7 – A viagem nocturna entre a base naval de Luanda e o N’Zeto (Ambrizete), foi feita em mar chão, sem incidentes ou imprevistos.
A minúscula armada manteve acesas as luzes de sinalização e as lanchas de desembarque lá seguiram à vista umas das outras e com a linha da costa perceptível a estibordo.
Logo pela manhã fizemos a aproximação ao N’Zeto, com proa ao areal e com as unidades a desembarcar em boa ordem.
A minha unidade foi a mais ligeira pois só tínhamos na altura a dotação individual e por isso auxiliou na descarga dos tambores de combustível transportados pela LDM, enquanto os “Corvos ao Embondeiro” faziam sair os blindados da LDG.
O N’Zeto já tinha efectivos angolanos e cubanos chegados por terra que haviam garantido a testa-de-ponte, efectivos esses que haviam constituído uma linha circular à volta da localidade, em posições defensivas; só o comando do dispositivo, a logística e o centro de comunicações estavam instalados na vila.
Algumas acções de reconhecimento foram sendo feitas em mbos os lados do rio M’Brige, antes da chegada da minha unidade e dos “Corvos ao Embondeiro”.
Por isso a minha unidade foi reforçar o cordão defensivo, recebendo alguns velhos BTR-152 K, armados com uma PKT de 7,62 mm, instalada sobre o tecto da cabine do veículo.…
Esses veículos de transporte de tropas eram autênticas “banheiras” com uma pouco fiável blindagem, difíceis de manobrar em estrada e foram baptizados pelos efectivos de origem lingala da FNLA (efectivos das Forces Armées Zaoiroises”), de “calo feiú” (caro feio)…
Preenchemos um espaço junto a uma unidade de tanques do MININT cubano, equipada com não menos velhos T-34…
8 – Foi assim que tive o primeiro contacto com efectivos cubanos em área operacional (antes só tivera contacto com os oficiais da superestrutura da Operação Carlota, que haviam ficado instalados sob guarda da minha unidade na Ilha Cabeleira, em lugar seguro e próximo do Estado Maior das FAPLA, ao Morro da Luz); a família Tavira, que vivia no local, havia colocado à disposição as instalações habitacionais tanto para servir de base camuflada à nossa unidade, como aos Comandantes cubanos, tudo num ambiente discreto, bem protegido e com um dispositivo humano envolvente favorável (os habitantes da Kamuxiba eram praticamente todos aderentes do MPLA)
A guarnição dos tanques T-34 do MININT cubano, haviam cavado buracos e trincheiras avançadas, que serviam também de refúgio face à onda de mosquitos dos capinzais de Ambrizete.
No final de cada período diurno os cubanos fumegavam as trincheiras e os buracos com capim e a pouca lenha seca que se conseguia coligir, mas mesmo assim nada impedia o assalto dos desalmados mosquitos noite dentro.
Já com os BTR-152 K distribuídos, havíamos recebido lonas de cobertura grandes e era com elas que, envolvendo os blindados, nos propúnhamos proteger dos mosquitos, adoptando a improvisada fumigação…
De pouco ou de nada servia e até mesmo eu, habituado aos mosquitos, sofri com as hordas de tão implacáveis inimigos., eu acabaram por nos pôr em pulgas para abandonar definitivamente esse enredo desprezível e partirmos para a manobra ofensiva que se aizinhva.
9 – Tivemos de esperar alguns dias em Ambrizete nessas condições alucinantes, pois estava-se à espera duma jangada motorizada para atravessar o rio M’Bridge com ua parte importante da dotação de blindados disponível para a constituição de duas colunas: a dos “Corvos ao Embondeiro” que seguiria para norte, pela estrada do litoral até tomar o Soio e a outra que se internaria em direcção nordeste até à Casa da Telha, Tomboco e Quiende, na perspectiva de alcançar M’Banza Congo.
Os operacionais da Iafeature à medida de sua retirada iam destruindo todas as pontes na tentativa de impedir o avanço das colunas que mesmo assim acabariam por tomar a norte todo o território angolano…
…A estratégia de recuo das FAPLA e do contra ataque que se seguiu com o desencadear da Operação Carlota, iria resultar em cheio!...
O tempo de espera permitiu-me ir familiarizando com os cubanos que seguiriam integrados na coluna onde eu iria participar.
Recordo um “santiaguero” de nome Basulto, membro do destacamento do MININT cubano, cujo efectivo era constituído por tropa já entrada nos quarenta anos… ele não era novato em África, sendo um dos tripulantes de T-34 que iriam partir para nordeste.
O seu pescoço apresentava pequenas chagas provocadas pelas picadelas dos mosquitos e isso apesar das pomadas que foram distribuídas pelos médicos do contingente cubano.
Depois de cada calamitosa noite sofrida sob o assalto dos mosquitos, o bom do Basulto puxava um tambor de 200 litros de combustível para o meio do arvoredo, subia nele e começava a cantar com voz estridente e de braços abertos, num ritual de desafio face ao verde nada…
Verifiquei nessa altura que os velhos T-34 haviam sido recuperados de guerras desconhecidas (mas que se adivinhavam) em que antes haviam participado; alguns apresentavam mesmo grandes remendos nas suas blindagens, mal disfarçadas com as pinturas novas que às pressas teriam sido feitas…
10 – Antes da chegada da jangada motorizada, efectivos das FAPLA haviam atravessado o M’Bridge e estabelecido um território sob controlo relativamente precário na margem direita e com acesso à estrada, a fim de assegurar a manobra da travessia em jangada dos meios pesados das duas colunas.
Quando tudo estava preparado a travessia foi realizada a coberto da noite, dando imediato início à progressão té alcançar a fronteira norte.
A vanguarda da coluna comum foi preenchida pelos “Corvos ao Embondeiro”, com batedores à frente e eu, no meu BTR-152 K com um efectivo de um pelotão a duas secções reforçadas com dois morteiros 60mm, dava início na sua peugada à coluna que a partir do entroncamento da estrada seguiria para nordeste.
No cruzamento da estrada houve uma escaramuça facilmente vencida pelos “Corvos ao Embondeiro”, tirando partido da superioridade de meios e da qualidade do pessoal.
Mesmo assim, os mercenários e o ELNA haviam feito a implantação de minas na estrada e o BTR-152 K que seguia à minha frente accionou uma delas… além dos danos materiais no blindado, houve vários feridos que foram imediatamente evacuados.
A cena foi filmada por uma equipa da então Televisão Popular de Angola que integrou a coluna que iria em direcção ao Soio.
11 – Vencido o obstáculo do cruzamento de estradas, a coluna partiu-se em duas e a que eu integrava derivou em direcção à Casa da Telha.
A coluna que partiu em direcção a Casa d Telha tinha entre os seus efectivos um Companhia de Comandos formados pela primeira vez pelas FAPLA, que usavam boina azul celeste, efectivos esses que fizeram boa ligação à minha unidade, merecendo nosso catinho, atenção e estímulo.
Com “Alex” a comandar a minha unidade integrada no conjunto de efectivos das FAPLA, ficou decidido que eu comandaria em destacamento avançado a vanguarda da coluna agregando ao BTR-152 K em que eu próprio seguia com meu pelotão, um BRDM 2 tripulado por angolanos e um T-34 tripulado por cubanos… o grosso da coluna seguiria a uma distância aproximada de 5/10km, com ligação rádio disponível em tempo real.
No caso de termos de enfrentar alguma dificuldade na progressão, comunicávamos à coluna e agiríamos em conformidade com o conjunto de decisões a tomar à altura das circunstâncias.
Desconhecia-se até que ponto teríamos pela frente capacidade de combate inimiga, mas a moral era elevada no nosso pessoal, que estava pronto para tudo desde que saíssemos do assalto nos capinzais de Ambrizete.
Na coluna colocou-se o destacamento feminino das FAPLA na retaguarda: sabendo-se da fraca preparação dos efectivos, pedi que esse destacamento fosse colocado atrás, a fim de melhor gerir a capacidade operativa existente na frente da coluna e na pequena vanguarda que passei a comandar.
12 – Depois de algumas horas de marcha preparámo-nos para a entrada na Casa da Telha, onde poderia haver alguma resistência.
Resolvi atravessar a povoação numa velocidade moderada e fazendo fogo de exploração a partir do BTR-152 K, de forma a levantar qualquer tipo de “lebre”…
Eu próprio peguei em minha G-3 de coronha retráctil e à medida da deslocação ia fazendo tiro a tiro para zonas de possível camuflagem ou abrigo de efectivos inimigos que nas proximidades nos pudessem flagelar.
Enquanto isso a PKT do BTR-152 K, entregue a um bom atirador, fazia fogo esporádico de proa e à esquerda (o lado do condutor) em cobertura à progressão.
A tomada da Casa da Telha foi em desfile.
Com a janela do blindado aberta, fui fazendo fogo tiro-a-tiro, até encontrar já próximo do fim da povoação, uma casota de folhas de palmeira secas onde me pareceu ter visto algo a mexer; fiz fogo instantâneo para lá, mas perante meu espanto saltaram, esvoaçando esbaforidas e cacarejantes, algumas galinhas, pelo que não pude resistir ao riso face ao insólito da situação…
…À noite escutaríamos religiosamente as últimas notícias do Angola Combatente, na voz do Comandante Juju: as gloriosas FAPLA haviam conquistado heroicamente, depois de intensos combates, a Casa da Telha!
Parámos 3 km fora da Casa da Telha (saída para Tomboco) e montámos imediatamente um dispositivo improvisado de contenção e emboscada: havia ordens para não se prosseguir na direcção de Tomboco, pois o comando da operação queria levar tudo pelo seguro e hesitava por que desconhecia, a capacidade de resposta do inimigo; a coluna do meio teria de esperar enquanto a ocidente a coluna dos “Corvos ao Embondeiro” tomava o Soio debaixo duma tempestade, apanhando se surpresa o inimigo e provocando-lhe baixas e a leste a coluna das FAPLA que encontrou maior resistência (face ao desvario alucinado do mercenário Callan), chegava a Maquela do Zombo.
13 – Com o dispositivo de emboscada montado dias depois da tomada da Casa da Telha surgiu-nos inopinadamente na estrada e no descampado que tínhamos à frente, uma viatura Unimog pintada da cor camuflada, em estado novo, isolada e em baixa velocidade, indiciando os receios do seu condutor.
Foi dada a ordem de abertura de fogo, que foi feita com um tiro de canhão dum T-34, a que se seguiu a imediata progressão do meu BTR-152 K, do BRDM 2 armado de metralhadora 14,5mm e do tanque que havia aberto fogo.
Verificou-se que o efectivo inimigo que seguia no Unimog fugira em debandada, abandonando-o e a uma carga de armas, explosivos e minas na sua carroceria.
Deduzi dessa escaramuça três coisas: que o veículo estava ao serviço de sapadores, que o facto de aparecer isolado e sem qualquer outra cobertura visível indicava que o inimigo não detinha informação sobre nossa progressão, nem sobre o nosso potencial e capacidade de fogo, estando a procurar minar as estradas a fim de desesperadamente retardar o nosso avanço (provavelmente a fim de se reorganizar), por fim deduzi que era necessário passar a explorar o êxito e não dar mais tempo a qualquer tipo de resposta do inimigo, muitomenos a oportunidade para a sua reorganização.
Utilizei a minha G-3 na tomada do Unimog, apontando e fazendo fogo para locais onde se poderiam esconder inimigos em fuga e dispersos nas imediações e depois de verificar que não havia resistência vi que o Unimog pertencia às Forces Armées Zairoises… fez muito jeito à nossa coluna, pois havia falta de viaturas de transporte de pessoal e o Unimog vinha mesmo a propósito!
No regresso ao local do grande alto, Basulto presenteou-nos com café quente feito no seu tanque e uns goles de bom rum cubano, um cerimonial que manteve quando por qualquer motivo se parava durante a progressão que seria feita até Tomboco.
14 – Tendo comunicado as minhas deduções ao “Alex”, o comando da operação entendeu dar luz verde ao nosso avanço em direcção de Tomboco e, logo que chegou a ordem, partiu-se nessa direcção.
Não houve qualquer incidente no percurso e nas imediações de Tomboco o dispositivo de vanguarda fez um alto de forma a aguardar o resto da coluna a fim de se entrar com todo o peso de fogo na povoação.
Enquanto se esperava mandei descer o pessoal do meu pelotão e ocupar os dois lados da estrada, uma secção à esquerda e outra à direita, com um morteiro de 60mm cada, enquanto o BRDM 2 e o T-34 aguardavam imediatamente atrás.
No BTR-152 K ficaram o atirador da PKT e o condutor, enquanto eu montava o dispositivo, e dava ordens nas imediações.
Tirei partido do traçado da estrada que se apresentava em carrossel terminando em ligeira subida com vários cotovelos em zig zag seguidos: da minha posição dominava esses cotovelos e conseguia ter por detrás o sol da tarde, o que inibia o campo de visão de quem quer que surgisse proveniente de Tomboco.
As secções estavam instaladas também a propósito: a estrada cortava um outeiro, o que permitia que o BTR-152 K ficasse abaixo cerca de 10 metros do nível em que se encontravam as secções apeadas, emboscadas no cpim próximo e prontas para combate.
Por fim ordenei: se houvesse algum veículo a sair de Tomboco, seria eu o primeiro a abrir fogo conjuntamente com a PKT e só depois as secções, mas o fogo deveria ser dirigido para os lados do(s) veículo(s) e expliquei: era necessário mais unidades de transporte para alojar o nosso efectivo e logística…
Fotos:
- Carreira de tiro na ilha Cazanga, com “Alex”, na preparação dos fuzileiros navais angolanos (Dezembro de 1975 e Janeiro de 1976);
- Dois protagonistas dos combates pela independência no Museu de História Militar em Luanda: os Panhard (60 e 90mm) e os BRDM 2;
- O T-34 que desfilou no dia da Vitória em Moscovo, similar aos que integraram as colunas de reconquista do território nacional angolano há 40 nos, em 1975/76.
A consultar de Martinho Júnior:
Prova de amor rigoroso –
Consultas na Net:
Discurso pronunciado por el Presidente de la República de Cuba Fidel Castro Ruz, en el acto conmemorativo por el aniversario 30 de la Misión Militar cubana en Angola y el aniversario 49 del desembarco del Granma, Día de las F AR, el 2 de diciembre de 2005 – http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/2005/esp/f021205e.html