O tema do Macroscópio de hoje podia bem ser o da pergunta a que o Observador dedicou hoje o melhor da sua atenção: O que faz uma mãe arrastar os filhos para a morte?, uma trabalho da Rita Ferreira e do Tiago Palma. Ou seja, o tema do dia, o tema que também levou a Alexandra Campos do Público a procurar perceber estas Mães que matam filhos porque acreditam que os poupam a futuro de sofrimento. Tal como podia ser a forma como uma juiza está a dirigir as audiências de um caso muito mediático – Juíza “censurou” Bárbara Guimarães. Associação de Mulheres Juristas preocupada – mas sobre este caso fico-me apenas por uma remissão, para um texto de Isabel Stilwell no Jornal de Negócios que me pareceu especialmente pertinente –Um país onde a justiça trai as crianças: “Uma criança confia numa juíza, que lhe garante sigilo. A conversa é capa de revistas. Que País é este onde a Justiça trai e ataca, sem que ninguém diga nada?”
Mas julgo que as discussões que estes casos suscitam apenas agora começaram. Talvez possa, e deva, regressar a elas mais tarde, como mais “munições”, isto é, opiniões e argumentos. Vou por isso focar-me noutros dois temas onde, sem pretender ser exaustivo, gostava de deixar algumas reflexões: a controvérsia em torno dos voos da TAP a partir do Porto e o regresso do chamado “caso Liliana Melo”.
Começo pela TAP e pelo Porto, até porque esse foi tema do encontro que o presidente da Câmara, Rui Moreira, teve hoje com António Costa (um Rui Moreira que, é bom não esquecer,tem outros dossiers, ou reivindicações, em aberto e que terá de negociar com o Governo). Não vou multiplicar as referências, até porque muitos dos argumentos são semelhantes. Cinjo-me por isso a textos que sintetizam bem o que está em causa.
Do lado dos que defendem que a TAP não deve abandonar as ligações directas entre o Porto e Barcelona, Milão, Bruxelas e Roma o texto que escolhi foi o de Manuel Carvalho, no Público,A Carochinha a voar na TAP. Eis um dos seus argumentos, que questiona as opções de gestão da administração da companhia aérea: “Se transportar directamente 190 mil pessoas para as quatro cidades europeias em causa dá prejuízo, não se percebe como há-de dar lucro enfiá-las num avião da ponte aérea, desembarcá-las em Lisboa e reembarcá-las para Milão ou Roma.”
Já Vital Moreira, que não pode ser acusado se um defensor de Lisboa, e muito menos do centralismo de Lisboa, considerou no blogue Causa Nossa que boa parte do problema começa quando se discute em termos políticos a gestão de empresas privadas ou que têm de competir em mercados concorrenciais. Fê-lo em três posts – Equívoco, Equívoco (2) e Equívoco (3) –, mas julgo que o argumento central está logo no primeiro desses textos, onde lembrava que a TAP não é uma empresa a que o Governo possa dar ordens, sobretudo não é uma empresa a que deva dar ordens: “Mesmo enquanto empresa pública, a TAP era uma empresa que operava num mercado concorrencial, pelo que a sua gestão devia guiar-se por critérios comerciais. Impor a empresas públicas que operam no mercado a realização de operações contrárias à gestão comercial sempre constituiu uma das piores pechas da gestão pública, com pesados encargos para os contribuintes.”
Já Ricardo Costa, no Expresso Diário, defende em O que o Porto nos pode dizer sobre a TAP (paywall) que o caso do Porto “é o exemplo perfeito de um debate entre a autonomia de gestão - que pretende encerrar rotas que defende não serem viáveis - e o interesse estratégico nacional, que pretende consolidar o Porto como centro de turismo europeu.” Quando se souber quem ganhou este debate ficaremos também a saber, caso “as rotas pura e simplesmente fecharem, (…) que o novo acordo [do Governo de Costa] pouco mudou a empresa, a não ser ao nível do discurso político” ou se, caso vençam os argumentos políticos, que “contas e acordos jurídicos à parte, o novo acordo obriga a TAP a estar condicionada a vontade do Estado”.
Enquanto ficamos à espera desta resposta, que pode demorar, mudo de tema e passo, de novo, para a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEHD) sobre o chamado “caso Liliana Melo”, pois este condenou o Estado português a pagar 15 mil euros à mãe a quem foram tirados sete filhos. O caso começou em 2007, envolveu uma mãe de origem guineense que teve dez filhos, sendo que em 2012, por ordem do Tribunal de Sintra, sete deles lhe foram retirados para serem entregues a instituições de acolhimento. Pelo meio houve uma outra ordem para que Liliana Melo aceitasse laquear as trompas, uma operação a que rejeitou submeter-se por ser muçulmana. A história é bem recordada por Andreia Sanches, do Público, que acompanhou o caso desde que se tornou conhecido: está tudo em Tribunal Europeu condena Portugal no caso da mãe a quem foram retirados sete filhos. Nesse texto citam-se alguns dos argumentos do TEDH, nomeadamente que "o recurso à esterilização nunca pode ser uma condição para [alguém] conservar os seus direitos parentais".
Devo dizer que na altura acompanhei este caso com bastante atenção e escrevi uma crónica para o Público, onde então assinava a coluna “Extremo Ocidental”: Liliana e os seus dez filhos, uma parábola sobre o que distingue uma sociedade decente. Passaram três anos mas julgo que o que aí escrevi se mantém actual, pelo que recordo a forma como concluía essa reflexão:
Uma sociedade decente não é uma sociedade com muito "Estado social", muitos serviços públicos de assistência, muitas instituições de acolhimento e muita burocracia. É sim uma sociedade que sabe olhar para os seus vizinhos e ajudá-los, que respeita e valoriza as famílias e que só se intromete no espaço de liberdade dos cidadãos quando isso é mesmo inevitável. Não me parece que numa sociedade decente o Estado e os seus agentes se comportem como neste caso da Liliana.
Na mesma altura Henrique Monteiro também escreveu no Expresso um artigo que ia na mesma direcção, “Como se chamam juízes que roubam filhos a uma mãe?” e que agora recorda em nova crónica, Liliana e a pobreza do nosso Estado. Pequena passagem onde ele recorda a forma como o seu primeiro texto (e um segundo que publicou quando os tribunais portugueses validaram a decisão da primeira instância) foi recebida: “Enche-me de medo recordar a quantidade de pessoas que na altura, nas redes sociais e nos comentários na Internet, me insultaram a mim e a outros para defender a Segurança Social. Lembro-me da quantidade de gente que acha que se pode retirar filhos a uma mãe só porque ela é pobre, ou está desempregada e não consegue – no linguajar dosjuízes, “ter desafogo material”. Enche-me de medo a quantidade de pessoas que nunca põe em causa os critérios do Estado. Foram ideis assim que fizeram deste país o que foi e é – provinciano, salazarista, egoísta, sem alma”.
Hoje, em editorial, também o Público se juntava a este tipo de inuietações, notando a Má sorte ser negra e pobre: “Estamos no século XXI e não na Idade Média, o Estado de direito pressupõe um quadro jurídico assente na igualdade da lei para todos os cidadãos e leis cuja aplicação deve ser feita por tribunais capazes de ponderar a equidade e o equilíbrio social. Infelizmente, sabemos que a Justiça nem sempre é justa, mas é seu dever tentar sê-lo, sendo capaz de reconhecer o erro e emendar a mão. Se não fosse pobre e negra, sofreria Liliana o mesmo calvário?”
Às vezes são histórias como esta, ou como a do que se passou naquela praia de Caxias, ou até o relato de uma sessão de tribunal numa disputa entre famosos, que nos dizem mais e melhor sobre o país que somos – que ainda somos – do que muitos debates políticos. Por isso mesmo lhes deixo hoje este Macroscópio um pouco diferente, certo que estas histórias, e estes debates, não terminaram. São parte da nossa vida e da sociedade em que vivemos.
Tenham bom descanso, melhores leituras, que nos reencontramos amanhã.
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