os responsáveis vão sentar-se à mesa e vai sair daí um plano de desmantelamento válido para todos. Diz-se que não há alternativa, mas se um quiser sair e disser, “eu vou, querem que vá e provoque a confusão ou vamos todos e resolvemos os problemas de todos?”.
  • O espectro europeu, crónica de António Barreto no Diário de Notícias, considera que “vivemos hoje os tempos mais perigosos que a Europa conheceu desde o fim da Segunda Guerra. Nem o surto terrorista dos anos setenta é comparável com o momento actual” e que “As forças centrífugas ameaçam tornar-se dominantes. Para ser forte e coesa, a Europa ficou muito aquém. Para ser forte e plural, a Europa foi longe de mais. Em qualquer dos casos, a União parece não estar em condições de resolver os seus problemas. Espera por eleições nacionais em vários países, o que agrava a percepção de que a União não existe e a cidadania europeia é uma ficção”.
  • BCE é uma ameaça maior do que o populismo, texto de Rui Ramos no Observador, é uma reflexão sobre como, na Europa, se procura evitar enfrentar os probleas de fundo com paliativos: “Há anos que o BCE usa dinheiro barato para poupar Estados, bancos e empresas à realidade da falência e à necessidade de reformas. O resultado tem sido perverso. Em 2008, explicaram-nos que o capital financeiro erguera um castelo de cartas. Mas como descrever o actual castelo europeu de dívidas e de défices alimentados pelo BCE? Sabemos como o abuso do crédito acabou da última vez. Irá agora acabar de maneira diferente? O BCE está a gerar na Europa uma espécie de subprime político, cuja ruptura, um dia, poderá precipitar a primeira grande viragem do século.”
 

Tendo de continuar a avançar quando é tanto o nevoeiro talvez conviesse ser mais humilde, e por isso gostei de ler Jeremy Warner no Telegraph, onde nota que 2016 It was the year that almost everyone got wrong – again. Ou seja, não imaginámos que fosse possível passar o que se passou no Brexit e com a eleição de Trump porque vivíamos instalados num falso conforto: “We had come to assume a status quo bias in politics – that when push comes to shove, people will always vote for the devil they know, rather than the deep blue sea – or worse, we had become too metropolitan in our outlook to appreciate the reality of life in the great hinterland of our countries. For this complacency alone, the political/business/institutional establishment deserves its humiliation.”

A questão, agora, deveria saber ler os sinais e tirar as devidas lições, algo que a The Economist (de onde retirei a ilustração com que abri esta newsletter) procura fazer no seu editorial The future of liberalism: How to make sense of 2016. O seu ponto de partido é que “Liberals lost most of the arguments this year. They should not feel defeated so much as invigorated”. O que ponto de chegada é que não faltam oportunidades para usarmos o que hoje nos surge como uma crise como sendo a oportunidade de mudar e de o fazer dentro do sistema que sempre mostrou ter mais capacidade para mudar de forma gradual, pacífica, mas no fim do dia transformando realmente as vidas para melhor: “Liberals must explore the avenues that technology and social needs will open up. Power could be devolved from the state to cities, which act as laboratories for fresh policies. Politics might escape sterile partisanship using new forms of local democracy. The labyrinth of taxation and regulation could be rebuilt rationally. Society could transform education and work so that “college” is something you return to over several careers in brand new industries. The possibilities are as yet unimagined, but a liberal system, in which individual creativity, preferences and enterprise have full expression, is more likely to seize them than any other.”
 
Temos muito que pensar, muito que discutir, muito que avançar se quisermos que 2016, mesmo sendo um ano-charneira, é o que nos reconduz à essência do destino democrático e liberal. Não faltarão ocasiões para o fazermos em 2017, e o Macroscópio promete ajudar.
 
Tenham um Bom Ano Novo, para todos votos de um melhor 2017.
 
 
 
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O VULCÃO SUL AFRICANO

Martinho Júnior, Luanda
 
MEMÓRIA DE PABLO NERUDA
 
1 – Tenho um imenso respeito e admiração por Pablo Neruda: como muito poucos, ele foi capaz de nos transmitir com um elevado poder de síntese, os quadros mais compulsivos da América, expondo a nu e a cru as injustiças históricas que se vão arrastando de século em século, de década em década… o que acontece quando o império se impõe sobre as bandeiras dos povos…
 
Se as suas substantivas referências são uma sensível comoção do que acontece na América Latina, nem por isso ele deixa de ser universal: sinto-o isso a partir de África, por que cá como lá há o mel das imensas riquezas, apenas com oportunidade para “moscas” que não deixam de ser da mesma estirpe, que fazem parte do mesmo agregado, utilizam os mesmos métodos, os mesmos processos, os mesmos vícios, o mesmo padrão de “culturas”, os mesmos rituais, quantas vezes rituais de sangue…
 
Explico: se por lá é a United Fruit Company, aqui são as Anglo American Corporations, as Lonrhos, as De Beers, agora uma Lonmin… o arsenal de mineiras que exploram não a superfície, mas as entranhas mais profundas da terra, sobretudo desde a explosão da Revolução Industrial e seguindo a pista e o génio geo estratégico de Cecil John Rhodes, servidor e inspirador das mais poderosas elites do império!...
 
Por isso recordo Pablo Neruda: a mesma essência, com o colorido de outras latitudes, outras paragens, outras “United Fruit Companies”, outras mãos de obras baratas e sem defesa:
 
“Cuando sonó la trompeta, estuvo
todo preparado en la tierra,
y Jehová repartió el mundo
a Coca-Cola Inc., Anaconda,
Ford Motors, y otras entidades:
la Compañía Frutera Inc.
se reservó lo más jugoso,
la costa central de mi tierra,
la dulce cintura de América.
Bautizó de nuevo sus tierras
como Repúblicas Bananas,
y sobre los muertos dormidos,
sobre los héroes inquietos
que conquistaron la grandeza,
la libertad y las banderas,
estableció la ópera bufa:
enajenó los albedríos
regaló coronas de César,
desenvainó la envidia, atrajo
la dictadura de las moscas,
moscas Trujillos, moscas Tachos,
moscas Carías, moscas Martínez,
moscas Ubico, moscas húmedas
de sangre humilde y mermelada,
moscas borrachas que zumban
sobre las tumbas populares,
moscas de circo, sabias moscas
entendidas en tiranía.
 
Entre las moscas sanguinarias
la Frutera desembarca,
arrasando el café y las frutas,
en sus barcos que deslizaron
como bandejas el tesoro
de nuestras tierras sumergidas.
 
Mientras tanto, por los abismos
azucarados de los puertos,
caían indios sepultados
en el vapor de la mañana:
un cuerpo rueda, una cosa
sin nombre, un número caído,
un racimo de fruta muerta
derramada en el pudridero.
 
PARA ALÉM DO “APARTHEID”
 
2 – Poucos estranharam, interrogaram e se interrogaram por que o fim dum regime tão ignóbil como o do “apartheid” ocorria precisamente no mesmo momento em que desaparecia o socialismo real na Europa e se implodia a União Soviética…
 
Poucos entenderam sem equívocos e em tempo oportuno, o que os arautos anunciavam como “sinal dos tempos”, ou ainda “o fim da história”…
 
Por isso foram poucos os cáusticos em relação às figuras emergentes na África do Sul: De Klerk, Nelson Mandela, Thabo M’Beki…
 
Na oportunidade, acerca deles foram pronunciados louvores ao superlativo, que até hoje perduram: a história, tinha de ser contada à sua maneira por que o que interessava sobretudo era fazer perdurar a lógica capitalista e garantir mão-de-obra barata e submissa, os indispensáveis lucros em benefício das elites sobre a miséria dos povos…
 
Quando me tenho referido às sequelas do colonialismo e do “apartheid”, não o faço de ânimo leve e coloco tão históricas quanto legítimas interrogações:
 
Até que ponto conseguiu ir a ânsia de liberdade, de soberania, de socialismo e de democracia, que fez parte da essência do movimento de libertação, para além do tempo útil em que perdurou o “apartheid”?
 
Que garantias havia para, reforçando-se sem mais constrangimentos a lógica capitalista, conseguir-se vencer o peso histórico do elitismo, quando o processo de sequência da Revolução Industrial continuava a ver garantida na África do Sul a sua “natural” sequência?
 
O elitismo dominou na formação da União Sul Africana, dominou no “apartheid” e continua a dominar na “democracia representativa” da África do Sul!!!
 
Por isso lembro o que publiquei no número 371 do “Actual”, a 8 de Novembro de 2003, quando tive a ousadia de interrogar “Que eternidade para Nelson Mandela?”, com uma fotografia em que face a face o velho Mandela ex-prisioneiro do “apartheid”, admirava a face duma foto do novo, daquele que já era conhecido como líder do ANC antes da longa prisão!
 
Entre o velho e o novo Mandela, preferia sem qualquer dúvida o novo, aquele que tendo ainda tanta vida por viver entregue à causa da libertação em África, estava ainda muito longe de ser “eterno”, reduzindo-se à posição de mais uma “mosca” entre as inúmeras “moscas” que a aristocracia financeira mundial, por via do carácter do seu domínio, foi disseminando por toda a imensidão dos países do Sul!...
 
A associação das “moscas” à tirania e da tirania às explosões sociais, ao sangue dos “condenados da terra”, em 2003 era tão legítima quanto a “guerra dos diamantes de sangue” tinha finalmente acabado em Angola com a morte de Savimbi, um fiel servidor do signo de Rhodes!
 
O velho Nelson Mandela trazia sintomas com os quais eu não me podia identificar, pelo que coloquei-me “contra corrente”: eram previsíveis futuras erupções sociais na África do Sul e noutros países africanos para além dos “diamantes de sangue”, era tudo uma questão de tempo, de maturação e eu era pela paz e pelo socialismo, como hoje!
 
Escrevi eu sintomaticamente então, quando Nelson Mandela veio em “viagem privada” a Luanda em nome, ou refém, de entidades mineiras operadoras em África:
 
“Não sabemos com propriedade que cores, das muitas que compõem o Arco Íris Sul Africano, veio Nelson Mandela trazer a Angola desta feita e na curta viagem que realizou em dias recentes, numa inusitada viagem relâmpago em jacto privado, acompanhado por não identificadas criaturas, que como marcianos pareciam ter chegado pela primeira vez, meio circunspectos, meio acabrunhados, meio curiosos, meio ansiosos, às minas de Salomão… cá na Terra!
 
Nada melhor que um bom diamante para, estabelecendo a refracção da luz, obter-se a sua decomposição, tal como acontece aliás com o arco íris, transmitir com pureza e evidência, uma determinada cor, ou duma forma mais difusa, transmitir um tom dessa cor.
 
A subtileza das subtilezas porém reside no facto da veneranda figura de Nelson Mandela, um líder que para muitos se terá tornado eterno (são assim as campanhas de marketing Global para quem tutela os interesses da aristocracia financeira Mundial), se aprestar a bons serviços pela causa de quem tem vindo a considerar há várias décadas a esta parte que só os diamantes são eternos.
 
A visita dum Nelson Mandela-enquanto-símbolo, parece ter feito uso marcadamente duma determinada filosofia e psicologia, como se per si estivesse a emitir um há muito identificado sinal de quem, impulsionado para a crista duma onda Histórica, não só mas também em relação ao negócio dos diamantes, apesar dos enredos da globalização (é preciso não esquecer as Leis anti-trust que ainda estão em vigor nos Estados Unidos), parece vir querer afirmar com convicção que se está pronto para os novos desafios que se aprontam com o novo século que ora se iniciou e pretende dar provas de boa vontade e diplomacia, para além do publicitado exemplo que constitui o Botswana (que alberga aliás a própria sede da SADC e tem merecido prémios de muito bom comportamento).
 
É evidente que os lobbies globais, cujos executivos estão simultaneamente à frente dos negócios dos diamantes, do ouro e da platina, vivendo desde o berço com a simbologia e as correntes ascendentes que se haviam identificado com um patrono ao nível dum Cecil John Rhodes, visionário e operador da expansão do Império Britânico, procurem agora, em período da segunda Revolução Capitalista, aproveitar as mudanças (entre elas a queda do apartheid) para relançar o modelo, adaptando-o a um interesse em expansão, conforme as actuais características do mercado.
 
Se há cem anos a operação resultou em ganhos importantes no âmbito da própria Revolução Industrial, para a aristocracia bancária que tutela a globalização, como mantém rédea curta sobre a Reserva Federal Americana, a lição foi bem digerida e pode ser aplicada com um enredo similar, adaptando, ao âmbito da actual Revolução Tecnológica e Científica.
 
(…)
O segredo de Nelson Mandela não será assim tão eterno como acontece com a matéria em carbono puro e apostamos forte em como a aristocrática tribo dos Oppenheimer, com cores historicamente identificadas no Arco Íris Sul Africano, vão precisamente fazer o que sempre fizeram (procurando vantagens, ainda que em épocas de crise), dando sequência ao génio pioneiro de Cecil John Rhodes assim como aos artificiosos ditames da Conferência de Berlim: negociar!
 
(…)
A estatura de estadista de Nelson Mandela é de facto um projecto que, bebendo no passado do exemplar conhecido por Cecil John Rhodes, é de tal maneira feito a essa imagem e semelhança que até não teve outra alternativa senão a osmose (a síntese) de sua própria Fundação com a Rhodes Scholarships, num projecto identificado com a Mandela Rhodes Foundation (Arco Íris, a quanto obrigas!).
 
Entre uma suposta tese vivida pela personagem como Cecil John Rhodes e uma suposta antítese na personagem de Nelson Mandela, haverá algo melhor com um século de permeio que uma síntese conforme a que constatamos, que cria a ilusão policromática duma terceira via, com um ponto de partida visível nas iniciativas que assumiu no início da década de sessenta do século passado a Administração de John F. Kennedy nos seus relacionamentos para com África?
 
Não foram sempre os grandes executivos que lideraram (e lideram) os sincronizados sectores dos diamantes, do ouro e da platina, aqueles que demonstraram capacidade de lidar com os dois lados dos muitos contendores típicos do século XX, os que estão mais aptos a essa terceira via, uma via com que se cose também a globalização?
 
Entendemos desse modo que para muitos dos nossos doutos professores e políticos a eternidade de Nelson Mandela-enquanto-Estadista de sinal Democrata é tão simpática como o seu estado de graça de venerando veterano de longas Lutas.
 
Para nós que nos esforçamos por entender a vida e a obra daqueles que ousaram pelos caminhos duma terceira via com plasma de social democracia, parecem-nos legítimas as nossas incertezas e inquietações que psicologicamente, ao menos psicologicamente, vão trabalhando pelas conjecturas de nosso espírito.
 
Parece-nos que as palavras do eminente crítico da política, dos políticos e das mass media Contemporâneos, eminente homem que se identifica com a nova esquerda que dá pelo nome de Ignatio Ramonet, podem ser extravasadas muito para além da social democracia Europeia que ele potencializa como uma autêntica direita moderna em Guerras do século XXI:
 
Para a social democracia que governa sozinha em grandes Países Europeus, a política é a economia; a economia são as finanças e as finanças são os mercados.
 
É por isso que ela se esforça por favorecer as privatizações, o desmantelamento do sector público, as concentrações e fusões de mega-Empresas.
 
Mesmo que adopte aqui e ali leis sociais importantes, no fundo aceitou converter-se ao neoliberalismo.
 
O objectivo já não é fixar objectivos prioritários como o pleno emprego, ou a erradicação da miséria, para responder ao desespero de dezoito milhões de desempregados e cinquenta milhões de pobres da União Europeia.
 
(...)
Aceitou, por vacuidade teórica e por oportunismo, a missão histórica de naturalizar o neoliberalismo. Em nome do realismo, já não quer pôr nada em causa. Principalmente a ordem social.
 
Afinal, por vacuidade teórica, que eternidade para Nelson Mandela?”
 
Em finais de 2003 não tinha ilusões algumas em relação ao “marketing” que já era Nelson Mandela e o vulcão que nas profundezas da sociedade sul africana estava escondido por debaixo do “1 homem, 1 voto”!
 
Confesso, quando também recordo esse texto de há quase nove anos, que me sinto em relação à África do Sul, assim como um vulcanólogo: não tinha ilusões que um dia, bem do fundo das minas, bem do fundo da multi-cultural sociedade sul africana, a explosão ocorreria, como agora ocorreu!...
 
MARIKANA COMO SHARPEVILLE!!!
 
3 – O reactivar do vulcão está aí em Marikana: agora o elitismo está a nu e cru, sem subterfúgios, sem embaixadores, sem “moscas”, sem a cobertura duma geo estratégica como o foi a formação da União Sul Africana, ou a miragem “do Cabo ao Cairo”, ou a ignomínia dum regime como o do “apartheid”… está-se perante uma mui anglo-saxónica multinacional mineira de platiba e um governo que é obrigado a identificar-se e a retratar-se por inteiro perante o seu próprio eleitorado, perante o seu povo!!!
 
Um pouco como um dia Pablo Neruda despiu por via do verbo a bananeira United Fruit Cº, está despida por via do sangue mais uma “majestática” mineira, a Lonmin, face a face aos sindicatos, às greves e ao sangue dos explorados às mãos duma Polícia embaraçada nos equívocos próprios das “terceiras vias” agora em voga entre tantas elites dos países do Sul, inclusive num feito dúbio “emergente” como a África do Sul!!!
 
Haverá ainda alguns que vão evocar a legítima defesa…
 
Haverá outros que evocarão a impraticabilidade das reivindicações dos mineiros e dos sindicatos…
 
Haverá muitas evocações para justificar o que é óbvio: exploração e miséria com mais dum século de impunidades!
 
As elites, a classe dominante substancialmente representada no poder e nos seus mecanismos, mantiveram afinal o mesmo carácter, o mesmo comportamento, quer na formação da União Sul Africana, quer no exercício do “apartheud”, quer agora na “democracia representativa”, apesar das tradições de luta do ANC!...
 
Meio atarantado, meio estarrecido, meio hipotecado, o governo sul africano reage debilmente, sem saber bem o que fazer e como fazer em relação aos seus próprios instrumentos de poder de estado, à sua Polícia e em relação à conjuntura em que historicamente se tem vindo a enredar o ANC!
 
 
"As minas devem redobrar os esforços para promover bons programas sociais.
 
Se podermos realmente trabalhar juntos, num espírito de colaboração (...), podemos também tirar proveito desta tragédia para eliminar muitas das más práticas que persistem no sector de mineiro".
 
Para os ricos, apelos, para os mineiros a longa espera de mais de um século de exploração, em plena miséria, doença, obscurantismo… e as balas com direito televisivo com sinal disseminado por todo o mundo!...
 
O luxo e a arrogância de uns poucos, face à precariedade duma imensa maioria, depois de duas décadas de expectativas perante uma “terceira via” que mais que impotente e indiferente tem demonstrado ser, em função da lógica capitalista, a conveniente representação das elites “de todas as cores”!
 
Foi preciso chegar ao sangue para se entender essas e outras evidências: deslumbrados vinte anos com o “1 homem, 1 voto”, explodiram os subterrâneos profundos do povo, o vulcão das minas e da própria sociedade!
 
Afinal Marikana é hoje, o que foi ontem Sharpeville!
 
O 15 de Agosto de 2012 é como o foi o 21 de Março de 1960!
 
O que mudou entre 1960 e 2012, quando ao “apartheid” político-institucional se deu sequência, em função da lógica capitalista e de suas práticas elitistas, a uma “democracia representativa” de “1 homem, 1 voto”, fórmula mágica com a qual se pretende esconder o “apartheid social” que como um pântano impede alcançar-se a harmonia, o equilíbrio, a justiça e a solidariedade, impede a sublimação do passado de forma a atingir-se um patamar minimamente aceitável que tornaria mais saudável a sociedade e o povo sul africano?!
 
O monstro sobreviveu há mais de um século a esta parte e agora tem a cobri-lo um mal avisado governo de maioria, deformado pelo elitismo de tão pouco escrupulosa trajectória na África do Sul, um governo que, esquecendo-se como me pareceu ter-se esquecido o velho Nelson Mandela em 2003 das lições da história, é agora obrigado, de forma pungente, a tirar a máscara perante o seu próprio eleitorado “de maioria”, perante o seu próprio povo!
 
Que rapidamente aprendam todos os “aprendizes de feiticeiro”: há demasiados cenários sangrentos que se repetem, por que o homem é refractário às lições da história, por que o homem, aquele com poder, interpreta os fenómenos em função das conveniências e dos interesses das elites e não em função dos interesses e conveniências dos povos, por que a lógica capitalista é incapaz de fazer mais, melhor e com o respeito e o amor que a humanidade e o planeta merecem!!!
 
Foto: Capa do Mail & Guardian da África do Sul, semana de 17 a 23 de Agosto de 2012





ONU CONDENA O ESTADO NAZI-SIONISTA

Conselho de Segurança da ONU condena os colonatos de Israel

MPP[*]

O Conselho de Segurança da ONU aprovou no dia 23 de Dezembro passado uma resolução relativa aos colonatos israelenses no território palestino ocupado.

Votaram a favor quatro membros permanentes (China, França, Reino Unido, Rússia) e todos os actuais 10 membros não permanentes (Angola, Egipto, Espanha, Japão, Malásia, Nova Zelândia, Senegal, Ucrânia, Uruguai e Venezuela). Os Estados Unidos não utilizaram o direito o direito de veto, optando pela abstenção.

O MPPM congratula-se com este acontecimento de primeira importância, que deve ser saudado por todos quantos apoiam o povo palestino na sua longa e corajosa luta por uma solução que conduza à criação do seu Estado independente dentro das fronteiras de 1967 e com capital em Jerusalém Oriental.

Com efeito, são inequívocos a este respeito os pontos principais da resolução, em que o Conselho de Segurança: 

  reafirma a inadmissibilidade da aquisição de terra pela força; 

  reafirma a obrigação de Israel, enquanto potência ocupante, de "respeitar escrupulosamente as suas obrigações e responsabilidades legais ao abrigo da Quarta Convenção de Genebra relativa à Protecção de Pessoas Civis em Tempo de Guerra", e recorda a "opinião consultiva proferida em 9 de Julho de 2004 pelo Tribunal Internacional de Justiça"; 

  condena "todas as medidas visando alterar a composição demográfica, o carácter e o estatuto do Território Palestino ocupado desde 1967, incluindo Jerusalém Oriental, incluindo, entre outros, a construção e expansão de colonatos, a transferência de colonos israelitas, a confiscação de terra, a demolição de casas e o desalojamento de civis palestinos, em violação do direito humanitário internacional e das resoluções relevantes";

  expressa "grave preocupação por as continuadas actividades de colonização israelitas estarem a por em gravemente em risco a viabilidade da solução de dois Estados baseada nas linhas de 1967"; 

  recorda a obrigação de Israel "congelar … toda a actividade de colonização, incluindo o “crescimento natural”, e desmantelar todos os postos avançados erigidos desde Março de 2001"; 

  "reafirma que a criação por Israel de colonatos no território palestino ocupado desde 1967, incluindo Jerusalém Oriental, não tem validade legal e constitui uma violação flagrante do direito internacional e um importante obstáculo à realização da solução de dois Estados"; 

  "reitera a sua exigência de que Israel cesse imediata e completamente todas as actividades de colonização no território palestino ocupado, incluindo Jerusalém Oriental"; 

  "salienta que a cessação de todas as actividades de colonização israelitas é essencial para salvar a solução de dois Estados, e apela a medidas afirmativas a serem tomadas imediatamente para inverter as tendências negativas no terreno que estão a pôr em perigo a solução de dois Estados"; 

  "sublinha que não reconhecerá quaisquer alterações às linhas de 4 de Junho de 1967, incluindo no que diz respeito a Jerusalém, que não sejam as acordadas pelas partes através de negociações"; 

  "exorta todos os Estados a distinguirem, nas suas relações relevantes, entre o território do Estado de Israel e os territórios ocupados desde 1967".

É preciso recordar que, de acordo com números fornecidos pela ONU, pelo menos 570 mil colonos israelenses vivem em cerca de 130 colonatos e 100 postos avançados na Margem Ocidental ocupada, e que, sob a direcção do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, entre 2009 e 2015, o governo de Israel promoveu a construção de 11 mil novas casas nos colonatos.

Esta resolução assume ainda maior importância se se tiver em conta que o Knesset (Parlamento de Israel) está actualmente a discutir uma proposta de lei, da autoria do governo, visando legalizar retroactivamente os postos avançados "ilegais" à luz do próprio direito israelense mas que, com flagrante hipocrisia, só se mantêm graças ao apoio e protecção do Estado de Israel. Determinados sectores políticos israelenses, incluindo representados no governo (de que são exemplo os ministros da Educação, Naftali Bennet, e da Justiça, Ayelet Shaked, do partido Lar Judaico), não escondem que encaram a aprovação dessa lei como um passo para a anexação da Margem Ocidental ou pelo menos da sua Área C. A presente resolução do Conselho de Segurança vem reafirmar com vigor a ilegalidade de tais desígnios.

É também de salientar a atitude dos Estados Unidos ao possibilitarem a aprovação da resolução, já que desde a tomada de posse da administração Obama esta é a primeira vez que os EUA não utilizam o veto para impedir a aprovação de uma resolução condenando o Estado de Israel. Recorde-se, a este propósito, que, em Fevereiro de 2011, os EUA vetaram uma resolução justamente sobre a questão dos colonatos e que foi durante a administração Obama, que agora termina, que a actividade de colonização atingiu o seu apogeu. Ainda recentemente Israel foi contemplado pelo seu aliado americano com o maior pacote de ajuda militar alguma vez dado a qualquer país, no valor de 38 mil milhões de dólares.

A presente resolução do Conselho de Segurança não poderá ser revertida e, como se disse, o seu significado é de enorme relevo. A declaração do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, de que não a respeitará, assim como o anúncio de medidas de retaliação contra a Nova Zelândia e o Senegal, proponentes da proposta aprovada, dão a medida da derrota política do Governo de Israel e confirmam a sua atitude de confronto e desafio com o direito e a legalidade internacional. A reacção do presidente eleito dos EUA, de que "depois de 20 de Janeiro as coisas vão ser diferentes", assim como a nomeação recente por Donald Trump para embaixador em Israel de David Friedman, personalidade alinhada com os sectores extremistas do movimento dos colonos e adversário aberto da solução de dois Estados, suscitam fundadas preocupações sobre a evolução ulterior da política dos EUA em relação à questão palestina e, em geral, à situação no Médio Oriente.

Será necessário que prossigam os esforços, as iniciativas e as medidas para impor o respeito da legalidade internacional no que diz respeito à questão palestina.

O MPPM exorta o novo secretário-geral da ONU, António Guterres, a empenhar nesse sentido os seus melhores esforços.

O MPPM exorta o governo português a ter em boa conta a presente resolução nas suas relações com o Estado de Israel, nomeadamente quanto ao repúdio dos colonatos e à recusa das relações económicas com estes, e no apoio por todos os meios ao seu alcance a uma solução para a questão palestina conforme com o direito internacional.

O MPPM reafirma a sua solidariedade com o povo palestino e o seu empenho em continuar a lutar: 

  pelo fim da ocupação israelense, o desmantelamento dos colonatos, do "Muro de Separação" e de todos os instrumentos de usurpação de terra palestiniana; 

  pela libertação dos presos políticos palestinianos das prisões israelenses; 

  pelo fim do bloqueio à Faixa de Gaza; 

  pela criação do Estado da Palestina, com as fronteiras de 1967 e capital em Jerusalém Oriental e o respeito do direito ao regresso dos refugiados palestinianos. 

Lisboa, 25 de Dezembro de 2016 

A Direcção Nacional do MPPM

[*] Movimento pelos Direitos do Povo Palestino e pela Paz no Médio Oriente 

O original encontra-se em www.mppm-palestina.org

Este comunicado encontra-se em http://resistir.info/