Entendida
como princípio de movimento, impulso ou capacidade para agir, envolvendo uma
dimensão reflexiva dessa atividade, a vontade é o pressuposto fundamental para
o julgamento do valor moral de nossas ações e decisões, na medida em que pode
ser pensada como aptidão para dar início, como instância causal, a uma série de
efeitos, que, por conseguinte, não têm sua fonte de determinação em nenhum
princípio interno ou externo alheio ao próprio querer.
Todo
juízo de imputação tem de pressupor ser o agente capaz de alternativa, de fazer
ou deixar de fazer uma determinada ação. Somente sob tal pressuposto é que se
pode considerar alguém como responsável por aquilo que faz. Admitindo-se um
rígido determinismo das causas naturais, seríamos forçados a conceder que também
todas as nossas opiniões e ações sejam determinadas por causas anteriores, elas
próprias, por sua vez, condicionadas pela efetuação de outra prévia ocorrência
causal, regredindo-se, assim, ao infinito na série das causas.
Portanto,
alguma forma de causalidade da vontade tem sempre que ser pensada, caso faça
sentido o juízo de imputação, pelo qual somos reconhecidos como sujeitos de
nosso agir. Por essa razão, esse é o conceito que se constitui como referência
e pedra angular da moderna reflexão filosófica, na medida em que esta se volta
para a apreciação do valor do agir humano axiologicamente orientado.
Como ensina Albrecht Dihle
(Die Vorstellung vom Willen in der Antike. Göttingen:
Vandenhoeck & Ruprecht, 1985. Há uma versão em inglês dessa mesma obra: The
Theory of Will in Classical Antiquity. Berkeley/California: The University of
California Press, 1982), no domínio da reflexão ético-moral, a história da
filosofia registra uma notável particularidade: a despeito de que todos os
sistemas éticos do Ocidente tenham sido edificados sobre o alicerce das
contribuições do pensamento ético grego, deste estava ausente um conceito
isolado, autônomo e explícito de vontade.
Para
o pensamento grego, desde o mais antigo, havia uma analogia e um trânsito entre
a ordem divina e natural, vigente no cosmos, e a ordem ética e social. Essa
reciprocidade entre o cosmos e a legislação ética encontra expressão em longa e
sólida tradição, de que testemunha, por exemplo, o proverbial oráculo de
Delfos. Uma das implicações do conhece-te a ti mesmo é aquela segundo a qual o
comportamento moral deve ser equacionado com o auxílio de regras tão racionais
e universalmente aplicáveis quanto aquelas que vigoram no curso da natureza.
Se
tivermos presente que "a palavra vontade e seus equivalentes nas modernas
línguas européias designam, quando empregadas na descrição e avaliação do agir
humano, o impulso para a ação, sem consideração de sua origem possível na
reflexão conforme à razão, ou na constituição emocional" (p. 31), isto é,
a energia para o agir posta à disposição da consciência, então fica claro que
no mundo grego clássico e helenístico os problemas mais importantes da reflexão
ética não foram, nem podiam ser colocados e resolvidos com auxílio do conceito
de vontade.
A
realidade da ordem cósmica com a conseqüente imutabilidade de suas leis
universais é racional, o que possibilita o trânsito, para o intelecto humano,
dessa concordância isonômica. Por causa disso, podem ser descobertas leis para
o agir humano tão necessárias e universais quanto as leis da natureza. De
conformidade com isso, o homem sábio se demonstra como tal pela capacidade para
agir corretamente. Se, na prática, podemos indicar casos de ações errôneas com
aparente conhecimento do caminho correto, trata-se de mera aparência, que pode
ser desfeita pela explicação suficiente da ausência de motivação
suficientemente racional.
Integrado
a tais coordenadas, todo o diálogo Górgias de Platão pode ser interpretado como
uma monumental tentativa de provar duas teses morais: a primeira delas é que
toda má ação é praticada unicamente por ignorância. Age-se mal porque se ignora
o que é o bem, em cada uma das circunstâncias de ação. A segunda tese consiste
na afirmação de acordo com a qual é melhor padecer o mal a infligi-lo.
No
diálogo Protágoras (357a-358d) Platão apresenta uma formulação lapidar desse
ensinamento ético tradicional: "Que chamareis de ignorante? Não é ter uma
falsa opinião e se enganar quanto a coisas de grande importância? Não é verdade
que ninguém se conduz voluntariamente ao mal ou àquilo que toma pelo mal, que
não parece estar na natureza do homem o resolver procurar aquilo que é mau de
preferência àquilo que é bem, e que, quando se é forçado a escolher entre dois
males, ninguém há que escolhesse o maior, podendo tomar o menor? Sobre todos
esses pontos estamos de acordo".
É
inegável que a teoria da ação de Aristóteles opera uma re-orientação profunda
em relação a motivos filosóficos platônicos e tradicionais, ligados à vontade e
ao agir virtuoso. Nesse sentido, ele é o primeiro a considerar a importância do
costume como elemento relevante no que respeita à virtude ético-política,
introduzindo uma diferenciação entre intelecto contemplativo e intelecto
prático, com auxílio da qual compreende a esfera do agir humano de maneira tal
que nela nada mais pode ser conhecido ou prognosticado do mesmo modo como no
domínio dos eventos cósmicos e naturais, De todo modo, também para Aristóteles
o reto desejo se determina em concordância com a verdade, e o juízo sobre as
ações singulares tem por base a necessária referência à escolha racional e à
avaliação moral da finalidade das mesmas e dos meios escolhidos.
Assim,
pode-se afirmar que, na tradição de nossa cultura ocidental, a construção de um
conceito diferenciado e autônomo de vontade, enquanto faculdade responsável
pelo impulso para o agir, é genuína contribuição do gênio teológico e
eclesiástico judaico-cristão, cuja formulação áurea foi cunhada por São Paulo
em sua Epístola aos Romanos (7, 18-23), em termos que estabelecem os rumos
definitivos pelos quais passará, daí por diante, o essencial da reflexão moral.
"Pois
o querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não
faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que
não quero, já não sou eu que estou agindo, e sim o pecado que habita em mim.
Verifico pois esta lei: quando eu quero fazer o bem, é o mal que se me
apresenta. Eu me comprazo na lei de Deus, segundo o homem interior; mas percebo
outro lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me
acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros".
É
certo que não se pode cogitar aqui ainda de um conceito filosoficamente
elaborado de vontade. Decorrência do pecado e da queda, a corrupção da vontade
humana é a causa pela qual o espírito se afasta dos bens verdadeiros, que
provêm de Deus, de modo que a vontade permanece prisioneira da concupiscência
do corpo e às suas misérias, rebelde à perfeição divina.
A
doutrina paulina da vontade marca profundamente o pensamento cristão, tendo
recebido fecunda re-interpretação filosófica, ainda no final da antiguidade e
início da idade média, por meio da doutrina do arbítrio, do pecado, da
predestinação e da graça formulada por Santo Agostinho. Refletindo a fecundação
da herança espiritual grega pela sabedoria teológica judaico-cristã, Santo
Agostinho se esforça por explicitar uma compreensão teológico-antropológica do
homem, a partir do relacionamento entre memória, intellegentia e voluntas.
Em
De duabus animabus (391-93) Santo Agostinho, elabora a primeira definição de
vontade em língua latina: "voluntas est animi motus, cogente nullo, ad
liquid non amittendum vel adipiscendum". (Vontade é um movimento da alma,
sem nenhuma coação, para não perder ou para adquirir algo). Movimento sem
qualquer coação, a vontade é, portanto, livre; por essa razão, ela pode se
afastar de Deus não no espaço, mas por afeição e cupidez, e dirigir-se para as
coisas inferiores a Deus, preenchendo-se de estultícia e miséria.
Trata-se
de uma novidade em relação ao mundo helênico e helenístico, pois se o anseio da
alma permanece voltado para a perfeição e para a bem-aventurança, essa meta não
é alcançada como termo final de uma cadeia de atos cognitivos. A ascese do
plano inferior do mundo sensível para os bens superiores e máximos só pode ser
realizar na tensão entre amor (caritas) e concupiscência, entre obediência e
rebeldia.
Percebe-se,
portanto, que tal definição de vontade está diretamente ligada à possibilidade
de racional explicação da presença do mal e do pecado no universo. Estes são
desprovidos de realidade e positividade, razão pela qual Deus não pode ser
considerado como sua causa ou autor, sendo pura negatividade, defecção em
relação à suma perfeição divina.
Em
De Diversis Quaestionibus (83,8), escreve Santo Agostinho:
"Percebe-se que a alma se move por
si, quando se percebe que há nela uma vontade. Pois quando queremos, não é
outro em nós que quer. E esse movimento da alma é espontâneo: pois é atribuído
por Deus a ela. Todavia, esse movimento não se dá no lugar, como o movimento
dos corpos, pois mover-se localmente é próprio dos corpos".
Essa
doutrina adquire profunda repercussão em todo pensamento medieval, sofrendo
reformulações consideráveis, tanto em Pedro Abelardo, quanto em São Tomás de
Aquino, que recupera categorias fundamentais da ética de Aristóteles. Para São
Tomás, que se apóia de modo mais decisivo na teoria aristotélica da virtude, a
vontade do homem dirige-se natural e espontaneamente para o bem e para as
coisas que são convenientes com sua natureza. Entretanto, a poderosa e fecunda
influência paulino-agostiniana se reafirma com a doutrina do servo arbítrio, do
reformador Martinho Lutero, que repercute profundamente sobre a teoria kantiana
da vontade, com sua doutrina do mal radical. Essa noção luterana de servo
arbítrio constitui um marco de referência para o pensamento teológico,
filosófico e político da Reforma.
A
esse respeito, é necessário reconhecer que são categorias teológico-políticas
que presidem a teorização filosófica sobre vontade, podendo-se perceber sua
reverberação nas modernas tentativas de explicitação do conceito jusfilosófico
de vontade em Hobbes e Locke, no que respeita à tradição anglo-saxônica, e,
quanto aos continentais, em Grotius, Descartes, Rousseau, Pufendorf , Leibniz e
Spinosa. Brotam das raízes espirituais dessa tradição o mais rigoroso e bem
elaborado tratamento sistemático dado à noção de vontade na filosofia moderna,
a saber, o idealismo crítico de Immanuel Kant.
Com
o rigor e a profundidade que distinguem sua filosofia, Kant tematiza o conceito
de vontade, à partir de um conjunto de diferenciações extraídas da noção mais
ampla de Begehrungsvermögen, que significa faculdade apetitiva, ou apetição. Na
introdução de sua Metafísica dos Costumes (I, AB 1,2) Kant escreve:
"A faculdade de apetição é a
capacidade de, por intermédio de suas representações, ser causa dos objetos
dessas representações. Chama-se vida a faculdade de um ser de agir de
conformidade com suas representações".
Diferentemente
do simples desejo, que é mera apetição, ou vago anseio por um objeto qualquer,
o arbítrio é a faculdade de desejar, acompanhada da consciência de poder
determinar o próprio agir, com vistas à produção, ou realização do objeto da
representação.
Já
vontade stricto sensu é, para Kant, a razão prática, isto é, a razão enquanto
discrimina e determina as leis, princípios ou regras gerais para o querer.
"Toda
coisa da natureza age segundo leis. Apenas um ser racional tem a faculdade de
agir segundo a representação de leis, isto é, mediante princípios, ou uma
vontade. Na medida em que é exigida razão para a derivação de ações a partir de
leis, então a vontade não é outra coisa senão razão prática."
(Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA, 37).
Por
sua vez, a filosofia prática de Kant, na qual pode-se identificar a
persistência da noção paulina de vontade, com a inflexão peculiar que lhe dão
Santo Agostinho e Lutero, representa um marco na doutrina ética, jurídica e
política da vontade, tendo sido retomada, criticada e reformulada por Fichte,
em sua revalorização do eu volitivo, em face do eu cognitivo, assim como por
Schelling, em seu escrito sobre a insondável liberdade da vontade humana e a
possibilidade metafísica do mal. Posteriormente, Hegel, construirá sua doutrina
do Estado e do Direito à partir da crítica do abstrato conceito kantiano de
vontade.
No
parágrafo 4 da introdução à sua Filosofia do Direito, na tentativa de dar à
noção de vontade a concretude que, segundo ele, faltava à doutrina kantiana da
moralidade, Hegel afirma:
"O solo do direito é, em geral, o
espiritual e sua posição mais próxima e ponto de partida é a vontade, que é
livre, de modo que a liberdade constitui sua substância e determinação, e o
sistema do direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do espírito,
produzido à partir dele próprio, como uma segunda natureza".
Com
Arthur Schopenhauer, o conceito de vontade é dotado de uma novidade
absolutamente radical, rompendo-se o liame e invertendo-se os pólos de
valoração tradicional entre vontade e racionalidade. Razão e intelecto são
pensados por ele como instrumentos a serviço da vontade, esta definida como
impulso presente em todos os seres da natureza e no homem, ímpeto cego,
irracional e irresistível.
Conduzindo
a filosofia do idealismo transcendental ao ponto extremo de seu radicalismo e,
por essa via, levando-a a seu acabamento, o sistema filosófico arquitetado por
Arthur Schopenhauer atribui à vontade a dignidade ontológica de centro e cerne
metafísico da realidade. Aqui a vontade é considerada como querer universal,
substância íntima e núcleo de todo ente particular, bem como do todo.
Já
no primeiro parágrafo do primeiro livro de sua obra capital, O Mundo como
Vontade e Representação, Schopenhauer ensina que só podemos considerar o mundo
em duplo registro: por um lado, à partir da cognoscibilidade e da consciência,
e, nessa chave, temos de "considerar irrestritamente todos os objetos
existentes, até mesmo o próprio corpo, apenas como representação, denominá-los
mera representação. Aquilo que é abstraído daqui é vontade que, enquanto tal,
constitui sozinha o outro lado: pois este é — do mesmo modo que, por um lado,
completamente representação —, também, por outro lado, completamente vontade.
Porém, uma realidade que não fosse nenhum desses dois, mas um objeto em si (em
que, infelizmente, também se degenerou a coisa em si de Kant) é uma sonhada
impossibilidade, e sua admissão é um delírio na filosofia".
Dessa
maneira, Schopenhauer concebe a totalidade do real como se desdobrando
unicamente nessas duas perspectivas, ou como objeto para um sujeito, ou como
unidade metafísica da vontade. Na medida em que está submetida ao princípio de
individuação, sendo determinada pelo princípio de causalidade, toda realidade
empírica é meramente fenomênica, e tem o estatuto de forma singular de
manifestação, no tempo e no espaço, de uma única e mesma essência metafísica,
por ele denominada vontade, cuja objetividade imediata dá-se em nosso corpo.
Desse
modo, o sistema de O Mundo como Vontade e Representação retoma, a seu modo, o
privilégio metafísico atribuído à vontade pelo idealismo absoluto de Schelling;
porém, em Schopenhauer o âmbito de significação do conceito de vontade é
significativamente ampliado — de modo algum limitando-se ao plano da
consciência —, com o que fica aberto o caminho para a noção de vontade
inconsciente, que será explorada pela psicanálise de Freud.
Outra
conceituação fundamental de vontade, na filosofia contemporânea, é aquela
formulada por Friedrich Nietzsche, cuja fortuna crítica se estende a nossos
dias. Tendo sofrido considerável influência da metafísica da vontade de
Schopenhauer, Nietzsche também identifica a vontade com a realidade última do
universo. Não, porém, como vontade de viver em disputa pela matéria, como
pretendia seu antigo mestre, mas como vontade de poder, que é a palavra
definitiva da filosofia de Nietzsche.
Em
uma de suas obras mais conhecidas, Assim Falou Zaratustra, no capítulo
intitulado Da Auto-Superação, escreve Nietzsche: "lá, onde há vida, alí há
também vontade, porém não vontade de vida, mas — assim o ensino a você —
vontade de poder". Com base nesse conceito, Nietzsche consegue interpretar
todos os fenômenos da natureza e da história, encarando-os como formas de
manifestação de forças em oposição e aliança, cujo impulso e interesse
fundamental consiste na intensificação do próprio poder.
Tanto
quanto Schopenhauer, antes dele, também Nietzsche foi um resoluto adversário da
doutrina do livre-arbítrio. Uma de suas mais significativas operações consiste
em dissolver a noção abstrata de uma faculdade apetitiva em uma pluralidade
infinita de atos volitivos singulares e concretos, apenas parcialmente
acessíveis à consciência, que são determinados pela pressão de impulsos em
conflito, interagindo e resistindo uns aos outros, em esforço permanente para
impor suas exigências como diretivas de ação.
Com
isso, o conceito de vontade diversifica-se e amplia ainda mais seu alcance e
sentido, pois Nietzsche compreende a vontade de poder como única causalidade
presente no universo, tanto no âmbito da natureza inorgânica, como no plano da
vida, da história individual e política do homem. Os supremos valores da
cultura, tanto lógicos como morais e políticos, são interpretados por ele como
manifestações da vontade de poder, que assim não se limita ao âmbito rude e
material das relações de domínio e exploração, mas também se transfigura nas
mais sublimes florações do espírito. Muitas de suas contribuições impactaram a
psicanálise e até hoje influenciam a discussão a respeito da liberdade da
vontade e da responsabilidade moral pelo agir humano, tal como esta se realiza
em filosofia, psicologia, antropologia social e na teoria política
contemporâneas.
Sempre
tendo como pressuposto a vontade, a reflexão e o debate atual sobre a
responsabilidade e o valor moral das ações procura compatibilizar determinismo
com alguma noção de liberdade. Mesmo considerando ilusória a crença na absoluta
liberdade e indeterminação do arbítrio, podemos conservar o sentido de
responsabilidade moral por nossas decisões e por nosso agir. Com efeito,
admitir que os atos da vontade são determinados por fenômenos motivacionais,
por exemplo, não impede de pensar que uma ação determinada se encontra também
em nosso poder, na medida em que não sejamos rigorosamente compelidos a
praticá-la, podendo sempre escolher entre praticá-la ou dela se abster.
Oswaldo
Giacoia Junior
IFCH/Unicamp
giacoia@tsp.com.br
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