sábado, 12 de março de 2016

Vontade


Entendida como princípio de movimento, impulso ou capacidade para agir, envolvendo uma dimensão reflexiva dessa atividade, a vontade é o pressuposto fundamental para o julgamento do valor moral de nossas ações e decisões, na medida em que pode ser pensada como aptidão para dar início, como instância causal, a uma série de efeitos, que, por conseguinte, não têm sua fonte de determinação em nenhum princípio interno ou externo alheio ao próprio querer.

Todo juízo de imputação tem de pressupor ser o agente capaz de alternativa, de fazer ou deixar de fazer uma determinada ação. Somente sob tal pressuposto é que se pode considerar alguém como responsável por aquilo que faz. Admitindo-se um rígido determinismo das causas naturais, seríamos forçados a conceder que também todas as nossas opiniões e ações sejam determinadas por causas anteriores, elas próprias, por sua vez, condicionadas pela efetuação de outra prévia ocorrência causal, regredindo-se, assim, ao infinito na série das causas.

Portanto, alguma forma de causalidade da vontade tem sempre que ser pensada, caso faça sentido o juízo de imputação, pelo qual somos reconhecidos como sujeitos de nosso agir. Por essa razão, esse é o conceito que se constitui como referência e pedra angular da moderna reflexão filosófica, na medida em que esta se volta para a apreciação do valor do agir humano axiologicamente orientado.

Como ensina Albrecht Dihle (Die Vorstellung vom Willen in der Antike. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1985. Há uma versão em inglês dessa mesma obra: The Theory of Will in Classical Antiquity. Berkeley/California: The University of California Press, 1982), no domínio da reflexão ético-moral, a história da filosofia registra uma notável particularidade: a despeito de que todos os sistemas éticos do Ocidente tenham sido edificados sobre o alicerce das contribuições do pensamento ético grego, deste estava ausente um conceito isolado, autônomo e explícito de vontade.

Para o pensamento grego, desde o mais antigo, havia uma analogia e um trânsito entre a ordem divina e natural, vigente no cosmos, e a ordem ética e social. Essa reciprocidade entre o cosmos e a legislação ética encontra expressão em longa e sólida tradição, de que testemunha, por exemplo, o proverbial oráculo de Delfos. Uma das implicações do conhece-te a ti mesmo é aquela segundo a qual o comportamento moral deve ser equacionado com o auxílio de regras tão racionais e universalmente aplicáveis quanto aquelas que vigoram no curso da natureza.

Se tivermos presente que "a palavra vontade e seus equivalentes nas modernas línguas européias designam, quando empregadas na descrição e avaliação do agir humano, o impulso para a ação, sem consideração de sua origem possível na reflexão conforme à razão, ou na constituição emocional" (p. 31), isto é, a energia para o agir posta à disposição da consciência, então fica claro que no mundo grego clássico e helenístico os problemas mais importantes da reflexão ética não foram, nem podiam ser colocados e resolvidos com auxílio do conceito de vontade.

A realidade da ordem cósmica com a conseqüente imutabilidade de suas leis universais é racional, o que possibilita o trânsito, para o intelecto humano, dessa concordância isonômica. Por causa disso, podem ser descobertas leis para o agir humano tão necessárias e universais quanto as leis da natureza. De conformidade com isso, o homem sábio se demonstra como tal pela capacidade para agir corretamente. Se, na prática, podemos indicar casos de ações errôneas com aparente conhecimento do caminho correto, trata-se de mera aparência, que pode ser desfeita pela explicação suficiente da ausência de motivação suficientemente racional.

Integrado a tais coordenadas, todo o diálogo Górgias de Platão pode ser interpretado como uma monumental tentativa de provar duas teses morais: a primeira delas é que toda má ação é praticada unicamente por ignorância. Age-se mal porque se ignora o que é o bem, em cada uma das circunstâncias de ação. A segunda tese consiste na afirmação de acordo com a qual é melhor padecer o mal a infligi-lo.

No diálogo Protágoras (357a-358d) Platão apresenta uma formulação lapidar desse ensinamento ético tradicional: "Que chamareis de ignorante? Não é ter uma falsa opinião e se enganar quanto a coisas de grande importância? Não é verdade que ninguém se conduz voluntariamente ao mal ou àquilo que toma pelo mal, que não parece estar na natureza do homem o resolver procurar aquilo que é mau de preferência àquilo que é bem, e que, quando se é forçado a escolher entre dois males, ninguém há que escolhesse o maior, podendo tomar o menor? Sobre todos esses pontos estamos de acordo".

É inegável que a teoria da ação de Aristóteles opera uma re-orientação profunda em relação a motivos filosóficos platônicos e tradicionais, ligados à vontade e ao agir virtuoso. Nesse sentido, ele é o primeiro a considerar a importância do costume como elemento relevante no que respeita à virtude ético-política, introduzindo uma diferenciação entre intelecto contemplativo e intelecto prático, com auxílio da qual compreende a esfera do agir humano de maneira tal que nela nada mais pode ser conhecido ou prognosticado do mesmo modo como no domínio dos eventos cósmicos e naturais, De todo modo, também para Aristóteles o reto desejo se determina em concordância com a verdade, e o juízo sobre as ações singulares tem por base a necessária referência à escolha racional e à avaliação moral da finalidade das mesmas e dos meios escolhidos.

Assim, pode-se afirmar que, na tradição de nossa cultura ocidental, a construção de um conceito diferenciado e autônomo de vontade, enquanto faculdade responsável pelo impulso para o agir, é genuína contribuição do gênio teológico e eclesiástico judaico-cristão, cuja formulação áurea foi cunhada por São Paulo em sua Epístola aos Romanos (7, 18-23), em termos que estabelecem os rumos definitivos pelos quais passará, daí por diante, o essencial da reflexão moral.

"Pois o querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero. Ora, se eu faço o que não quero, já não sou eu que estou agindo, e sim o pecado que habita em mim. Verifico pois esta lei: quando eu quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta. Eu me comprazo na lei de Deus, segundo o homem interior; mas percebo outro lei em meus membros, que peleja contra a lei da minha razão e que me acorrenta à lei do pecado que existe em meus membros".

É certo que não se pode cogitar aqui ainda de um conceito filosoficamente elaborado de vontade. Decorrência do pecado e da queda, a corrupção da vontade humana é a causa pela qual o espírito se afasta dos bens verdadeiros, que provêm de Deus, de modo que a vontade permanece prisioneira da concupiscência do corpo e às suas misérias, rebelde à perfeição divina.

A doutrina paulina da vontade marca profundamente o pensamento cristão, tendo recebido fecunda re-interpretação filosófica, ainda no final da antiguidade e início da idade média, por meio da doutrina do arbítrio, do pecado, da predestinação e da graça formulada por Santo Agostinho. Refletindo a fecundação da herança espiritual grega pela sabedoria teológica judaico-cristã, Santo Agostinho se esforça por explicitar uma compreensão teológico-antropológica do homem, a partir do relacionamento entre memória, intellegentia e voluntas.

Em De duabus animabus (391-93) Santo Agostinho, elabora a primeira definição de vontade em língua latina: "voluntas est animi motus, cogente nullo, ad liquid non amittendum vel adipiscendum". (Vontade é um movimento da alma, sem nenhuma coação, para não perder ou para adquirir algo). Movimento sem qualquer coação, a vontade é, portanto, livre; por essa razão, ela pode se afastar de Deus não no espaço, mas por afeição e cupidez, e dirigir-se para as coisas inferiores a Deus, preenchendo-se de estultícia e miséria.

Trata-se de uma novidade em relação ao mundo helênico e helenístico, pois se o anseio da alma permanece voltado para a perfeição e para a bem-aventurança, essa meta não é alcançada como termo final de uma cadeia de atos cognitivos. A ascese do plano inferior do mundo sensível para os bens superiores e máximos só pode ser realizar na tensão entre amor (caritas) e concupiscência, entre obediência e rebeldia.

Percebe-se, portanto, que tal definição de vontade está diretamente ligada à possibilidade de racional explicação da presença do mal e do pecado no universo. Estes são desprovidos de realidade e positividade, razão pela qual Deus não pode ser considerado como sua causa ou autor, sendo pura negatividade, defecção em relação à suma perfeição divina.

Em De Diversis Quaestionibus (83,8), escreve Santo Agostinho:

"Percebe-se que a alma se move por si, quando se percebe que há nela uma vontade. Pois quando queremos, não é outro em nós que quer. E esse movimento da alma é espontâneo: pois é atribuído por Deus a ela. Todavia, esse movimento não se dá no lugar, como o movimento dos corpos, pois mover-se localmente é próprio dos corpos".

Essa doutrina adquire profunda repercussão em todo pensamento medieval, sofrendo reformulações consideráveis, tanto em Pedro Abelardo, quanto em São Tomás de Aquino, que recupera categorias fundamentais da ética de Aristóteles. Para São Tomás, que se apóia de modo mais decisivo na teoria aristotélica da virtude, a vontade do homem dirige-se natural e espontaneamente para o bem e para as coisas que são convenientes com sua natureza. Entretanto, a poderosa e fecunda influência paulino-agostiniana se reafirma com a doutrina do servo arbítrio, do reformador Martinho Lutero, que repercute profundamente sobre a teoria kantiana da vontade, com sua doutrina do mal radical. Essa noção luterana de servo arbítrio constitui um marco de referência para o pensamento teológico, filosófico e político da Reforma.

A esse respeito, é necessário reconhecer que são categorias teológico-políticas que presidem a teorização filosófica sobre vontade, podendo-se perceber sua reverberação nas modernas tentativas de explicitação do conceito jusfilosófico de vontade em Hobbes e Locke, no que respeita à tradição anglo-saxônica, e, quanto aos continentais, em Grotius, Descartes, Rousseau, Pufendorf , Leibniz e Spinosa. Brotam das raízes espirituais dessa tradição o mais rigoroso e bem elaborado tratamento sistemático dado à noção de vontade na filosofia moderna, a saber, o idealismo crítico de Immanuel Kant.

Com o rigor e a profundidade que distinguem sua filosofia, Kant tematiza o conceito de vontade, à partir de um conjunto de diferenciações extraídas da noção mais ampla de Begehrungsvermögen, que significa faculdade apetitiva, ou apetição. Na introdução de sua Metafísica dos Costumes (I, AB 1,2) Kant escreve:

"A faculdade de apetição é a capacidade de, por intermédio de suas representações, ser causa dos objetos dessas representações. Chama-se vida a faculdade de um ser de agir de conformidade com suas representações".

Diferentemente do simples desejo, que é mera apetição, ou vago anseio por um objeto qualquer, o arbítrio é a faculdade de desejar, acompanhada da consciência de poder determinar o próprio agir, com vistas à produção, ou realização do objeto da representação.

Já vontade stricto sensu é, para Kant, a razão prática, isto é, a razão enquanto discrimina e determina as leis, princípios ou regras gerais para o querer.

"Toda coisa da natureza age segundo leis. Apenas um ser racional tem a faculdade de agir segundo a representação de leis, isto é, mediante princípios, ou uma vontade. Na medida em que é exigida razão para a derivação de ações a partir de leis, então a vontade não é outra coisa senão razão prática." (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA, 37).

Por sua vez, a filosofia prática de Kant, na qual pode-se identificar a persistência da noção paulina de vontade, com a inflexão peculiar que lhe dão Santo Agostinho e Lutero, representa um marco na doutrina ética, jurídica e política da vontade, tendo sido retomada, criticada e reformulada por Fichte, em sua revalorização do eu volitivo, em face do eu cognitivo, assim como por Schelling, em seu escrito sobre a insondável liberdade da vontade humana e a possibilidade metafísica do mal. Posteriormente, Hegel, construirá sua doutrina do Estado e do Direito à partir da crítica do abstrato conceito kantiano de vontade.

No parágrafo 4 da introdução à sua Filosofia do Direito, na tentativa de dar à noção de vontade a concretude que, segundo ele, faltava à doutrina kantiana da moralidade, Hegel afirma:

"O solo do direito é, em geral, o espiritual e sua posição mais próxima e ponto de partida é a vontade, que é livre, de modo que a liberdade constitui sua substância e determinação, e o sistema do direito é o reino da liberdade efetivada, o mundo do espírito, produzido à partir dele próprio, como uma segunda natureza".

Com Arthur Schopenhauer, o conceito de vontade é dotado de uma novidade absolutamente radical, rompendo-se o liame e invertendo-se os pólos de valoração tradicional entre vontade e racionalidade. Razão e intelecto são pensados por ele como instrumentos a serviço da vontade, esta definida como impulso presente em todos os seres da natureza e no homem, ímpeto cego, irracional e irresistível.

Conduzindo a filosofia do idealismo transcendental ao ponto extremo de seu radicalismo e, por essa via, levando-a a seu acabamento, o sistema filosófico arquitetado por Arthur Schopenhauer atribui à vontade a dignidade ontológica de centro e cerne metafísico da realidade. Aqui a vontade é considerada como querer universal, substância íntima e núcleo de todo ente particular, bem como do todo.

Já no primeiro parágrafo do primeiro livro de sua obra capital, O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer ensina que só podemos considerar o mundo em duplo registro: por um lado, à partir da cognoscibilidade e da consciência, e, nessa chave, temos de "considerar irrestritamente todos os objetos existentes, até mesmo o próprio corpo, apenas como representação, denominá-los mera representação. Aquilo que é abstraído daqui é vontade que, enquanto tal, constitui sozinha o outro lado: pois este é — do mesmo modo que, por um lado, completamente representação —, também, por outro lado, completamente vontade. Porém, uma realidade que não fosse nenhum desses dois, mas um objeto em si (em que, infelizmente, também se degenerou a coisa em si de Kant) é uma sonhada impossibilidade, e sua admissão é um delírio na filosofia".

Dessa maneira, Schopenhauer concebe a totalidade do real como se desdobrando unicamente nessas duas perspectivas, ou como objeto para um sujeito, ou como unidade metafísica da vontade. Na medida em que está submetida ao princípio de individuação, sendo determinada pelo princípio de causalidade, toda realidade empírica é meramente fenomênica, e tem o estatuto de forma singular de manifestação, no tempo e no espaço, de uma única e mesma essência metafísica, por ele denominada vontade, cuja objetividade imediata dá-se em nosso corpo.

Desse modo, o sistema de O Mundo como Vontade e Representação retoma, a seu modo, o privilégio metafísico atribuído à vontade pelo idealismo absoluto de Schelling; porém, em Schopenhauer o âmbito de significação do conceito de vontade é significativamente ampliado — de modo algum limitando-se ao plano da consciência —, com o que fica aberto o caminho para a noção de vontade inconsciente, que será explorada pela psicanálise de Freud.

Outra conceituação fundamental de vontade, na filosofia contemporânea, é aquela formulada por Friedrich Nietzsche, cuja fortuna crítica se estende a nossos dias. Tendo sofrido considerável influência da metafísica da vontade de Schopenhauer, Nietzsche também identifica a vontade com a realidade última do universo. Não, porém, como vontade de viver em disputa pela matéria, como pretendia seu antigo mestre, mas como vontade de poder, que é a palavra definitiva da filosofia de Nietzsche.

Em uma de suas obras mais conhecidas, Assim Falou Zaratustra, no capítulo intitulado Da Auto-Superação, escreve Nietzsche: "lá, onde há vida, alí há também vontade, porém não vontade de vida, mas — assim o ensino a você — vontade de poder". Com base nesse conceito, Nietzsche consegue interpretar todos os fenômenos da natureza e da história, encarando-os como formas de manifestação de forças em oposição e aliança, cujo impulso e interesse fundamental consiste na intensificação do próprio poder.

Tanto quanto Schopenhauer, antes dele, também Nietzsche foi um resoluto adversário da doutrina do livre-arbítrio. Uma de suas mais significativas operações consiste em dissolver a noção abstrata de uma faculdade apetitiva em uma pluralidade infinita de atos volitivos singulares e concretos, apenas parcialmente acessíveis à consciência, que são determinados pela pressão de impulsos em conflito, interagindo e resistindo uns aos outros, em esforço permanente para impor suas exigências como diretivas de ação.

Com isso, o conceito de vontade diversifica-se e amplia ainda mais seu alcance e sentido, pois Nietzsche compreende a vontade de poder como única causalidade presente no universo, tanto no âmbito da natureza inorgânica, como no plano da vida, da história individual e política do homem. Os supremos valores da cultura, tanto lógicos como morais e políticos, são interpretados por ele como manifestações da vontade de poder, que assim não se limita ao âmbito rude e material das relações de domínio e exploração, mas também se transfigura nas mais sublimes florações do espírito. Muitas de suas contribuições impactaram a psicanálise e até hoje influenciam a discussão a respeito da liberdade da vontade e da responsabilidade moral pelo agir humano, tal como esta se realiza em filosofia, psicologia, antropologia social e na teoria política contemporâneas.

Sempre tendo como pressuposto a vontade, a reflexão e o debate atual sobre a responsabilidade e o valor moral das ações procura compatibilizar determinismo com alguma noção de liberdade. Mesmo considerando ilusória a crença na absoluta liberdade e indeterminação do arbítrio, podemos conservar o sentido de responsabilidade moral por nossas decisões e por nosso agir. Com efeito, admitir que os atos da vontade são determinados por fenômenos motivacionais, por exemplo, não impede de pensar que uma ação determinada se encontra também em nosso poder, na medida em que não sejamos rigorosamente compelidos a praticá-la, podendo sempre escolher entre praticá-la ou dela se abster.

Oswaldo Giacoia Junior
IFCH/Unicamp

giacoia@tsp.com.br

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