Adolfina Mavungo fala ao RA sobre como é viver sem o marido, José Marcos Mavungo. A dona de casa e mãe de sete filhos teve de enfrentar outra realidade quando o activista foi preso.
Amarílis Borges – Rede Angola
Como se explica a sete filhos com idades entre um ano e 15 que o pai não vai regressar a casa hoje, ou amanhã, talvez no domingo? Quando pensam que só os ladrões vão presos, como explicar que o pai não roubou mas mesmo assim está na cadeia? A vida de Aldolfina Mavungo mudou a 14 de Março de 2015 quando o marido foi detido em frente à igreja. Hoje é o 366.º dia de José Marcos Mavungo no estabelecimento prisional de Cabinda, agora condenado a seis anos de prisão por crime de rebelião contra o Estado.
É um prisioneiro de consciência, segundo a Amnistia Internacional. É um homem com consciência de que tem de ajudar as pessoas, diz a sua mulher ao Rede Angolanuma entrevista por telefone.
Adolfina, 45 anos, parece uma mulher simples ao telefone. Depois de explicar que o RA ia publicar um artigo a assinalar um ano de prisão do marido, responde: “Ah, sim, deixa só eu entregar esse bebé para falar com calma”.
“Quando vou lá encontro-o sempre com coragem, a consciência dele está livre. Ele aceita este momento de sofrimento e diz: ‘Eu não sei o que posso fazer porque sou inocente, não fiz nada, mas eles querem manter-me aqui na cadeia. Estou só a esperar até que tomem uma decisão'”, conta.
Em casa tem sido um ano de “solidariedade”. “Cortaram o salário do meu marido no mês de Maio. As pessoas aparecem, dão-me alguma coisa”, explica.
José Marcos Mavungo, 53 anos, era um funcionário da petrolífera Chevron quando foi detido por tentar organizar uma manifestação contra a alegada má governação de Cabinda e a violação de direitos humanos. As autoridades tinham como provas panfletos que Mavungo terá alegadamente tentado espalhar pela cidade e uma mochila com explosivos, encontrada na noite anterior à sua detenção e atribuída ao activista.
As organizações South African Litigation Centre, Lawyers for Human Rights, Front Line Defenders, International Commission of Jurists, Amnistia Internacional e o Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias das Nações Unidas criticaram a condenação de Mavungo e pediram a sua libertação imediata.
Questionada sobre o que pensa Mavungo agora, sabendo que a tentativa de convocar uma manifestação o levou a ser condenado em Setembro, Adolfina responde rapidamente: “Ele está sempre a dizer que não vai abandonar esse trabalho de defender o povo, vai continuar até ao fim. Nunca vai abandonar esse trabalho.”
Quando o RA ligou, estava na hora de preparar o jantar do marido. Adolfina vai todos os dias à prisão entregar o mata-bicho, o almoço e o jantar porque a insuficiência cardíaca de Mavungo e a inflamação no fígado obriga-o a ter uma dieta específica.
Tem sido assim a sua vida desde que o marido foi preso: “Quando chega a noite rezo pelos meus filhos, durmo, acordo de manhã, rezo pelos meus filhos, eles vão para a escola”.
Às terças-feiras, quintas e sábados são os dias de visita, então passa algumas horas à tarde a conversar com ele. Ao entregar a refeição, consegue vê-lo, mas não pode falar, a não ser que o guarda permita durante uns minutos. De vez em quando pede a um dos filhos mais velhos para entregar o pequeno-almoço do pai, assim têm a hipótese de vê-lo de longe já que os menores de 18 anos não podem visitar os reclusos.
“Pelo menos nos dias de festa, dia 25 de Dezembro e 1 de Janeiro, deixam as famílias entrar. Então aproveitei para levar todas as crianças, para estarem juntos”, conta.
Adolfina é uma ex-enfermeira, natural da República Democrática do Congo, que deixou de trabalhar para estar com os filhos. Estão casados há quase 17 anos.
“Nos conhecemos quando ele foi estudar no Congo Democrático. Só depois de estarmos em Cabinda é que ele começou esse trabalho como activista. No início, eu sentia medo. Fazia orações dia e noite e pedia a Deus para ele deixar de fazer isso, mas notei que quanto mais eu orava mais ele continuava com esse trabalho, até que foi preso. Só agora entendi que essa é a missão que Deus tinha lhe entregado, porque não gosta de ver alguém a sofrer. Se é para ajudar, ele tem de ajudar. Vou fazer o quê? Estou a aguentar. É a maneira dele. Ele gosta muito de ajudar.”
Sobre a acusação do Ministério Público, Adolfina responde exaltada: “isso é pura mentira”! “Ele faz o trabalho dele honestamente, olha sempre o que a lei diz. Não gosta de falar mal do governo. Quando ele vê algo que não é bom, intervém. No julgamento, o capitão falou que não conhecia o meu marido, foi forçado pelo chefe a assinar o documento. Quando chegou o dia de fazer a simulação, onde ele viu o meu marido, o senhor disse que era outro sítio. Imagine, no julgamento, ele disse que viu o meu marido no [bairro] 4 de Fevereiro, quando chegou lá disse que era no 1.º de Maio. Então isso é mentira”.
Adolfina diz que Mavungo “não tem interesse nesse trabalho, está a fazer só para defender a justiça, que é Deus” e desabafa: “Faz um ano que o meu marido não está em casa, estou vivendo momentos difíceis, sem salário, a depender das pessoas, mas estou a aguentar”.
“O que dói mais é saber que é uma ausência injusta”
Para a filha mais velha de Adolfina e Marcos Mavungo, Cecília, 16 anos, é claro que se trata de “uma prisão injusta”. “O pai é uma pessoa que representa algo muito importante na vida de qualquer filho e a sua ausência sempre causa algum vazio. O que dói mais é saber que é uma ausência injusta. A prisão do meu pai é uma prisão injusta. É um vazio que se acompanha com tristeza”, conta por telefone ao RA.
“O meu pai era a única pessoa que trabalhava aqui em casa porque a minha mãe está desempregada há alguns anos e a sua prisão não só trouxe alguma instabilidade a nível moral, psicológico e emocional na nossa família, como também a nível económico. Ultimamente a minha família vive de pessoas que dão ajuda, dinheiro, para podermos comprar pão”, conta
.
Segundo Cecília fazem falta “as conversas” com o pai, “os conselhos”. “Há coisas que me deixam angustiada porque falar com o meu pai é diferente.”
A irmã mais nova, de um ano e cinco meses, nasceu seis anos depois de Manuelino. “O meu pai fica triste porque não acompanha o crescimento dela, as primeiras quedas, o aprender a andar. Ele às vezes fica com medo de a bebé esquecê-lo porque está só acostumada a estar com a mãe e os irmãos”.
Segundo Cecília a mãe faz um esforço para manter o discurso optimista: “‘O vosso pai está preso, mas não porque roubou. Está preso por questões injustas. Então não têm de ficar tristes. Isso vai passar. É uma fase'”.
“Nos primeiros dias os meus irmãos ficavam a perguntar quando ele ia voltar para casa. A minha mãe tinha esperança de ele voltar logo. Mas ao longo do tempo eles foram se habituando ao novo estilo de vida. Existe momentos de silêncio que só eram preenchidos pelas palavras do meu pai, é um vazio”, continua.
A jovem, que está no 12.º ano, fala ainda do impacto que a prisão de Mavungo teve na escola. “Não deixei isso interferir muito na minha vida académica, mas estudei triste e automaticamente tive alguma dificuldade para entender a matéria. Às vezes fico triste e sinto-me um pouco balançada nas aulas, mas fico firme, de cabeça erguida”.
Recurso
José Marcos Mavungo foi detido com o advogado Arão Bula Tempo, que conseguiu a liberdade provisória a 13 de Maio, com a condição de não sair do país. Até ao momento Tempo não recebeu notificação sobre a data de julgamento.
“Tudo está parado. Não posso sair do país para fazer o tratamento. Tenho problema nos rins e um pouco de desequilíbrio desde que tive uma crise de trombose”, afirmou o activista de 56 anos ao RA.
Há dois meses, teve autorização para ir a Luanda fazer o tratamento para os rins, mas recusa-se a ir a um hospital nacional. “Recusei fazer tratamento em Angola porque a corrupção está institucionalizada. Não consigo sair de Cabinda para visitar os meus pais por razões de insegurança, não vou a Luanda para me tratar. O que iria acontecer? Até hoje, nós, os cabindas, somos tratados como elementos que não têm direito à vida nem à liberdade. Isso fez com que eu não aceitasse ir a Luanda para fazer o tratamento. Prefiro que a natureza possa decidir sobre mim”, disse.
O advogado dos activistas, Francisco Luemba, explica que “a lei prevê que os processos em que haja arguidos presos tenham uma tramitação mais célere”, como foi o caso de Mavungo, “no entanto, só esse princípio não basta para explicar” que o caso de Arão Tempo esteja parado.
Segundo Luemba, “quando da parte do Ministério Público foi deduzida a acusação, não é normal que o juiz leve tanto tempo para proferir o seu despacho. Isto serve como um sinal de alguma autoridade, entidade, eventualmente interessada na situação processual”.
O recurso sobre a condenação de Mavungo é outro processo ainda sem resposta. Foi enviado ao Tribunal Supremo, em Luanda, em Novembro, e desde então ainda não houve “qualquer decisão” que dê conta da sua evolução. Luemba diz: “É raro que um processo que vá em recurso ao Tribunal Supremo faça menos de nove meses a um ano”.
Enquanto está preso, Mavungo distrai-se com um ou outro livro que recebe dos amigos, biografias de Mandela, Gandhi, por exemplo, “desde que sejam autorizados”, diz o advogado. O seu estado de saúde tem sido acompanhado pela médica Carlota Tati, “que se desloca à cadeia quando necessário”.
De acordo com Luemba, Mavungo não se sente seguro para ficar internado no hospital. “No ano passado não ficou [internado] porque pediu para regressar à cadeia devido às interferências das autoridades policias que queriam agir sob a capa de enfermeiros ou médicos. Alguns chegaram a envergar batas do pessoal sanitário para poder entrar na sala em que ele estava”.
“O problema de Marcos Mavungo é uma questão política e da acção das autoridades políticas sobre as autoridades judiciais. Se estivéssemos num país que fosse um verdadeiro Estado democrático de Direito e onde as instituições judicias e os tribunais fossem independentes, certamente o doutor Marcos Mavungo não estaria preso neste momento”, acusa Luemba.
A expectativa é que “o Tribunal Supremo possa transcender as influências das ordens superiores sobre este clima mais ou menos de dependência ou de subalternização dos tribunais para que ajam como órgão verdadeiramente soberano, faça justiça, absolva Marcos Mavungo e o mande em paz e liberdade”.
Leia também a Grande Entrevista com Marcos Mavungo, publicada pelo RA antes da sua condenação.
E a petição da Amnistia Internacional.