Começou por ser a casa da família, gente há 90 anos na Guiné, e hoje é também o Hotel Coimbra. Mas quem seguir a pista dos milhares de livros espalhados vai dar a um recanto mágico, o reino de Miguel Nunes.
Uri Baldé e Miguel Nunes
© Leonardo Negrão/Global Imagens
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"Só falo consigo porque me pediu para conversar sobre livros", relembra-me Miguel. Sim, quando lhe perguntei se podia contar a sua história, remeteu-me logo para a mãe, Francelina Nunes, antiga professora, à frente dos negócios da família desde que o marido morreu. Nasceu na aldeia de Cadafaz, no concelho de Góis, e veio para a Guiné quando se casou com o pai de Miguel. "Eram da mesma aldeia do distrito de Coimbra."
Ora aqui está uma explicação para o nome da livraria (e do hotel), outra poderia ser o nosso alfarrabista ter estudado em Coimbra. "Sou licenciado em História da Arte pela Faculdade de Letras de Coimbra, mas acho que tenho prazer mesmo é em ler filosofia", conta. Não faltam nas estantes da livraria, e nas que decoram os corredores e salas do hotel, livros de filosofia, aqui um clássico grego, acolá um dos génios alemães, mas suspeito que este bibliófilo terá os melhores no seu quarto, que mais tarde me mostrará e, correndo o risco de ser inconfidente, me pareceu uma biblioteca.
A história da família Nunes na Guiné é semelhante à de tantas famílias que no século XX trocaram um Portugal pobre por uma oportunidade de vida melhor no então ultramar. "O meu pai veio primeiro, depois o irmão. E montaram em 1928 um negócio de import-exportque existe até hoje." Por isso a loja com porta para a Avenida Amílcar Cabral, e que vende desde escadotes a banheiras, não se chama Coimbra e mantém, isso sim, os dizeres Nunes & Irmão, Lda., em duas tabuletas que imagino serão reconhecidas de imediato por quem tenha vivido aqui antes das mudanças de 1974, quando o Portugal pós-25 de Abril reconheceu a independência proclamada pelo PAIGC em setembro do ano anterior.
O meu pai veio primeiro, depois o irmão. E montaram em 1928 um negócio de import-export que existe até hoje.
Mais tarde, nos anos 1960, prossegue, veio a mãe e assim foi-se renovando uma família que sempre se manteve ligada à Guiné. E é por volta de 2000, quando só ficam em Bissau Francelina, Miguel e o irmão Xia (Alexandre), que surge "esta ideia de ir transformando parte da casa em hotel e este canto em livraria. A gente começa por adaptar um bocadinho. Olha, resulta. Pronto, foi resultando. Depois fomos ampliando".
Casa da família Nunes, também Hotel Coimbra
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As cartas de Amílcar a Maria Helena
Miguel mostra-me livros e mais livros. Há um que se destaca sobre a mesa: cartas de Amílcar Cabral à namorada e futura mulher, a transmontana Maria Helena que conheceu em Lisboa quando estudava Agronomia na Ajuda, curiosamente também nome de bairro de Bissau, aquele onde uma placa frente a uma casa assinala que ali nasceu Ederzito, o Eder na nossa seleção, o homem que em 2016 fez de Portugal o campeão da Europa de futebol. Miguel confirma-me que sim, que naquele 10 de julho houve festa em Bissau e bandeiras de Portugal na rua, mas o que ele quer mesmo, e assim está combinado recorda-me, é falar de livros, uma paixão partilhada.
Apresenta-me Uri Baldé, de Bafatá, que trabalha na livraria. Digo-lhe que já tinha estado a falar antes com o jovem guineense, que me explicou que além de livros em segunda mão também aqui se vendem edições novas. "Sim, sobretudo livros de Direito. Há muitas faculdades de Direito em Bissau e neste momento tenho um contentor com 14 mil livros a caminho num navio. Foram impressos em Portugal", explica Miguel. Corro os olhos pela tal mesa onde estava o livro sobre Amílcar Cabral, assassinado antes da independência, e noto alguns de autores guineenses, outro sobre a história da Guiné, do português Mário Beja Santos. O preço está marcado em francos CFA, moeda da Guiné-Bissau e também do Senegal e de vários países da África Ocidental. Convertido em euros, comento que é caro e o livreiro concorda, mas também acrescenta que a maioria dos livros aqui expostos andam "nos três euros".
E como compra os livros? Aqui? "Não, aqui não. Tenho contactos em Portugal. Os novos são de impressoras, tipografias, como a Porto Editora. Os velhos são falências ou de famílias que têm bibliotecas de pessoas que morreram e depois não sabem o que é que hão de fazer aos livros. E há empresas especializadas que compram e perguntam-se se quero. Um lote de 300 livros pode valer 300 euros, mas se for de três ou quatro mil, cada um ficará a 50 cêntimos."
Preciosidades nunca chegam, tipo primeiras edições. "Estamos a falar de gente que sabe o que faz. O que me vendem é o que não tem mercado em Portugal." Mesmo assim, há remessas surpreendentes. "Isto que está aqui é uma biblioteca com 350 livros de medicina. Só de medicina. Houve uma pessoa que morreu, talvez um médico, e tinha esta grande biblioteca. Ligaram-me e esses senhores disseram: "Olhe, tenho aqui isto, quer?" Quero, com muito gosto. Por exemplo, no outro dia recebi uma biblioteca de legislação portuguesa antiquíssima, com uma encadernação fantástica, que eu até fotografei para guardar, e ofereci-a à Ordem dos Advogados daqui. Eu não quero aquilo para nada e não vou vender aquilo aqui. E vou fazer o mesmo com esta de medicina", diz Miguel. "Quando são livros de religião ofereço às Irmãs de Catió."
O quarto 15 é para D. Duarte
Aponto para as prateleiras e descubro Cartas de Inglaterra, de Eça de Queirós, também O Perfume, de Patrick Suskind, e Ben-Hur, de Lewis Wallace. Continuo a conversa com Miguel, que me diz ter toda a obra de António Lobo Antunes porque um dia chegou num lote, e passamos ao lado de O Grande Livro dos Portugueses, mote para perguntar se ali na livraria, ou no hotel, costuma ficar gente conhecida em Portugal. "Aqui no hotel os turistas são 0% do negócio. Mais facilmente recebemos um bispo, também muitos funcionários de organizações não governamentais ou diplomatas. E há ainda o turismo da saudade, filhos que trazem o pai a ver o país onde fez a tropa", conta Miguel.
"E, claro, temos sempre grande honra em receber o senhor D. Duarte. Fica no quarto 15 e na porta temos um preguinho que serve para pormos a bandeira da monarquia." Pergunto ao alfarrabista português de Bissau se é monárquico. "Sim, claro." Estamos de volta ao escritório, já na Nunes & Irmão Lda. Ao fundo, Francelina Nunes sorri. Ela que com 74 anos já viu passar muita coisa à porta - do general Spínola ao contingente senegalês que em 1998 desembarcou ali perto para apoiar Nino Vieira contra as tropas revoltosas, passando pelos guerrilheiros do PAIGC que proclamaram a independência - não se esqueceu que aquela avenida principal de Bissau já foi da República.
Em Bissau, o DN viajou a convite da EuroAtlantic Airways
Fonte: DN